domingo, 19 de maio de 2019

A herança universitária elitista contra os ecos da universidade popular



Pelo menos em sua maioria, as universidades públicas brasileiras não possuem mais o caráter elitista de outrora. A parte favelada, pobre, preta, LGBT, indígena, quilombola e tudo mais que representa a diversidade brasileira quer uma universidade realmente inclusiva e plural


Por Joaquim Alves da Silva Jr.* (publicado 17/05/2019 14h59)


Juventude, diversa e pensante, saiu às ruas para protestar contra a redução de verbas para a
educação pública e também para exigir novas formas de se pensar a formação 
universitária no país


"O conhecimento é para todos, você não entende isso porque é branco!" - Trecho do filme "O Abraço da Serpente"


Grande parte da população brasileira assiste consternada o processo de destruição dos fundamentos mínimos do Estado de Bem-Estar Social construídos no Brasil nos últimos trinta anos. Junta-se o toque fascistoide e entreguista implementados na base dos comandos dos bancos e do imperialismo capitalista.

Mas a intenção é falar da destruição do setor público da educação, em especial o ensino superior, partindo de uma experiência recente enquanto participante de parte das assembleias estudantis que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro decorrentes do anúncio dos cortes das bolsas na pós-graduação e nos outros níveis de ensino.

Alguns dados divulgados na internet para contextualizar a atual configuração dos estudantes nas universidades públicas federais: dois entre três discentes provêm de famílias cuja renda não ultrapassa 1,5 salário mínimo per capita. Aproximadamente 50% dest@s se autodeclaram pret@s ou pard@s. Como se não bastasse, as mulheres são a maioria nos cursos técnicos e de graduação.

Os dados são claros: pelo menos em sua maioria, as universidades públicas brasileiras não possuem mais o caráter elitista de outrora. Por tal motivo, a redução no orçamento das universidades não caracteriza somente uma chantagem inconstitucional de baixo nível, como também um projeto anunciado de eugenia aos modos tupiniquins. A intenção é clara: a dominação do ensino superior privado que obstruirá às pessoas com menor nível de renda o acesso ao ensino superior.

Como demonstram os dados do Atlas da Violência, a possibilidade de uma pessoa negra se manter viva no Brasil depende do nível educacional alcançado, evidenciando o cenário tenebroso por vir. Será certa a intensificação da morte de pessoas pretas e pobres, com anuência do Estado e da nossa sociedade rançosamente escravista.

Na verdade, até aqui não há novidades quanto ao histórico político da colônia tupiniquim. O Estado agiu ativamente na exclusão das porções negras da sociedade. Aliás, em quase todos os momentos de mudança institucional importante, o que ocorreu foi o reforço da cidadania de segunda classe para a população negra.

A República Velha é resultado de um golpe latifundiário-militar que relegou as populações negras outrora em condição de escravos às ruas sem qualquer tipo de apoio ou direitos. O Estado Novo de Vargas implantou o racismo institucional, fechou a primeira organização de representação preta brasileira, chegando inclusive a expulsar as poucas professoras negras atuantes no magistério.

A militarização das favelas decorrente da ditadura empresarial-militar segue de vento em popa. Aliás, o próprio surgimento da ciência no Brasil tem uma dimensão fortemente eugenista (Leia O Espetáculo das Raças - Cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 1993).

Em muito lembra os exemplos recentes do atual governo: entre idas e vindas, a Capes anuncia a volta das bolsas, mas somente para os programas classificados com notas altas, remetendo à histórica forma elitista de apoio às universidades mais prestigiadas e localizadas fundamentalmente nas regiões sul e sudeste do país.

Há um extenso material abordando o cenário catastrófico dos cortes do orçamento do ensino superior em relação às populações mais pobres, bem como o contra-argumento relativo ao impacto positivo da expansão das universidades pelo país.

Se até recentemente as favelas e os contingentes populacionais pobres eram tidos como "objeto" de pesquisa, atualmente boa parte deste mesmo "objeto" está presente nas universidades, ocupando as carteiras e lousas a partir dos seus lugares de fala, em grande medida graças aos programas de cotas raciais e de permanência estudantil.

Pessoas pretas, do meio rural e de comunidades tradicionais, que muitas vezes ainda são as primeiras da família a vivenciar o ambiente universitário, veem os estudos como uma oportunidade de vida, e não como mais um degrau a ser conquistado tendo carros e viagens para a Europa como prêmio. Além disso, adquire-se pensamento crítico da sua realidade e o impulso por transformá-la, tal como preconizado pelo mestre Paulo Freire.

Agora a lógica é diferente, pois não bastam apenas o retorno dos direitos. A parte favelada, pobre, preta, LGBT, indígena, quilombola e tudo mais que representa a diversidade quer uma universidade realmente inclusiva, plural, permeável à sociedade.

A reivindicação passa nesse momento não somente por mais investimento no ensino público de qualidade e gratuito, mas também pela transformação do modo de produzir conhecimento, tendo como critério-fim o intenso intercâmbio social. São claros e cristalinos o ecos para a emergência de uma Universidade Popular!

Neste sentido, há um lado bom do atual momento pelo qual devemos agradecer ao Sr. Bolsonaro. Ele conseguiu motivar, talvez pela primeira vez na história, a união da comunidade acadêmica pela defesa da universidade pública, num frutífero momento de reflexão entre o velho e o novo modo de fazer política estudantil.

É também chegada a hora de as entidades estudantis, associações docentes e de servidores públicos pararem de reproduzir o jogo de poder enfadonho e fragmentador para vislumbrar a facilitação do processo pragmaticamente político de mobilização pela defesa do ensino público.

Tal momento não é privilégio do Brasil. Os ataques às universidades estão ocorrendo em várias partes do planeta, nas mais diversas áreas, refletindo na ruptura de pesquisas em andamento, bem como a perseguição e a fuga de intelectuais.

Este momento decorre da expansão das notícias falsas como estratégias para deslegitimar o conhecimento crítico, manipular processos eleitorais e desestabilizar governos. Lutar pelo acesso e poder de construção do conhecimento tomou proporções globais.

Carl Sagan, um dos mais importantes intelectuais e divulgadores científicos da história, defendia que só temos duas opções: ou nos transformamos numa sociedade do conhecimento, ou seremos qualquer outra coisa (Leia: Carl Sagan - O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo, Companhia das Letras, 2006).

A "qualquer outra coisa" está aí nos governando, tomando decisões baseadas na alienação social.

Se não demonstrarmos a importância da produção do conhecimento para a sociedade, a ciência continuará a não fazer sentido e, por isso, será dispensável. Restará a ideia da "terra plana", mesmo que tal impropério seja divulgado de forma esquizofrênica em meios tecnológicos advindos da pesquisa científica.

É hora de sair para as ruas e enfrentar a repressão anunciada para sensibilizar a população em relação ao cenário obscuro que a falta de investimento no ensino público pode gerar. É um momento da história sem volta.


* Doutorando em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ


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