sexta-feira, 19 de maio de 2017

O que fazer para revitalizar a esquerda



Por Hamilton Octavio de Souza 




Uma ta­refa bas­tante de­li­cada no Brasil atual é iden­ti­ficar e or­ga­nizar qual deve ser a atu­ação po­lí­tica da es­querda sem in­gressar no jogo dos grupos que se en­gal­fi­nham na dis­puta do apa­relho de Es­tado para ge­ren­ciar ver­sões do ca­pi­ta­lismo. E sem cair no fla-flu das tor­cidas fa­na­ti­zadas que em­ba­ra­lham emo­ci­o­nal­mente o leque ide­o­ló­gico por vo­lun­ta­rismo e opor­tu­nismo da forma mais ir­res­pon­sável e in­con­se­quente. A es­querda pre­cisa ur­gen­te­mente des­ba­ratar as bar­reiras do caos, re­de­finir ca­mi­nhos e re­for­matar o seu papel de força po­lí­tica pre­sente e in­flu­ente na vida na­ci­onal.

A opção me­câ­nica por este ou aquele lado das vá­rias ques­tões em con­flito não tem con­tri­buído em nada para tirar a es­querda do pân­tano po­lí­tico. A tra­je­tória dessa fra­gi­li­zação pode ser re­me­tida a 1989, mas é certo que a si­tu­ação de­sandou de vez a partir de junho de 2013. É pre­ciso con­si­derar também a con­jun­tura in­ter­na­ci­onal, as ma­no­bras do ca­pi­ta­lismo após a crise econô­mica de 2008, as ex­plo­sões mi­gra­tó­rias, as ondas con­ser­va­doras e de di­reita, a re­or­ga­ni­zação mun­dial da eco­nomia, mas, es­pe­ci­fi­ca­mente, o fun­da­mental é apurar como vi­ta­lizar a frag­men­tada es­querda bra­si­leira.

Só uma força po­lí­tica de es­querda or­ga­ni­zada e atu­ante pode se con­trapor às bar­bá­ries pro­du­zidas pelo ne­o­li­be­ra­lismo. Só uma força po­lí­tica de es­querda in­te­grada e apoiada pela mai­oria do povo – no­ta­da­mente pelos tra­ba­lha­dores das mais va­ri­adas ati­vi­dades pro­fis­si­o­nais – pode cons­truir ca­minho se­guro para uma so­ci­e­dade justa, igua­li­tária, livre e de­mo­crá­tica para todos. Só uma força po­lí­tica de es­querda com cre­di­bi­li­dade ética e le­gi­ti­mi­dade po­pular pode com­bater de forma efi­ci­ente e du­ra­doura as prá­ticas da cor­rupção e os des­mandos pra­ti­cados com os re­cursos pú­blicos.

É im­pres­cin­dível re­co­nhecer os graves pro­blemas da de­si­gual­dade rei­nante no país; a ur­gência de mu­danças es­tru­tu­rais no sis­tema po­lí­tico e no mo­delo de de­sen­vol­vi­mento econô­mico e so­cial; a gri­tante ne­ces­si­dade de se as­se­gurar os di­reitos fun­da­men­tais (tra­balho, mo­radia, saúde, edu­cação, cul­tura, lazer) para todos; a ime­diata in­versão dos va­lores de uma so­ci­e­dade ex­clu­dente (in­di­vi­du­a­lismo, con­cen­tração, ga­nância, bru­ta­li­dade) por va­lores de uma so­ci­e­dade so­li­dária (co­le­ti­vi­dade, dis­tri­buição, ge­ne­ro­si­dade e ci­vi­li­dade). É igual­mente im­pe­rioso que os tra­ba­lha­dores en­trem na luta pra valer.

A to­mada de cons­ci­ência exige per­cepção dos fa­tores que con­cor­reram para a fra­gi­li­zação da es­querda ao longo do pro­cesso his­tó­rico e ao mesmo tempo von­tade para rein­ter­pretar fatos, dis­cursos e aná­lises con­ta­mi­nados pelos equí­vocos e des­vios nas prá­ticas da es­querda. O ob­je­tivo é ali­mentar o diá­logo e en­ri­quecer o am­bi­ente pro­pício ao for­ta­le­ci­mento da es­querda, não apenas de seu ar­senal po­lí­tico e pro­gra­má­tico como também de sua or­ga­ni­zação en­quanto força real para atu­ação con­creta na so­ci­e­dade, trans­formar a re­a­li­dade e com­bater as ma­zelas ge­radas pelo ca­pital.

Me­mória e apren­di­zado

Temos sido en­re­dados há muitos anos por falsos di­lemas, os quais nos afastam de pos­turas e agendas com­pa­tí­veis e con­se­quentes com o campo pró­prio da es­querda. A partir da der­rota de Lula na eleição pre­si­den­cial de 1989, o PT – e es­pe­ci­al­mente o lu­lismo – ca­mi­nhou para a apro­xi­mação com as forças, pro­postas e po­lí­ticas do centro li­beral e da di­reita ne­o­li­beral, re­a­li­zando um ver­da­deiro mas­sacre na es­querda do par­tido, seja su­fo­cando al­gumas li­de­ranças e cor­rentes, seja com o ex­purgo de grupos e pes­soas que ou­saram cri­ticar e se opor ao cau­di­lhismo se­me­lhante ao dos par­tidos tra­di­ci­o­nais da di­reita.

Vale lem­brar que não toda, mas boa parte da es­querda or­ga­ni­zada exis­tente hoje nasceu de ex­purgos re­a­li­zados pelo lu­lismo dentro do PT, como o PSTU e o PSOL. Sem contar os mi­lhares de pe­tistas de es­querda que dei­xaram o par­tido de­cep­ci­o­nados com os rumos e as prá­ticas ado­tadas pelo lu­lismo, se abri­garam em al­guma outra le­genda ou sim­ples­mente ab­di­caram de nova vida par­ti­dária. Muitos mi­li­tantes aguer­ridos e qua­li­fi­cados foram vi­o­len­ta­mente to­lhidos em seus so­nhos e ideais sim­ples­mente porque não acei­taram o man­do­nismo e os des­vios po­lí­ticos e éticos da cú­pula do lu­lismo.

As ma­ni­fes­ta­ções de 2013, a co­meçar das lutas do Mo­vi­mento Passe Livre (MPL), des­per­taram di­fe­rentes seg­mentos da so­ci­e­dade – desde os grupos black blocs, anar­quistas, so­ci­a­listas até as aco­mo­dadas classes mé­dias – para a força e a in­fluência das ruas no jogo po­lí­tico ins­ti­tu­ci­onal e, o mais ino­vador e trans­for­mador, sem a tu­tela do PT, do lu­lismo e do go­verno fe­deral. Ao tentar res­ta­be­lecer o con­trole das ruas e ao negar res­postas efe­tivas às de­mandas dos pro­testos, a he­ge­monia pe­tista ficou des­mo­ra­li­zada. Vale lem­brar que a Dilma se re­e­legeu em 2014 com o apoio de apenas 38% dos elei­tores, sendo que 62% dos elei­tores não as­su­miram qual­quer com­pro­misso com a can­di­data do lu­lismo.

Apesar de todas as provas de que o PT é do­mi­nado pelo lu­lismo e que o lu­lismo não passa de uma ge­leia geral fi­si­o­ló­gica, que sempre atuou muito mais a favor da di­reita e da bur­guesia do que a favor da es­querda e dos tra­ba­lha­dores, al­guns se­tores da es­querda ainda se sub­metem aos apelos da cú­pula do lu­lismo para blindá-lo dos inú­meros crimes pra­ti­cados contra os seg­mentos so­ciais mais ne­ces­si­tados de ser­viços e re­cursos pú­blicos, sem contar que tais se­tores são usados re­pe­ti­da­mente como massa de ma­nobra nos mo­mentos em que o pró­prio lu­lismo pre­cisa mos­trar força para se in­serir no jogo da bur­guesia.

Os falsos di­lemas nos afastam sempre das pos­turas e das pro­postas que devem nor­tear a es­querda. No mo­mento, forças he­gemô­nicas pautam para a so­ci­e­dade duas op­ções: uma, apoiar a es­ta­bi­li­zação po­lí­tica do go­verno Temer, o que sig­ni­fica for­ta­lecer o ajuste econô­mico ne­o­li­beral con­forme as re­gras do Con­senso de Washington, que prevê a re­dução do papel do Es­tado e a pri­va­ti­zação de quase tudo para a ex­plo­ração do mer­cado, com con­sequên­cias da­nosas aos di­reitos fun­da­men­tais da po­pu­lação (edu­cação, saúde, trans­porte, mo­radia etc.); e outra, apostar na de­ses­ta­bi­li­zação po­lí­tica do go­verno Temer, com o agra­va­mento das crises po­lí­tica, econô­mica, so­cial e ins­ti­tu­ci­onal, de tal ma­neira que o pre­si­dente possa ser subs­ti­tuído sob a ba­tuta do Con­gresso Na­ci­onal, com opção de outro go­verno tão ou mais com­pro­me­tido com as pro­postas ne­o­li­be­rais.

Não faz o menor sen­tido a es­querda em­barcar na ale­a­tória dis­puta entre fac­ções da bur­guesia, di­vi­didas entre o apoio ao Temer e a busca de uma al­ter­na­tiva ao Temer. Também não faz o menor sen­tido en­trar no jogo do lu­lismo, que en­cena agora o papel de opo­sição, faz su­posta cam­panha para an­te­cipar as elei­ções tão so­mente para di­fi­cultar even­tual con­de­nação de Lula nos vá­rios pro­cessos em que é réu. Em­barcar no es­tertor do lu­lismo, agora des­ven­dado e de­gra­dado po­lí­tica e eti­ca­mente, seria jogar mais uma pá de cal na es­querda e re­tardar ainda mais a sua in­serção nas classes tra­ba­lha­doras. A or­ga­ni­zação e o for­ta­le­ci­mento da es­querda podem passar pelo pro­cesso elei­toral, mas não podem se es­gotar nas elei­ções. Di­fe­ren­te­mente do lu­lismo, que tem pro­jeto pes­soal de poder, a es­querda deve visar, fun­da­men­tal­mente, o pro­jeto de trans­for­mação real e es­tru­tural da so­ci­e­dade.

Foco e se­le­ti­vi­dade

A es­querda está sendo es­ti­mu­lada a en­trar no pro­cesso su­ces­sório de ma­neira ata­ba­lhoada, mais uma vez, antes mesmo de qual­quer re­flexão mais apro­fun­dada sobre a sua pró­pria con­for­mação po­lí­tica, ide­o­ló­gica e pro­gra­má­tica; antes mesmo de uma boa aná­lise crí­tica sobre os go­vernos do PT, sobre o papel do lu­lismo e a re­lação do pe­tismo com a con­jun­tura de crise no seio da es­querda e nos mo­vi­mentos so­ciais po­pu­lares, sin­di­cais, da ju­ven­tude e dos tra­ba­lha­dores. Como pensar na li­qui­dação do atual go­verno, he­rança di­reta do lu­lismo, sem a ur­gente e es­sen­cial re­com­po­sição de uma força re­al­mente livre da po­lí­tica de con­ci­li­ação de classes que imo­bi­lizou a es­querda em tantos anos de ne­o­li­be­ra­lismo?

A re­fe­rência da es­querda não pode ser o que levou o país ao de­sastre econô­mico e so­cial, que trans­formou a es­pe­rança po­pular em pe­sa­delo para os tra­ba­lha­dores, que levou de­ses­pero aos po­bres e de­sa­lento aos jo­vens. A re­fe­rência da es­querda não pode ser quem adota e pra­tica a des­po­li­ti­zação do povo e a de­ge­ne­ração da ética pú­blica. A re­fe­rência da es­querda não pode ser ja­mais o que des­pertou, ali­mentou e for­ta­leceu de 2002 a 2016 os se­tores mais con­ser­va­dores e de di­reita da so­ci­e­dade bra­si­leira. Afinal, quem bancou a pre­sença de Temer nas chapas de 2010 e 2014 e as ali­anças com PMDB, PP, PRB, PTB, PSD e ali­mentou tantos focos do re­a­ci­o­na­rismo?

A re­fe­rência da es­querda só pode ser a cons­trução de fer­ra­mentas de luta ava­li­zadas pelos tra­ba­lha­dores e pelos mo­vi­mentos so­ciais, com or­ga­ni­zação desde a base da so­ci­e­dade, de baixo para cima, com in­clusão, in­de­pen­dência e ampla de­mo­cracia, de tal ma­neira que tenha prin­cí­pios, va­lores e pro­postas que não se con­fundem com os pro­gramas dos par­tidos tra­di­ci­o­nais da bur­guesia. A es­querda só terá o res­peito e a con­fi­ança dos tra­ba­lha­dores e do povo bra­si­leiro no mo­mento em que se li­vrar dos males do lu­lismo. Assim como a es­querda mun­dial se re­novou ao re­provar os crimes do sta­li­nismo, a es­querda bra­si­leira pre­cisa su­perar o lu­lismo para se re­en­con­trar com os tra­ba­lha­dores e com todos os que so­nham e lutam por um Brasil justo e igua­li­tário, livre e de­mo­crá­tico.

O que fra­gi­liza a es­querda não é a exis­tência da di­reita e do con­ser­va­do­rismo na so­ci­e­dade bra­si­leira. O que fra­gi­liza a es­querda é ser con­fun­dida com a ge­leia geral do lu­lismo, pagar por erros e des­vios dos go­vernos pe­tistas e ser com­pla­cente com esse es­pólio abo­mi­nável des­pe­jado nas costas dos tra­ba­lha­dores e do povo. Pre­ci­samos re­tomar a ini­ci­a­tiva da luta po­lí­tica sem re­pro­duzir erros do pas­sado re­cente.

Pre­ci­samos apostar no fu­turo com uma frente po­pular de es­querda capaz de agregar par­tidos, mo­vi­mentos so­ciais e todos que queiram cons­truir outro rumo para o Brasil. Só assim te­remos novos tempos de es­pe­rança.

http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12300-o-que-fazer-para-revitalizar-a-esquerda


FONTE: Controversia

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