Por Aluízio Moreira
Os marxistas definiram o novo tipo de regime de governo, que deverá corresponder à nova realidade sócioeconômica não-capitalista, como “ditadura do proletariado”, enquanto seus opositores identificaram aquele governo como autoritário, opressor, anti-democrático, contrapondo-o ao modelo adotado pelo mundo ocidental, burgues, como único modelo de uma sociedade democrática.
Essa identificação ditadura do proletariado/anti-democracia foi tão eficiente para a hegemonia do pensamento político liberal-burgues, que alguns partidos comunistas e de esquerda, sobretudo ocidentais, tratam de abominar o termo, seja pela simples pela sua abolição dos seus programas, seja substituição por expressões menos comprometidas como democracia socialista, ou socialismo democrático. Aceitava-se veladamente que a inclusão da palavra democracia em suas siglas e programas, asseguraria necessariamente o caráter não-autoritário, democrático, como forma de regime.
Nem Karl Marx nem Friedrich Engels trataram em suas obras de definir democracia ou regime democrático.
A expressão “ditadura do proletariado” foi utilizada por Engels na Introdução à terceira edição (1891) alemã da obra de Marx A Guerra Civil na França, edição comemorativa ao vigésimo aniversário da Comuna de Paris de 1871, no sentido de democracia em toda sua plenitude, porquanto exercida soberanamente pela população trabalhadora de Paris. (2)
Vejamos como o Autor daquela Introdução trata o assunto.
Após traçar as linhas gerais da situação política francesa, tanto interna como externamente, sobretudo no que refere às rivalidades franco-prussianas, Engels acompanha os fatos político-militares que levarão à proclamação da Comuna de Paris. Detendo-se na análise do governo revolucionário instituído em março de 1871, observando que a maioria dos membros da Comuna era proudhonianos e blanquistas, desfechou algumas críticas aos planos econômicos dos proudhoninos, e assim se referiu aos blanquistass:
[...] os blanquistas partiam da idéia de que um grupo relativamente reduzido de homens decididos e bem organizados estaria em condições não só de apoderar-se da direção do Estado num momento propício, mas também ,desenvolvendo uma ação enérgicas e incansável, seria capaz de manter-se até conseguir arrastar à revolução às massas do povo e congrega-los em torn o de um pequeno grupo dirigente. Isso conduziria , sobretudo, à mais rígida e ditatorial centralização de todos os poderes nas mãos do novo governo revolucionário. (2)
Nessa passagem, Engels critica nos blanquistas aquilo que era prática própria do governo napoleônico: autoritário, centralizador. Modernamente, Blanc seria considerado defensor do chamado Socialismo de Estado.
Mas apesar dessa proposta centralizadora e autoritária dos blanquistas, como se organizou de fato o poder durante o domínio da Comuna? O próprio Engels, a partir das observações que pôde fazer, relata:
Em todas as proclamações dirigidas aos franceses das províncias, a Comuna exortava à criação de uma federação livre de todas as Comunas da França com Paris, uma organização nacional que, pela primeira vez devia ser criada pela própria nação. Exatamente o poder opressivo do antigo governo centralizado – o exército, a polícia política e a burocracia – instituído por Napoleão em 1798 e que desde então cada novo governo havia herdado como um instrumento eficaz, empregando-o contra os seus inimigos – exatamente essa força é que devia ser derrubada em toda a França, como o fora em Paris. (3)
Nessa passagem, Engels contrapõe à forma de governo centralizado e autoritário, napoleônico ou blanquista, um novo tipo de Estado que a Comuna instituiu, diferente da “velha imagem do Estado”. Nesse novo governo, “os seus próprios mandatários e funcionários”, seriam “demissíveis a qualquer tempo e sem exceção.”
Assim, a Comuna organizou o Estado, preenchendo “todos os cargos administrativos, judiciais e do magistério através de eleições mediante sufrágio universal, concedendo aos eleitores o direito de revogar a qualquer momento o mandato concedido”.
Mas o governo revolucionário de Paris foi mais longe:
Todos os funcionários, graduados ou modestos, eram retribuídos como os demais trabalhadores. O salário mais alto pago pela Comuna era de 6 mil francos. Punha desse modo uma barreira eficaz ao arrivismo e à caça aos altos empregos, e isso sem falar nos mandatos imperativos dos delegados aos corpos representativos que a Comuna igualmente introduziu. (4)
A Comuna de Paris, para Engels, orientou-se “no sentido de abolir violentamente o velho poder estatal, substituindo-o por outro novo e verdadeiramente democrático”. É esse tipo de governo instituído pela Comuna de Paris, que Engels utiliza no final da sua Introdução em A Guerra Civil na França, o exemplo de ditadura do proletariado como exemplo de democracia instituída na Comuna . Textualmente:
E eis que o filisteu alemão foi novamente tomado de um saudável terror com as palavras ditadora do proletariado. Pois bem, senhores quereis saber como é esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado. (5)
Mas não seria só o “filisteu alemão” que se horrorizaria com os termos “ditadura do proletariado” para definir um regime de novo tipo, verdadeiramente democrático. O horror à expressão atravessou épocas e fronteiras, sobretudo por se desconhecer e/ou não aceitar o sentido que os primeiros teóricos do marxismo lhes deram: ou seja, qualquer classe que venha a dominar o poder de Estado, exerce inquestionavelmente a dominação de classe, a ditadura de uma classe sobre outra, ou se preferirem que a dominação seja mais leve, exerce a hegemonia de classe, nas terminologia gramsciana.
As observações de Marx
Se Engels denomina o governo democrático da Comuna como ditadura do proletariado, Marx, nos manifestos que comporão posteriormente “A Guerra Civil na França”, refere-se à Comuna como “forma positiva” de uma “República Social”, como “República do Trabalho, reconhecendo o caráter nacional, democrático e operário do governo surgido em Paris em 1871.
Na análise que faz da Comuna, Marx, como Engels o fizera, deixa explicito seu caráter que registramos antes:
A Comuna era composta de conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade. Eram responsáveis e substituíveis a qualquer momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente, formada de trabalhadores ou representantes da classe trabalhadora. (6)
Continua Marx:
A Comuna não poderia ser um órgão parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa o mesmo tempo. Em vez de continuar sendo um instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada de suas atribuições políticas e convertida num instrumento da Comuna, responsável perante ela e demissível a qualquer momento. O mesmo foi feito em relação aos funcionários dos demais ramos da administração. A partir dos membros da Comuna, todos que desempenhavam cargos públicos deveriam receber salários de operário. (7)
O caráter democrático da Comuna está presente também no trato com a educação:
Todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo e ao mesmo tempo emancipadas de toda intromissão da Igreja e do Estado. Assim, não somente se punha o ensino ao alcance de todos, massa a própria ciência se redimia dos entraves criados pelos preconceitos de casse e o poder do Governo. (8)
Em relação à instância jurídica, “os funcionários judiciais deviam perder aquela fingida independência que só servira para disfarçar sua abjeta subordinação aos sucessivos governos, aos quais iam prestando sucessivamente, e violando também sucessivamente, o juramento de fidelidade. Assim como os demais funcionários públicos, “os magistrados e juízes deveriam ser funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis”.
À antiga forma centralizadora de poder, sucederia o governo dos produtores pelos produtores, uma espécie de auto-administração dos trabalhadores, a partir dos distritos.
Ao tomar a Comuna de Paris como modelo de organização de uma futura sociedade democrática e comunista ali apenas esboçado, Marx não teve ilusão quanto à instituição de tal sociedade. Sabia que não bastaria ter um plano imaginário, bem elaborado, ao qual a realidade deveria se adequar. Não pretendia criar uma sociedade paradisíaca, distante do céu e da terra, nem esperava da Comuna “nenhum milagre”, pois os operários “não têm nenhuma utopia já pronta para introduzir por decreto do povo”, e na busca de sua realização “terão que enfrentar longas lutas, toda uma série de processos históricos que transformarão as circunstâncias e os homens”. (9)
Conclusão
Do que vimos até aqui, algumas questões nos ficaram bastante claras:
a) O conceito de ditadura do proletariado como foi empregado por Engels, não elimina a constituição democrática da sociedade, de uma sociedade socialista. Tal conceito seria a expressão real da democracia operária vivenciada pela Comuna de Paris de 1871 (10), e não expressão de governo autoritário e centralizador;
b) Marx admite a organização democrática da experiência do proletariado de Paris;
c) A instituição de uma sociedade socialista, democrática, não surge por decreto, nem por ação de um grupo de heróis que dirigiriam uma ação revolucionária;
d) A vitória e consolidação de uma revolução democrática, socialista, é resultante das condições e circunstâncias concretas de uma sociedade, não por ação de um grupo de heróis que dirigiriam uma ação revolucionária, pois a realidade é mais rica que qualquer dedução filosófica e política.
Notas
1) O texto consultado foi ENGELS, Friedrich. Introdução, In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d, p. 49, vol. 2
2) Sobrea Comuna de Paris, ver nossa postagem
3) p. 49
4) Deve ter havido um engano de Engels na referida data. Embora nas várias edições de “A Guerra Civil na França", constem a mesma data, no ano de 1798 Napoleão se encontrava em campanha militar no Oriente e Europa, só retornando a Paris nos fins de 1799, quando assumiu o poder após um golpe militar.
5) p. 51
6) p. 51
7) p. 81
8) p. 81
9) p. 81
10) p. 84
11) A Comuna de Paris durou poucos meses: de março de 1871 a maio do mesmo ano. A classe dominante desencadeou violenta repressão sobre a população de Paris, da qual resultaram 20.000 fuzilamentos, 38.000 detenções e 13.000 deportações, entre homens, mulheres e crianças.
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