segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

'Mulas': entre a pobreza e os papéis de gênero


Comunicar Igualdad


Por Sandra Chaher



Faz anos que se registra um aumento das mulheres encarceradas por delitos vinculados à venda e transportes ilegais de drogas na América Latina. De 2006 a 2011, a população penitenciaria feminina na região duplicou. Segundo um estudo publicado recentemente, as razões do envolvimento das mulheres em atividades delituosas são econômicas, no contexto do continente mais desigual do mundo. "Muitas delas são mães solteiras que entram no negócio das drogas somente para poder alimentar suas filhas e filhos” afirma o informe, tentadas pela "falsa ilusão” de poder combinar uma atividade econômica com o cumprimento dos deveres tradicionais de cuidado e educação de seus filhos.

Ano a ano, milhares de mulheres atravessam as fronteiras nacionais de seus países contratadas como "mulas” do narcotráfico. Seu trabalho consiste em transportar a droga que será comercializada e, uma vez ingressa no circuito do consumo, engrossará os cofres das máfias organizadas que operam em nível internacional.

Muitas dessas mulheres morrerão fazendo seu "trabalho”. Outras ocuparão cadeias, dentro ou fora de seus lugares de origem. Uma opção que a maioria não escolhe e que aparece principalmente por sua situação socioeconômica.

Um documento recente do Consórcio Internacional sobre Política de Drogas (IDPC) estudou a população feminina nas prisões para analisar os papéis desempenhados pelas mulheres nas redes criminosas na América Latina e os processos de envolvimento. Procura verificar como as relações de gênero e os fatores socioeconômicos modelam a configuração das redes de tráfico internacional de drogas e a inserção das mulheres.

A feminização da pobreza no olho da tormenta

"Mulheres, delitos de drogas e sistemas penitenciários na América Latina” é como se denomina o documento do IDPC publicado em outubro de 2013 e que esteve a cargo de Corina Giacomello, do Centro de Investigações Jurídicas da Universidade Autônoma de Chiapas (México).

Uma das primeiras conclusões que revela a investigação é que existe um aumento de mulheres encarceradas por delitos vinculados à venda e transporte de drogas ilegais e que isso se vincula, não só com seu maior envolvimento nas redes de narcotráfico, também ao crescimento da perseguição penal dessas atividades. A população penitenciária feminina da América Latina duplicou entre 2006 e 2011: passou de 40 mil para mais 74 mil mulheres presas, a maioria acusada de delitos menores relacionados com as drogas.

Além disso, o estudo mostra como as mulheres ocupam o lugar de mão de obra barata e facilmente substituível nas redes criminosas. "São apresentadas principalmente como cultivadoras, coletoras, vendedoras de varejo, correios humanos (o que é geralmente conhecido como "mulas” ou "burreras”, entre outros nomes) e introdutoras de drogas em centros de reclusão”, aponta o estudo.

No entanto, na América Latina, as circunstâncias socioeconômicas constituem a principal motivação pela qual as mulheres se veem obrigadas a exercerem uma atividade ilegal. Vale destacar que, tal como aponta o estudo, a região tem o maior índice de desigualdade econômica do mundo e uma alta percentagem da população que vive na pobreza e indigência são as mulheres. Estamos diante um fenômeno que se conhece como feminização da pobreza e que se manifesta tanto em áreas urbanas como rurais. Colocando em foco o perfil das mulheres encarceradas, revela-se que "muitas delas são mães solteiras que entram no negócio das drogas somente para poder alimentar seus filhos”.

Na conversa com a entidade Comunicar Igualdade, Corina Giacomellho reflete sobre esse ponto. "Na América Latina coexistem processos mistos a respeito do papel as mulheres: por um lado, estas têm maior acesso a educação e uma maior presença nos espaços públicos, mas também são as principais protagonistas da pobreza e da pobreza extrema. Muitas vezes isto se combina com a maternidade e a responsabilidade tradicional das mulheres para "os outros”. O número de famílias monoparentais chefiadas por mulheres e de gravidezes adolescentes entre meninas dos níveis socioeconômicos mais baixos está aumentando, o que implica um maior número de mulheres em situação de pobreza e responsáveis únicas de seus filhos”. A especialista destaca que frente a este panorama, atividades do microtráfico – como a introdução de drogas nos centros de reclusão ou a venda ao varejo – oferecem a "falsa ilusão” de poder combinar uma atividade econômica com o cumprimento dos deveres tradicionais. "Estas mulheres encontram normalmente emprego nas atividades da economia informal muito mal remuneradas ( atividades de limpeza, sobre todo) e desempenham uma dupla ou tripla jornada laboral. As redes de tráfico identificam muito bem as mulheres que relutam e as envolvem aproveitando sua vulnerabilidade, por um lado, e a falta de mecanismos preventivos e de proteção por parte do Estado”, enfatiza.

Relações de gênero, a "grande” porta de entrada

Poe outra parte, as relações de gênero constituem um fator primordial do porquê das mulheres cometerem estes delitos, já que muitas delas se envolvem a partir de suas relações familiares ou sentimentais, seja como namoradas, esposas, mães e filhas , e em cumprimento dos papéis designados para homens e mulheres.

Sobre este ponto, Giacomello ressalta que as relações de gênero são espaços de poder geralmente assimétricos em detrimento das mulheres e definem os âmbitos de acesso e das modalidades de inserção a eles, diferenciados para homens e mulheres. Frente a isto, se faz necessário adaptar a perspectiva de gênero para analisar espaços como o narcotráfico, "o que permite visibilizar como homens e mulheres se envolvem em atividades delituosas relacionadas com drogas de maneira diferente, a partir de diversos fatores, entre eles sua identidade de gênero e os papéis que a sociedade os atribuem”. Conclui que analisar como o processo de construção da feminidade e da masculinidade influi no processo de envolvimento e nas formas de participação no trafico de entorpecentes "pode ajudar a construir políticas públicas de prevenção diferenciadas e adequadas para os diferentes agentes”.

Para a especialista, esse analise se aplica da mesma maneira ao aspecto punitivo. Geralmente, o sistema de justiça e o sistema penitenciário estão projetados a partir das necessidades e as características dos homens: "assim outros grupos ( indígenas , LGBT, pessoas estrangeiras e mulheres , entre outros) são assimilados sob uma falsa igualdade e neutralidade da norma. Assim, introduzir uma perspectivade gênero permite novamente elaborar políticas punitivas e carcerárias que respondam as exigências e características reais das pessoas”.

Cárcere: abandono e violência

Outra das principais conclusões que lançou a investigação de IDPC é que, uma vez em contato com o sistema de justiça penal e penitenciário, as mulheres são submetidas a formas de violência especificas. Isto se evidencia nos distintos aspectos como a falta de centros próprios para mulheres; as violações e o abuso sexual exercido pelo pessoal dos centros, a existência de redes de tráfico entre seções femininas e masculinas; a falta de atenção aos problemas de saúde mental;os danos infligidos sobre as filhas e filhos das mulheres na prisão, no caso dos que vivem com elas como os dos estão fora; a menor oferta de oportunidade educativas, laborais e de capacitação , entre outros.

Frente a isto o estudo faz referencia a uma "cegueira de gênero” em relação as leis que regulam o sistema penitenciário. Ao ser consultada acerca de que passos deveriam dar os Estados para sanar a situação, Giacomello afirma: "Tanto em nível das Nações Unidas, como no sistema interamericano tem produzido diversos instrumentos que fazem referencia as mulheres em reclusão, o mais recente e completo texto de As Regras de Bangkok. Além disso, existe evidência empírica suficiente sobre as formas de discriminação das mulheres na prisão. Os estados deveriam retomar esses princípios e a essa evidência para sustentar e modificar suas estratégias punitivas e penitenciárias e assumir plenamente seu papel de garantidores dos Direitos Humanos das pessoas privadas da liberdade, aplicando medidas gerais e também específicas, de acordo com as necessidades de cada grupo na prisão”.

Recomendações para se fazer da melhor maneira

O estudo realiza uma série de recomendações aos Estados em relação a elaboração de dados, a prevenção,a modificação do sistema penitenciário e a implementação de uma adequada política de drogas.

Giacomello destaca entre estas recomendações, por um lado a necessidade de uma reelaboração das medidas punitivas relacionadas com drogas que impliquem redução de sentenças, a incorporação de outros fatores além de substância – conduta – quantidade para determinar o real papel desempenhado por uma pessoa nas redes de narcotráfico e aplicar uma sentença proporcional. Por outro lado, é necessário incorporar de maneira plena as Regras de Bangkok; assim como garantir o cumprimento do interesse superior das crianças em suas políticas relacionadas com a administração e aplicação da justiça e com a execução da sentença.

Soma a necessidade de trabalhar a fundo com o funcionamento público responsável de deter, processar e sentenciar a pessoas por delitos de drogas em matéria de perspectiva de gênero, políticas de drogas e direitos de drogas na matéria de perspectiva de gênero, políticas de drogas e direitos humanos. E finaliza introduzindo um aspecto polêmico: Descriminalizar de maneira integral e efetiva a posse e consumo de todas as drogas. Sobre este último ponto se vem dando avanços na América Latina, e particularmente em nosso país existem projetos de lei que avançam nesse sentido.


FONTE: Adital

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