quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Esperança de mudanças


Por Paulo Passarinho *


A necessidade de mudanças é um desejo alimentado hoje pela maioria da população brasileira. Além das gigantescas manifestações populares que tomaram as ruas do país, em paralelo à realização da Copa das Confederações, em junho passado, recente pesquisa do Instituto Datafolha indica que 2/3 dos entrevistados se mostraram defensores de mudanças. De acordo com as perguntas apresentadas pelos pesquisadores do Instituto, 66% dos que foram ouvidos optaram pela afirmação "é melhor que o próximo presidente adote ações na maior parte diferentes das de Dilma”.

Ao mesmo tempo, Dilma, como presidente, tem o seu governo aprovado por 41% dos pesquisados, recuperando-se da queda identificada em sua popularidade, logo após as "jornadas de junho”. Este mesmo índice de aprovação foi também observado nos municípios com mais de 500 mil habitantes, onde o apoio de Dilma havia sofrido o seu maior desgaste.

Como explicar a aparente contradição desses números? Como entender uma pesquisa que indica, ao mesmo tempo, relativo apoio à presidente de plantão e à defesa de mudanças por 2/3 do universo dos pesquisados?

Sempre poderemos levantar problemas em relação à metodologia das pesquisas ou, mais grave, em relação às intenções subjacentes daqueles que as financiam e as divulgam. Sabemos, também, que, nesta altura dos acontecimentos, esses resultados que indicam popularidade dos atuais governantes, ou indicações de voto em possíveis candidatos, acabam sendo muito mais úteis para os articuladores de alianças e candidaturas aos cargos em disputa nas eleições do ano que vem. Por isso, todo o cuidado é pouco para qualquer análise que se tente fazer, a partir desses números.

Mesmo levando em conta essa realidade, farei uma tentativa de responder às perguntas assinaladas acima. E o que me inspira é a novidade do recente lançamento de mais um pré-candidato à presidência da República, o senador Randolfe Rodrigues, do PSOL.

Afinal, já me manifestei com relação aos principais nomes que vêm sendo apontados como possíveis candidatos para a eleição do ano que vem. Sem muita esperança de novidades – ou mudanças – , dei a minha opinião de que não passam de candidatos ao cargo de gerente de um modelo que já está definido, por bancos e multinacionais. Objetivamente, especialmente em relação ao modelo econômico em curso, que mudanças poderemos esperar com nomes como Dilma, Aécio ou Eduardo Campos? Ou mesmo com Lula, Serra ou Marina, as respectivas "sombras” dos três primeiros?

Um caminho para entender a aparente contradição dos números desta pesquisa do Datafolha é perceber que, na defesa de mudanças, a partir da frase escolhida pelos entrevistados, o que está assinalado é que há uma expectativa que o próximo presidente adote ações na maior parte diferentes das de Dilma.

"Na maior parte” deve ser entendida apenas como a necessidade de se manter alguma coisa que vem justamente do atual governo. Considerando o apoio que Dilma teve e tem das parcelas mais pobres da população, podemos concluir que são as iniciativas e programas voltados aos mais pobres o que deveria ser mantido. O Bolsa-Família, a política de reajustes reais do salário-mínimo e os mecanismos de crédito extensivos aos mais pobres são exemplos que certamente, no plano econômico, se enquadrariam nesta hipótese.

Contudo, no debate entre Dilma e os presidenciáveis do PSDB e do PSB, o rumo da conversa é outro. O debate está se dando sobre quem melhor poderia gerenciar o tripé macroeconômico – juros altos, câmbio flutuante e superávit primário. Dilma se defende como uma boa "gestora” do tripé e sofre pesado ataque da oposição de direita, que a acusa de "maquiar” as contas públicas e ser leniente frente à necessidade de um maior rigor fiscal. Sinceramente, um "papo pra boi dormir”.

Mas a oposição de direita, em particular os tucanos e os analistas da mídia dominante, vão mais à frente nas críticas. Acusam Dilma de ser uma "desenvolvimentista”, aproveitando-se da ignorância quase geral do que isso poderia significar e também da confusão, provocada pelo próprio lulismo, em relação a esse termo adjetivo. A confusão teórica é de tal monta que até mesmo correntes que se auto-definem como da esquerda socialista ou revolucionária também incorrem nesse tipo de erro. Conforme é de amplo conhecimento, os neopetistas, abraçados ao modelo dos bancos e das multinacionais, procuram se auto-diferenciar dos tucanos assumindo – de forma inteiramente falsa – que seriam desenvolvimentistas. Não sem razão, Lula por mais de uma vez tentou se comparar a JK, por exemplo.

Não vou me alongar neste ponto, mas para melhor conhecer de fato o que significa na literatura internacional o nacional-desenvolvimentismo e, em especial, a tentativa de tradução dessa experiência para o Brasil, recomendo a leitura do último livro de Reinaldo Gonçalves, Desenvolvimento às Avessas – verdade, má fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento (LTC Editora Ltda.). Neste livro, Reinaldo – que é professor titular de Economia da UFRJ – resgata as experiências históricas do nacional-desenvolvimentismo (EUA e Alemanha), as compara com experiências latino-americanas do século passado, entre as quais a brasileira (para o autor, "cópias infiéis” do nacional desenvolvimentismo original), e desmonta por completo a ideia de qualquer traço desenvolvimentista do atual modelo brasileiro.

Mas por que agora essa pré-candidatura do PSOL me anima? Porque, finalmente, parece que teremos um candidato que assume uma proposta de fato diferente à mesmice dos tucanos ou da mixórdia de partidos que sustentam o lulismo e a sua candidata à reeleição.

Andei olhando a página do pré-candidato e o seu bordão é sugestivo, especialmente para um senador que vem do Amapá: "Um norte para o Brasil popular e socialista”. Em uma carta "ao PSOL e aos que sonham com mudanças”, o pré-candidato afirma que "as candidaturas até agora apresentadas para o pleito do ano que vem representam, mesmo que com matizes diferenciadas, a continuidade do modelo econômico e de sociedade vigentes. Por caminhos diferentes essas candidaturas defendem a manutenção do superávit primário, o pagamento religioso da dívida pública, a continuidade da ciranda financeira, o modelo depredador de crescimento econômico e a criminalização dos movimentos sociais. Não representam o desejo das ruas e não promoverão as mudanças requeridas”. Mais direto, impossível.

Continuando, o jovem senador procura resgatar a nossa própria história: "esse sentimento de mudança relembra que há 50 anos, no Comício da Central do Brasil, eram propostas reformas de base, como a melhoria dos serviços públicos, a garantia da reforma agrária, a garantia da soberania nacional e das nossas riquezas. As referidas reformas foram abandonadas pelos líderes do golpe civil-militar de 1964 e não foram retomadas pelos governos civis que os sucederam. Manteve-se o desenvolvimento desigual, a concentração de renda e das terras, a exclusão de milhões de brasileiros do acesso aos mais elementares direitos sociais. O caminho escolhido foi de manter o modelo e somente mitigar os seus efeitos com programas assistenciais. Estamos vivenciando uma reprimarização da nossa economia, com a expansão da fronteira agrícola e crescente desrespeito e ataques aos povos indígenas e quilombolas”.

Não há dúvidas, portanto, que poderemos ter esperança de mudanças, em relação ao conservadorismo das pré-candidaturas até agora colocadas para a disputa presidencial. Afinal, o discurso de Randolfe Rodrigues aponta para o debate que é substantivo: a necessidade de alteração completa do modelo econômico, social e político que está em curso no Brasil, desde os anos 1990.


*Paulo Passarinho é economista e apresentador do programa de rádio Faixa Livre.


FONTE: Adital/Correio da Cidadania

domingo, 22 de dezembro de 2013

Por que a Suécia está revendo a privatização do ensino


Escolas introduziram publicidade maciça, pressão sobre professores
e estímulo permanente à competição.  Resultados lastimáveis estão
levando defensores da "novidade" a pedir desculpas públicas


Quando uma das maiores empresas privadas de educação faliu, alguns meses atrás, deixou 11 mil alunos a ver navios e fez com que o governo da Suécia repensasse a reforma neoliberal da educação, feita nos moldes da privataria com o Estado financiando a entrega dos serviços públicos aos oligopólios capitalistas e assim causando graves prejuízos para os trabalhadores e a população.

No país de crescimento mais acelerado da desigualdade econômica entre todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os aspectos básicos do mercado escolar desregulamentado estão agora sendo reconsiderados, levantando interrogações sobre o envolvimento do setor privado em outras áreas, como a de saúde.

Duas décadas após o início de seu experimento de “livre” mercado na educação, cerca de 25% dos alunos do ensino médio da Suécia frequentam agora escolas financiadas com recursos públicos, mas administradas pela iniciativa privada. Essa proporção é quase o dobro da média mundial. Quase metade desses alunos estudam em escolas parcial ou totalmente controladas por empresas de “private equity”, que compram participações em outras empresas.

Na expectativa das eleições do ano que vem, políticos de todos os matizes estão questionando o papel dessas empresas, acusadas de privilegiar o lucro em detrimento da educação, com práticas como deixar alunos decidirem quando aprenderam o suficiente para passar e não manter registro de notas.

O oposicionista Partido Verde – que, a exemplo dos moderados, apoia há muito as escolas de gestão privada, mas que agora defende um recuo – divulgou um pedido público de desculpas num jornal sueco no mês passado sob o título “Perdoe-nos, nossa política desencaminhou nossas escolas”.

No início da década de 1990, os pais recebiam vales do Estado para pagar a escola de sua preferência. A existência de escolas privadas foi autorizada pela primeira vez, e elas podiam até ter fim lucrativo.

O Reino Unido absorveu muitos aspectos desse sistema, embora não tenha chegado a permitir que escolas custeadas com dinheiro público visassem lucro. Empresas de educação suecas alcançaram países tão distantes como a Índia.

A falência, neste ano, da JB Education, controlada pela empresa dinamarquesa de “private equity” Axcel, foi o maior, mas não o único, caso do setor educacional sueco.

O fechamento da JB custou o emprego de quase mil pessoas e deixou mais de 1 bilhão de coroas suecas (US$ 150 milhões) em dívidas. Os alunos de suas escolas ficaram abandonados.

Uma em cada quatro escolas de ensino médio é deficitária e, desde 2008, o risco de insolvência subiu 188% e é 25% superior à média das empresas suecas, disse a consultoria UC. “São poucos os setores que exibem cifras tão ruins como essas”, disse a UC. Parte do problema resulta da distribuição etária da população, com os números totais das escolas secundárias sofrendo queda significativa desde 2008 e pouca probabilidade de voltar ao antigo nível por uma geração ou mais.

A permissividade do ambiente regulatório também contribuiu. A Suécia substituiu um dos sistemas escolares mais rigidamente regulamentados do mundo por um dos mais desregulamentados, o que levou a escândalos como um caso de 2011 em que um pedófilo condenado pôde abrir várias escolas de forma absolutamente legal.

“Eu disse muitas vezes que é mais fácil abrir uma escola do que uma barraca de cachorro-quente”, disse Eva-Lis Siren, diretora do sindicato de professores Lärarförbundet, o maior da Suécia.

As escolas privadas introduziram muitas práticas antes exclusivas do mundo corporativo, como bônus por desempenho para funcionários e divulgação de anúncios no sistema de metrô de Estocolmo. Ao mesmo tempo, a concorrência pôs os professores sob pressão para dar notas mais altas e fazer marketing de suas escolas.

No início, disseram que a participação privada na educação se daria por meio de escolas geridas individualmente e em nível local. Poucos vislumbraram que haveria empresas de “private equity” e grandes corporações administrando centenas de unidades. “Era uma coisa que não estava sequer nos sonhos mais delirantes das pessoas”, tenta se justificar Staffan Lundh, responsável por questões escolares no governo do primeiro-ministro na época e que hoje dirige a Skolverket, a agência sueca de escolas.

É tão obvio que envolvimento do setor privado e a queda da qualidade estão diretamente ligados que a Skolverket já começa a “vê indícios” de que as reformas de mercado contribuíram para aprofundar o fosso do desempenho escolar.

O referencial Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, nas iniciais em inglês) da OCDE pinta um quadro sombrio, em que a Suécia ocupa atualmente classificação inferior à da Rússia em matemática.

Vinte e cinco por cento dos garotos de 15 anos não conseguem entender um texto factual básico, disse Anna Ekstrom, diretora da Skolverket. Um estudo da agência divulgado no ano passado mostrou um diferencial crescente entre estudantes, em que um número cada vez maior deles não preenche os requisitos necessários para ingressar no ensino médio.

Uma pesquisa da GP/Sifo realizada neste ano com mil pessoas mostrou que 58% são amplamente favoráveis a proibir a geração de lucro em áreas financiadas com dinheiro público, como a educação.

O ministro da Educação, Jan Bjorklund, de centro-direita, dirigente do segundo maior partido da coalizão de governo, formada por quatro partidos, disse que empresas de “private equity” também deveriam ser vetadas como controladoras de empresas do setor de assistência médica, inclusive de assistência aos idosos.

“Acho que acreditamos cegamente demais na possibilidade de mais escolas privadas garantirem maior qualidade da educação”, disse Tomas Tobé, diretor da comissão de educação do Parlamento e porta-voz de educação do governista Partido Moderado. Como são “ingênuos” os neoliberais…

O fechamento de escolas e a piora dos resultados tiraram o brilho de um modelo de educação admirado e imitado em todo o mundo pelos mesmos privatistas e neoliberais que propagandeiam o mercado capitalista como uma espécie de solução milagrosa para todos problemas da sociedade, quando na verdade é o capitalismo quem gera todos os problemas e desigualdades sociais ao concentar toda a riqueza, poder e oportunidades nas mãos de uma classe dominante privilegiada, as custas da miséria, exploração e exclusão de grande parte da humanidade e do empobrecimento crescente dos povos.


FONTE: Outras Palavras

sábado, 14 de dezembro de 2013

Estratégia para privatização: o caso do HC/UFPE


Por Heitor Scalambrini Costa *                                                                      


Em recente artigo (UFPE: omissão sem punição, DP de 4/5), relatei a intencionalidade dos gestores do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Pernambuco com relação à situação de patente descaso para com essa unidade de saúde vinculada à Reitoria.


A bem da verdade, o intencional sucateamento do HC já vinha se acelerando desde o reitorado passado, que durou oito anos, evidenciando também irresponsabilidade de seus dirigentes frente aos objetivos desta unidade de saúde: (1) oferecer atendimento médico e hospitalar de qualidade à população, e (2) apoiar o ensino de graduação e pós-graduação do Centro de Ciências da Saúde.

Esse descalabro intencional –uma confissão de incompetência gerencial e administrativa– é agora utilizado como "desculpa” para se impor um novo modelo de gestão ao HC, que entrega a sua administração à Empresa de Serviços Públicos Hospitalares (EBSERH), sediada em Brasília – longe e alheia às legítimas prioridades locais. Além de ferir de morte a autonomia universitária.

As justificativas dadas para que essa empresa administre o HC são pura demagogia e populismo barato. Aponta-se como benefícios imediatos o que todos queremos ouvir (mas que não ocorre na prática): agilidade na execução de projetos de melhoria da infraestrutura, ampliação do número de leitos, rapidez no atendimento, implantação do prontuário eletrônico, contratação de recursos humanos para suprir as deficiências de profissionais de diversas áreas, e blá, blá, blá. Só falam vantagens.

O modus operandi de transferência do que é público para as empresas é bem conhecido. Ao longo do tempo, os serviços prestados são deliberadamente sucateados para então se apresentar uma solução mágica via privatização. Foi assim com as telecomunicações e a energia, e é, atualmente, com a educação, saúde, saneamento, segurança pública, e outros serviços essenciais para a população. Dizem que uma empresa – portanto, setor privado – tem mais competência gerencial, barateia as tarifas com a competição, etc., etc. Mas nada disso tem ocorrido. Veja-se o ocorrido na energia e na telefonia, cujas tarifas são as mais altas do mundo e a qualidade dos serviços, em decadência.

Como outros, país a fora, o HC/UFPE é um exemplo desse processo desumano e antiético, que atinge mais quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) – ou seja, a maioria da população.

Na UFPE, a situação tomou ares de "estelionato eleitoral”. O atual Reitor, quando candidato, declarou-se contrário à MP 520, que criava a EBSERH. E agora a defende, manejando o Conselho Universitário como um monarca absoluto. Na reunião de 2/12 p.p., quando se discutia se a UFPE passaria o HC para a EBSERH, o Reitor, fugindo de todas as regras de convivência democrática, quebrou protocolos e, de maneira autoritária e antidemocrática, impôs a sua vontade.

Além dessa "forçada de barra” do Reitor, registre-se a atitude vergonhosa dos Conselheiros da UFPE (com poucas exceções), os quais subscreveram uma nota de apoio ao Reitor, mostrando toda a sua subserviência. A nota do Conselho mais parece ter sido redigida pelo próprio mandatário máximo da instituição. Um vexame histórico para a UFPE, e uma vergonha para seus integrantes.

Esse distanciamento da Administração da UFPE em relação à comunidade motivou a ocupação da Reitoria – situação análoga a que motivou as manifestações de junho, em todo o país. A população foi às ruas, para dizer que os políticos não representam aqueles que os elegeram. A decisão autocrática do Reitor da UFPE de aderir a EBSERH repercutiu em toda a sociedade. Vieram respostas imediatas do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe) e do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe), que se manifestaram contra a entrega do HC. As entidades médicas, como a comunidade universitária, defendem maiores recursos para manutenção do hospital e remuneração dos servidores, e condenam esse modelo de gestão fora do SUS, o que implica em uma lógica de privatização, tornando a saúde uma mera mercadoria. O seja, ganhar dinheiro com a doença, e não investir na prevenção;

É hora de nos rebelarmos, de denunciarmos publicamente decisões contrárias aos anseios da comunidade. Eleições diretas apenas não bastam. É preciso democracia plena e participativa. De modo muito especial, na Universidade Pública.


* Professor da UFPE, graduado em Física pela Unicamp, mestre em Ciências e Tenologias Nucleares na UFPE, doutor em Energética pela Université d'Aix-Marseille III.

FONTE: Adital

domingo, 8 de dezembro de 2013

As consequências do declínio americano

Quando enfraquecimento da potência hegemônica torna-se nítido, abre-se
período de caos geopolítico. Surge, além das oportunidades, risco
de loucuras destrutivas


Por Immanuel Wallersten 

Tenho sustentado há muito que o declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica começou por volta de 1970; e que este processo, no início lento, precipitou-se durante a presidência de George W. Bush. Comecei a escrever sobre o tema em 1980. À época, a reação a tal argumento, em todos os campos políticos, foi rejeitá-lo como absurdo. Nos anos 1990, acreditava-se em todas as faixas do espectro político que, ao contrário, os EUA tinham alcançado o ápice de seu domínio unipolar.

No entanto, depois do estouro da bolha financeira, em 2008, a opinião de políticos, teóricos e do público em geral começou a mudar. Hoje, uma ampla percentagem das pessoas (embora não todas) aceita a realidade de ao menos algum declínio relativo do poder, prestígio e influência norte-americanos. Nos EUA, este fato é aceito com muita relutância. Políticos e teóricos rivalizam-se em apresentar fórmulas sobre como o declínio ainda pode ser revertido. Acredito que ele é irreversível.

A questão real, a meu ver, é sobre as consequências do declínio. A primeira é uma clara redução da capacidade dos EUA para controlar a situação mundial, e em particular a perda de confiança, por parte dos que eram os principais aliados de Washington. No último mês, devido às evidências apresentadas por Edward Snowden, soube-se que a Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA) espionou diretamente os principais líderes da Alemanha, França, México e Brasil, entre outros (assim como, é claro, inúmeros cidadãos destes países).

Estou certo de que os EUA envolveram-se em atividades similares em 1950. Mas em 1950, nenhum destes países teria ousado transformar sua ira em escândalo público, ou em reivindicar que os EUA interrompessem a ação. Se o fazem hoje, é porque agora os EUA precisam deles mais do que eles próprios precisam dos EUA. Os líderes atuais sabem que os EUA não tem outra escolha exceto comprometer-se – como fez o presidente Obama – a cessar estas práticas (mesmo que os EUA não pretendam cumprir a promessa…). E os líderes destes quatro países sabem, todos, que sua posição interna será fortalecida, e não enfraquecida, por apontarem publicamente para o nariz de Washington.

Até o momento, enquanto a mídia debate o declínio norte-americano, a maior parte das atenções voltam-se para a China, como um potencial novo hegemon. Também aqui, há falta de percepção. A China é, sem dúvida, um país cuja potência geopolítica está em ascensão. Mas chegar ao papel de potência hegemônica é um processo longo e árduo. Em condições normais, qualquer país precisaria de ao menos outro meio século para tornar-se capaz de exercer poder hegemônico. É um longo intervalo, durante o qual muito pode acontecer.

Num primeiro momento, não há sucessor imediato para o papel. O que costuma acontecer, quando o enfraquecimento da antiga potência hegemônica torna-se nítido para outros países, é que a relativa ordem do sistema-mundo é substituída por uma luta caótica entre múltiplos polos de poder, nenhum dos quais pode controlar a situação. Os EUA ainda são um gigante, mas um gigante com pés de barro. Ainda têm a força militar mais poderosa, mas não são muito capazes de usá-la em seu proveito. Tentaram minimizar seus riscos concentrando-se em guerras de drones. O ex-secretário de Defesa Robert Gates acada de denunciar que esta visão é totalmente irrealista, do ponto de vista militar. Ele lembra que as guerras só são vencidas com tropas no chão, e o presidente dos EUA está agora sob enorme pressão, vinda de políticos dos dois partidos e do sentimento popular, para não usar tropas no chão.

O problema, para todo mundo, numa situação de caos geopolítico, é o alto nível de ansiedade que ela produz e os riscos que oferece para que prevaleçam loucuras destrutivas. Os EUA, por exemplo, podem não ser mais capazes de vencer guerras, mas podem causar enorme dano para si mesmos e para outros por meio de ações imprudentes. Todas as suas tentativas de agir no Oriente Médio são derrotadas. No presente, nenhum dos atores na região (sim, eu disse “nenhum”) aposta mais no taco dos EUA. Isso inclui Egito, Israel, Turquia, Síria, Arábia Saudita, Iraque, Irã e Paquistão (para não falar da Rússia e China). Os dilemas políticos resultantes para os Estados Unidos foram tratados em grande detalhe no New York Times. A conclusão do debate interno a respeito, no governo Obama, foi um compromisso muito ambíguo, que leva o presidente a parecer vacilante, ao invés de forte.

Por fim, podemos estar certos de duas consequências reais, na próxima década. A primeira é o fim do dólar como moeda de último recurso. Quando isso acontecer, os EUA terão perdido uma grande proteção para seu orçamento e para o custo de suas operações econômicas. A segunda é o declínio – provavelmente sério – no padrão de vida relativo dos cidadãos e residentes nos EUA. As consequências políticas deste último movimento são difíceis de prever em detalhe, mas não serão irrelevantes.


Tradução: Antonio Martins | Imagem: Jacob Jordaens, O Rei Feijão

FONTE: Outras Palavras

domingo, 1 de dezembro de 2013

A cor dos homicídios no Brasil

Entre 2002 e 2010, o país apresentou uma inquietante tendência de aumento da distinção entre negros e brancos nos índices de mortalidade. Se os dados globais de homicídio mudaram pouco nesse período, em torno de 27 para cada 100 mil habitantes, foi em razão da queda dos homicídios brancos e crescimento dos negros

Por Julio Jacobo Waiselfisz

O Brasil está cada dia mais longe de manifestar respeito a um direito essencial, que é o direito à vida e à segurança sem distinção de raça ou cor, proclamado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, construído com base nos padrões internacionais da Organização Mundial da Saúde, é a única fonte que temos disponível, até os dias de hoje, que verifica em nível nacional o quesito raça/cor das vítimas de homicídio. Esse item só foi incorporado em 1996, mas nos primeiros anos de vigência seu preenchimento foi muito deficitário, melhorando de forma progressiva. Assim, a partir de 2002, quando a identificação da raça/cor já estava na casa de 92%, pudemos considerar os dados suficientemente confiáveis para iniciar as análises sobre o tema. O último dado divulgado, até o momento, corresponde ao ano de 2010.

Segundo os registros desse sistema, entre 2002 e 2010 morreram assassinados no país 272.422 cidadãos negros, o que dá uma média de 30.269 assassinatos por ano. Só em 2010 foram 34.983. Na cruenta Guerra do Iraque, as estimativas mais elevadas indicam que de 2003 até fins de 2009 morreram 110 mil pessoas, incluindo civis, o que significa 15,7 mil por ano. No Brasil, país que não aparenta ter conflitos étnicos, religiosos, de fronteiras, raciais ou políticos, morre assassinado o dobro de cidadãos negros todos os anos e mais do triplo – 52.260 em 2010 – de seus habitantes de todas as raças e cores.

Embora os números sejam preocupantes, inquieta mais ainda a tendência crescente dessa mortalidade discriminante. Se os índices globais de homicídio do país nesse período mudaram pouco, em torno de 27 homicídios para 100 mil habitantes, foi em razão de uma associação inaceitável de queda dos homicídios de brancos e crescimento dos homicídios de negros:

• Considerando o conjunto da população, entre 2002 e 2010 o número absoluto de vítimas brancas de homicídio caiu de 18.867 para 14.047, queda de 25,5%. Já as vítimas negras cresceram de 26.952 para 34.983, incremento de 29,8%.

• Com isso, o índice de vitimização negra na população total, que em 2002 era 65,4% – morriam assassinados, proporcionalmente, 65,4% mais negros que brancos –, em 2010 pulou para 132,3%.

• As taxas de vítimas entre os jovens negros – 15 a 29 anos de idade – duplicam, ou mais, os da população total. Assim, em 2010, se a taxa de homicídio da população negra foi de 36 em 100 mil, a dos jovens negros foi de 72 para 100 mil.

• Com isso, a vitimização de jovens negros, que em 2002 era de 71,7%, em 2010 pulou para 153,9% – morrem, proporcionalmente, duas vezes e meia mais jovens negros que brancos.

• Os dados também apontam que essa vitimização negra está crescendo de forma rápida e preocupante por suas implicações sociais e políticas.

Esse é o panorama nacional, a média do país. Mas, se olharmos para as unidades da federação e, mais ainda, para os municípios, veremos situações extremas que deveriam ser fonte de séria atenção:

• Seis estados apresentaram, em 2010, taxas de homicídio acima de 50 para 100 mil negros: Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pará, Pernambuco e Distrito Federal.

• Oito unidades ultrapassaram a marca dos 100 homicídios para 100 mil jovens negros: Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco, Mato Grosso, Distrito Federal, Bahia e Pará.

• Na Paraíba, em 2010, foram registrados 47 homicídios brancos e 1.335 homicídios negros. Considerando as respectivas populações, a taxa de homicídios brancos foi de 3,1 para 100 mil brancos contra 60,5 para 100 mil negros. Dessa forma, o índice de vitimização negra foi de 1.824: para cada branco morreram, proporcionalmente, dezenove negros.

• Diversos especialistas estabelecem que níveis acima de 10 homicídios para 100 mil habitantes caracterizam situação de violência epidêmica. Todos os estados brasileiros superam esse patamar. As unidades com as menores taxas de homicídios negros em 2010, Santa Catarina e Piauí, ostentavam, respectivamente, 13,3 e 15 homicídios para 100 mil negros.

• A heterogeneidade de situações torna-se ainda maior quando desagregamos os dados para os municípios do país, com casos extremos como o de Ananindeua, no Pará, onde em 2010 foram registrados 33 homicídios brancos e 705 negros, o que origina taxas de 29,3 homicídios para 100 mil brancos e 198,8 homicídios para 100 mil negros. No outro extremo, 2.936 municípios – 52,8% do total nacional – não registraram nenhum homicídio negro em 2010.

• Não muito diferente é o panorama de algumas capitais do país, como João Pessoa (PB), onde, em 2010, foram assassinados 16 brancos e 545 negros, taxas de 4,9 homicídios brancos e 140,7 negros. Ou Maceió (AL), com 17 vítimas brancas e 774 negras.

Dois fatores devem ser mencionados para a compreensão da situação. Em primeiro lugar: a crescente privatização do aparelho de segurança. Como já ocorrido com outros serviços básicos, como a saúde, a educação e, mais recentemente, a previdência social, o Estado vai se limitar a oferecer, para o conjunto da população, um mínimo – e muitas vezes nem isso – de acesso aos serviços e benefícios sociais considerados básicos. Para os setores com melhor condição financeira, serviços privados de melhor qualidade. Com a segurança vem ocorrendo esse processo de forma acelerada nos últimos anos. A pesquisa domiciliar do IBGE de 2011 é clara sobre as possibilidades diferenciais de acesso a serviços privados de melhor qualidade: as famílias negras tinham uma renda média de R$ 1.938,19, e as brancas, de R$ 3.183,07, isto é, 64,2% a mais.

Em segundo lugar, e reforçando o anterior, as ações de segurança pública distribuem-se de forma extremamente desigual nas diversas áreas e espaços geográficos, priorizando sua visibilidade política e seu impacto na opinião pública e, principalmente, na mídia. Assim, em geral áreas mais abastadas, de população prioritariamente branca, ostentam os benefícios de uma dupla segurança, a pública e a privada, enquanto as áreas periféricas, de composição majoritariamente negra, nenhuma das duas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, pedra fundamental de nossa moderna convivência, estabelece que: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal [...] sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Temos ainda um longo caminho para tornar realidade esse direito fundamental proclamado em 1948.


(*) Julio Jacobo Waiselfisz - Coordenador da Área de Estudos da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela).

Ilustração: Jean Jullien

FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil

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