sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: entre o veneno e o remédio


Por Viviane Gonçalves de Campos


Teresa Cristina Rego
Autora e editora de periódicos, Teresa Cristina Rego apresenta no v. 40, n. 2 do periódico “Educação e Pesquisa”, o artigo que reflete o sistema de avaliação do que se pesquisa, produz e publica na pós-graduação no Brasil. No gênero de ensaio a autora expõe seu ponto de vista sobre a avaliação de pesquisadores, universidades e periódicos e o que este processo pode causar para a realidade presente e futura do modo de fazer pesquisa no país. Preocupada com critérios quantitativos de avaliação, Teresa sinaliza a complexidade de discutir o tema e o processo envolvido, mas apresenta pistas para reflexão dos caminhos que estão e poderão ser trilhados na produção, avaliação e comunicação da ciência.

Atuando como pesquisadora, editora e membro do comitê científico do SciELO Brasil representando as áreas de humanas e sociais, a autora evidencia os desafios de se construir e consolidar políticas que visam a atender os interesses comuns dos editores e ao mesmo tempo estejam em sintonia com o processo de avaliação pelos órgãos nacionais e internacionais.

Teresa apresenta suas contribuições acerca das análises e estudos atuais com o intuito de instigar e ampliar o debate dos rumos do que se quer oferecer a pesquisa e a política de divulgação científica no Brasil, bem como dar continuidade ao diálogo para que novas perspectivas sobre conhecidos problemas possam gerar controvérsias e desafios futuros. Neste sentido de dialogar, convidamos Teresa a responder as questões abaixo para que possamos suscitar o assunto em busca de iniciar o processo reflexivo e construtivo em torno de ações concretas.

1) O texto comenta que a produção excessiva de trabalhos científicos ocasiona excesso de textos com baixa relevância. Por outro lado, dentro desta produção em massa existem muitos trabalhos de qualidade. Em sua opinião, como lidar com este dilema?

Entendo que a produção excessiva de trabalhos científicos seja apenas um dos aspectos capaz de ocasionar o aumento de textos de baixa relevância. Como tentei analisar no artigo recentemente publicado, intitulado Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: entre o veneno e o remédio¹, o problema da produção e comunicação científica no contexto contemporâneo (no Brasil e em outras partes do mundo) é bem mais complexo do que aparenta ser. E está relacionado ao modo equivocado como a pesquisa tem sido promovida e avaliada.

As medidas que vêm sendo tomadas para estimular e fomentar a pesquisa têm, na maior parte das vezes, tido um efeito contrário a que se pretende. As pessoas têm publicado mais, é verdade. O problema é que cada vez há um número maior de indivíduos, com menor pudor de publicar textos pouco relevantes. Não significa, portanto, que estejamos avançando do ponto de vista do conhecimento. A meu ver, neste caso o remédio já virou veneno porque erramos na dose administrada.

Acho que a situação que hoje está posta para os pesquisadores de modo geral é muito cruel. E o quadro é delicado para todos: para os que estão começando a pesquisar (que já entram num jogo altamente competitivo e muitas vezes pouco ético), para os mais experientes (que, despreparados para enfrentar as demandas e urgências dos novos tempos ficam entre aturdidos, decepcionados ou, o que é pior, submetidos, sem a menor possiblidade de crítica), para os que pesquisam de um modo superficial e produzem textos de baixa qualidade (e muitas vezes numa quantidade até bem expressiva), e para os pesquisadores sérios, que embora continuem a fazer os seus trabalhos de investigação com afinco, produzindo textos de qualidade, independentemente das cobranças e pressões que recebem por todos os lados, correm o risco de serem avaliados como “improdutivos” por não publicarem com a regularidade e frequência hoje exigida.

O quadro também não é nada animador para a gestão editorial dos periódicos científicos. Muitos editores, particularmente dos periódicos mais destacados, atualmente são obrigados a administrar um expressivo (e crescente) número de artigos submetidos bem como o aumento do volume de trabalho que envolve todo o processo de avaliação dos textos. Como é possível constatar, é um campo que clama por iniciativas capazes de romper o impasse e os desvios que acabaram se consolidando nestas últimas duas décadas.

2. No seu entendimento o que se caracteriza como política pensando em uma resposta ao produtivismo científico?

É preciso que se construa – com urgência – novos modos de fomentar, avaliar e socializar a produção científica. Este é o nosso grande desafio. O produtivismo, entendido como a obrigação de publicar em periódicos, como indicador praticamente exclusivo para a avaliação da produção científica e da qualidade do pesquisador ou da instituição a que ele pertence, está minando há tempos o solo acadêmico, arriscando afundar de vez um dos pilares do sistema público de ensino superior brasileiro, ambiente onde a maior parte das pesquisas ainda é gestada. Exatamente como já ocorreu – ou tem ocorrido – em outros contextos culturais, especialmente nos EUA, e em alguns países europeus. No âmbito brasileiro creio que já está mais do que na hora de ultrapassarmos a fase da denúncia e do desabafo e começarmos a pensar com seriedade, em alternativas concretas para combater as distorções decorrentes deste sistema de avaliação canhestro que está em vigor.

Entendo que o debate sobre o papel crítico das políticas e programas públicos de apoio e avaliação da pesquisa comunicada pelos periódicos já está, de certo modo, avançado. Hoje as críticas à política produtivista ecoam de todos os cantos. Elas são formuladas e proferidas por pesquisadores, editores e acadêmicos de praticamente todas as áreas. Muitos são aqueles que chamam a atenção não somente para o desperdício de recursos humanos, materiais e financeiros decorrentes desta lógica, como também para a premência de se encontrar alternativas para verificar o valor científico de uma pesquisa realizada ou de um trabalho publicado. Estes defendem que se erradique, por exemplo, a tirania do fator de impacto.

Precisaremos, a partir de agora, colocar este conhecimento a serviço da superação das ambivalências que envolvem os processos de estímulo à produção e comunicação científica. Os destinos que a pesquisa, os pesquisadores, seus periódicos e as universidades tiveram nos países que começaram mais cedo a implantar este tipo de política já sinalizam os efeitos perversos que tais processos podem levar. Poderemos aprender com estas lições. Não precisaremos repetir os erros já cometidos anteriormente. 

3) Na página 341 sua citação trata que o “produtivismo, além de causar profundo mal-estar na academia, tem provocado sérias deformações, afetando – talvez de modo irreversível – os rumos da produção e comunicação científica em nosso país e em outras partes do mundo”. Por que nada se faz de concreto para atenuar esta situação uma vez que a comunidade de pesquisadores parece incapaz por si mesma de superá-la?

Eu também gostaria de saber a resposta para esta pergunta. Realmente não entendo porque precisamos, no Brasil, seguir rotas ultrapassadas. E o que é pior, apresentá-las como se fossem medidas de vanguarda.

Boa parte dos países que adotou a lógica produtivista, especialmente a métrica para mensurar a qualidade da produção científica, hoje reconhece que acabou por desperdiçar tempo, dinheiro e energia. Atualmente muitos representantes dos principais centros de pesquisas destes países lutam para atenuar os efeitos maléficos que tais medidas acarretaram. E aqui o que acontece? Há uma crescente pressão para que os professores de pós-graduação e seus orientandos publiquem, já que a produção científica (leia-se a publicação de artigos) dos docentes e discentes é o item com o maior peso nas decisões sobre a avaliação dos programas e sobre a distribuição das oportunidades e dos recursos financeiros para o custeio de bolsas, auxílios e outros tipos de apoio.

Como editora de um periódico e como representante dos editores da área de Ciências Humanas no SciELO durante estes últimos anos, tive a oportunidade de constatar o quanto tem crescido o número de submissão de artigos e de periódicos no cenário brasileiro. Conforme eu comento no artigo, isto em princípio não deveria ser visto com maus olhos. Ao contrário, poderia indicar que estamos fazendo mais pesquisas e precisando de mais espaço para anunciar resultados e prestar contas à sociedade. Ledo engano. Se analisados em conjunto constatamos que, a maior parte dessas produções é constituída de documentos que testemunham o esforço de sujeitos (ou de grupos) cada vez mais premidos pela necessidade de publicar (e de ser citado!) para mostrar e comprovar produção (apenas mais uma linha no malfadado Currículo Lattes) e não para, de fato, construir e disseminar conhecimentos e descobertas.

Mas tentando responder à questão colocada: acho que se trata de um problema de vontade política. E também do tipo de política científica adotada. Ou seja, tudo depende do rumo que se quer dar à pesquisa e à política de divulgação científica no Brasil. E isso, envolve, mas extrapola o âmbito mais específico da própria comunidade acadêmica. Nossos governantes e seus representantes, que atuam nos órgãos ligados à avaliação e ao fomento da pesquisa, também devem tomar consciência da gravidade do momento em que nos encontramos. E isto deve ser feito antes que seja tarde demais.

4) A senhora propõe à rede SciELO uma quarta linha de ação voltada a ação política. Qual seria o envolvimento dos editores neste processo? O que eles podem fazer?

O que propus é que a rede SciELO desenvolva uma ação política de combate às mazelas do sistema de produção, avaliação e comunicação da ciência hoje vigente. Acho que isto pode ser feito por meio do estímulo à reunião e atuação conjunta dos editores dos periódicos que pertencem à coleção. Esse pode vir a se transformar num fórum valioso onde os editores possam encontrar ajuda mútua para conseguir lutar, do ponto de vista político, para que esse quadro preocupante do produtivismo se altere.

Pouco adianta brigarmos isoladamente para que nossos periódicos simplesmente alcancem maiores índices de aceitação e de citação. Não podemos nos ver como concorrentes ou inimigos. Estamos todos num mesmo barco. Precisamos nos unir, pois enfrentamos os mesmos problemas e pressões, já que nossos periódicos espelham o modo de como a ciência vem sendo conduzida no Brasil e no mundo. Por essa razão, tenho defendido a tese de que não é possível tratar comunicação científica separadamente da produção científica. Com isto quero dizer que é preciso pensar em alternativas que aprimorem o modo de produzir e avaliar pesquisa no Brasil. Do contrário, continuaremos a sentir os efeitos perversos das más condutas em pesquisas científicas, tais como: a proliferação da submissão de artigos imaturos, incompletos, “fatiados”, manipulação, falsificação ou fabricação de dados ou de resultados, plágio, autoplágio – apresentação total ou parcial de textos já publicados pelo mesmo autor como se fossem inéditos, coautoria de fachada, etc., nos nossos periódicos. Quem sabe assim conseguiremos ampliar a relevância, qualidade e impacto daquilo que publicamos.

Nota

¹ REGO, T. C. Produtivismo, pesquisa e comunicação científica: entre o veneno e o remédio. Educação e Pesquisa. 2014, vol. 40, n. 2, pp. 325-346. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022014000200003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt&ORIGINALLANG=pt

Referências

BENCHIMOL, J. L., CERQUEIRA, R. C., and PAPI, C. Desafios aos editores da área de humanidades no periodismo científico e nas redes sociais: reflexões e experiências. Educcação e Pesquisa. 2014, vol. 40, n. 2, pp. 347-364. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022014000200004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt&ORIGINALLANG=pt

PACKER, A. L. A eclosão dos periódicos do Brasil e cenários para o seu porvir. Educação e Pesquisa. 2014, vol. 40, n. 2, pp. 301-323. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022014000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt&ORIGINALLANG=pt



Sobre Viviane Gonçalves de Campos

Bibliotecária e mestre em ciência da informação pelas Universidades Federais de Santa Catarina e do Paraná. Atualmente atua como consultora em projetos editoriais incluindo livros, revistas, blogs em âmbito nacional e internacional.



terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A opção do país pelo agronegócio faz o brasileiro consumir 5,2 litros de agrotóxicos por ano


O agronegócio cria áreas de monocultivo que destroem toda a biodiversidade, tornando o ambiente propício para elevadas populações de insetos e doenças

  
Por João Vitor Santos - Instituto Humanas Unisinos

Pensar um Brasil que não priorize uma produção agrícola em latifúndios de monoculturas para exterminar o uso de agrotóxicos. É o que propõe Fran Paula, engenheira agrônoma da coordenação nacional da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Para ela, “o agronegócio utiliza largas extensões de terras, criando áreas de monocultivos. Dessa maneira, destrói toda a biodiversidade do local e desequilibra o ambiente natural, tornando o ambiente propício para o surgimento de elevadas populações de insetos e de doenças”. E a priorização por esse tipo de produção se reforça no conjunto de normas que concedem muito mais benefícios a quem adota o cultivo à base de agrotóxicos ao invés de optar por culturas ecológicas. Um exemplo: redução de impostos sobre produção desses agentes químicos, tornando o produto muito mais barato. Segundo Fran, em estados como Mato Grosso e Ceará essa isenção de tributos chega a 100%.

E, ao contrário do que se possa supor, a luta pela redução do consumo de agrotóxicos não passa necessariamente por uma reforma na legislação brasileira. Para a agrônoma, basta aplicar de forma eficaz o que dizem as leis e cobrar ações mais duras de órgãos governamentais. O desafio maior, para ela, é enfrentar a bancada ruralista e sua bandeira do agronegócio, além de cobrar ações que levem à efetivação da Política Nacional de Agroecologia. “A bancada ruralista ocupa hoje mais de 50% do Congresso brasileiro e vem constantemente atuando na tentativa do que consideramos legalizar a contaminação. Isso à medida que exerce forte pressão no governo sobre os órgãos reguladores, dificultando processos de fiscalização, monitoramento e retirada de agrotóxicos do mercado. E, ainda, vem tentando constantemente flexibilizar a lei no intuito de facilitar a liberação de mais agrotóxicos a interesse da indústria química financiadora de campanhas eleitorais”, completa.

Fran Paula é engenheira Agrônoma e também técnica da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE. Hoje, atua na coordenação nacional da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida. É um grupo que congrega ações com objetivo de sensibilizar a população brasileira para os riscos que os agrotóxicos representam e, a partir disso, adotar ações para acabar com o uso dessas substâncias.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - No último dia 3 de dezembro, dia internacional da luta contra agrotóxicos, a Campanha contra os Agrotóxicos divulgou que cada brasileiro consome 5,2 litros de agrotóxicos por ano. Como chegaram à contabilização desses dados? O que esse valor indica acerca do uso de agrotóxicos no Brasil em relação a outros países do mundo que utilizam esses produtos na agricultura?

Fran Paula - O dado se refere à exposição ocupacional, ambiental e alimentar a que o brasileiro se encontra, devido ao uso indiscriminado de agrotóxico no país. O número se refere à média de exposição de agrotóxicos utilizados no ano em relação ao número da população brasileira. Esse número se eleva quando a referência são alguns estados produtores de grãos, como o caso do Estado de Mato Grosso. No ano de 2013, utilizou 150 milhões de litros de agrotóxicos, levando a população do Estado a uma exposição de 50 litros de agrotóxicos por pessoa ao ano.

Um dado revela que o Brasil é, desde 2008, o campeão no ranking mundial de uso de agrotóxicos. Ou seja, somos o país que mais consome venenos no Planeta.

IHU On-Line - A que atribuem esse consumo elevado de agrotóxicos?

Fran Paula - A opção clara da política agrícola brasileira pelo agronegócio é a grande responsável pela situação. O agronegócio utiliza largas extensões de terras, criando áreas de monocultivos. Por exemplo: soja, milho, algodão, eucalipto ou cana-de-açúcar. Dessa maneira, destrói toda a biodiversidade do local e desequilibra o ambiente natural, tornando o ambiente propício para o surgimento de elevadas populações de insetos e de doenças. Por isso este modelo de produção é dependente da química, só funciona com muito veneno. E, além de usar grande quantidade de agrotóxicos e transgênicos, não gera empregos e não produz alimentos.

A bancada ruralista ocupa hoje mais de 50% do Congresso brasileiro e vem constantemente atuando na tentativa do que consideramos legalizar a contaminação. Isso à medida que exerce forte pressão no governo sobre os órgãos reguladores (principalmente saúde e meio ambiente), dificultando processos de fiscalização, monitoramento e retirada de agrotóxicos do mercado. E, ainda, vem tentando constantemente flexibilizar a lei no intuito de facilitar a liberação de mais agrotóxicos a interesse da indústria química financiadora de campanhas eleitorais. Política essa que permite absurdos como o uso de agrotóxicos já banidos em outros países, havendo comprovação científica do grau de periculosidade destes produtos na saúde dos humanos e do meio ambiente.

No Brasil, um conjunto de normas reduz a cobrança de impostos sobre agrotóxicos. E a isenção destes impostos (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS, Programa de Integração Social – PIS e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público - PASEP, Tabela de Incidência do Imposto Sobre Produtos Industrializados - TIPI) pode chegar a 100% em alguns estados como Ceará e Mato Grosso.

Contradizendo as promessas das sementes transgênicas, os transgênicos elevaram o uso de agrotóxicos no país. Um exemplo é o da soja Roundup Ready, resistente ao herbicida glifosato. Com a entrada da soja transgênica, o consumo de glifosato se elevou mais de 150%. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, considerando o potencial aumento de resíduos do herbicida, determinou o aumento de 50 vezes no Limite Máximo Residual - LMR do glifosato na soja transgênica, passando de 0,2 mg/kg para 10 mg/kg. Assim, a ANVISA demonstra que os argumentos da Monsanto anunciando uma diminuição do uso de herbicida com o advento da soja transgênica não são verificáveis na realidade, o que já estava previsto com a expansão da indústria de Roundup no Brasil.

IHU On-Line - Quais são as culturas que recebem uma carga mais pesada de defensivos?

Fran Paula – Primeiramente: não existem defensivos. Defesa para quem? E do quê? Não existe essa terminologia na legislação. O termo é agrotóxicos e assim devemos tratar do assunto. O termo defensivo é utilizado pelos setores do agronegócio, incluindo as indústrias que os produzem, para tirar de foco a função desses produtos e seus efeitos nocivos à saúde da população e do meio ambiente. Da mesma forma que uso seguro de agrotóxicos é um mito. Isso faz parte do lobby da indústria química para esvaziar o debate sobre o risco que os agrotóxicos representam.

Entre os mais utilizados, destacamos: o Abamectina, um tipo de inseticida altamente tóxico, utilizado em plantações de batata, algodão e frutíferas; o Acefato, que é um inseticida que pertence à classe toxicológica III - Medianamente Tóxico e que é utilizado com frequência em plantações de couve, amendoim, brócolis, fumo, crisântemo, repolho, melão, tomate, soja, rosas, citros e batata; e o Glifosato, um herbicida bastante utilizado no combate a ervas indesejáveis no cultivo de soja, principalmente.

Não é o tipo de cultura que define a quantidade de agrotóxico utilizada. O que define é o modelo de produção. Posso ter um pimentão com alta concentração de agrotóxico, como posso ter um pimentão orgânico.

IHU On-Line - Quais os efeitos na saúde de quem consome alimentos com traços de agrotóxicos?

Fran Paula - Não existe agrotóxico que não seja tóxico. Portanto, não há nenhum que não apresente risco à saúde humana mediante exposição e posterior contaminação. Os agrotóxicos provocam dois tipos de efeitos: os agudos, provocados nas horas seguintes à exposição; e os crônicos, que podem se manifestar em meses, anos e até décadas, como resultado da acumulação dos resíduos químicos no organismo das pessoas.

Um exemplo nacional que tivemos de contaminação por agrotóxicos e acumulação destes resíduos no organismo foi a pesquisa que revelou contaminação do leite materno. Os efeitos de resíduos de agrotóxicos no nosso organismo podem manifestar complicações como alterações genéticas, problemas neurotóxicos, má-formação fetal, abortos, efeitos teratogênicos, desregulação hormonal, desenvolvimento de células cancerígenas. Reforço que a maioria dos agrotóxicos possui ação sistêmica e que medidas como lavar superficialmente os alimentos com água e sabão não são suficientes para eliminar os resíduos de agrotóxicos.

IHU On-Line - A campanha também alerta que há regiões no país em que o consumo de agrotóxicos é ainda maior. Quais são essas regiões e por que o consumo é tão elevado?

Fran Paula - Como já havia citado anteriormente, em alguns estados onde o agronegócio exerce um aparelhamento político forte e detém grandes áreas de monocultivos de soja e outras commodities, o consumo de agrotóxicos é maior.

Estão submetidas a problemas de saúde devido à exposição direta aos agrotóxicos, devido à contaminação da água para consumo, do ar que respiram e do solo. Ainda sofrem as ameaças da pulverização aérea, como os milhares de casos pelo Brasil de populações que são banhadas diariamente por venenos, principalmente pelo desrespeito às medidas legais quanto aos limites desta pulverização tanto aérea quanto terrestre no entorno dessas comunidades. A este contingente de populações expostas a agrotóxicos cobramos atenção especial dos serviços de saúde como forma de promoção da vida e sobrevivência destas pessoas. Por isso uma das bandeiras de luta da Campanha tem sido a criação de áreas livres de agrotóxicos e transgênicos.IHU On-Line - Além do consumo de alimentos que foram expostos a agrotóxicos, a que riscos as pessoas que vivem em regiões de altos índices de aplicação desses defensivos estão submetidas?

IHU On-Line - O que é possível fazer para frear esse uso tão grande de agrotóxicos? Quais as alternativas junto às plantações para o controle de pragas?

Fran Paula - Analisemos a história da agricultura no mundo, com registros de 12 mil anos atrás. Já a história dos agrotóxicos tem registros de pouco mais de 50 anos. Ou seja, desde muito tempo é possível produzir sem usar agrotóxicos. São crescentes os investimentos em países da União Europeia, Japão, Índia, em práticas e técnicas de produção de não uso de agrotóxicos. O Brasil é um país atrasado na medida em que ainda utiliza um arsenal de produtos químicos provenientes da guerra. Nosso país precisa urgentemente rever o modelo de produção quem vem adotando, centrado no Agronegócio. Esse modelo concentra a terra, cria áreas de monocultivos e desertos verdes, adota pacotes tecnológicos (adubos químicos, sementes híbridas e transgênicas e agrotóxicos) ofertados pelas indústrias químicas. É preciso implementar o Plano Nacional de Redução de Agrotóxicos – PRONARA, vinculado à Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, construído em 2014. Essa legislação prevê ações no campo da pesquisa de tecnologias sustentáveis de produção, crédito para o fortalecimento da agricultura de base agroecológica responsável pela produção de alimentos, investimentos em assistência técnica e extensão ruralagroecológica aos agricultores, retirada imediata dos agrotóxicos já banidos em outros países e que são utilizados livremente no Brasil e fim do subsídio fiscal aos agrotóxicos. Além disso, adoção de práticas de menor impacto, como o controle biológico de pragas e o manejo integrado; adoção de práticas agroecológicas de produção, que permitem a seleção natural das culturas, e variedades crioulas com maior resistência à incidência de insetos e doenças e que permitam a diversificação da produção e oferta de alimentos com base nos princípios da segurança alimentar e nutricional.

IHU On-Line - Uma das bandeiras da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida é o fim da prática de pulverização aérea das lavouras. Por quê?

Fran Paula - A pulverização aérea de agrotóxicos é uma prática ameaçadora à vida. Diversos estudos científicos e casos de intoxicação humana e contaminação ambiental têm reiterado que não existem condições seguras para pulverização aérea. Além de tratar-se de uma técnica atrasada em termos de eficiência de aplicação, requer que sejam pulverizadas grandes quantidades de veneno para se atingir a quantidade desejada do ponto de vista agronômico, por conta das elevadas perdas. Estudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA mostraram que o percentual de perda pode chegar a mais de 80% em algumas culturas. Esse elevado percentual corrobora o fato de que grande parte do que é pulverizado atinge outros alvos que não os desejados, podendo contaminar água, lençóis freáticos e ainda atingir diretamente pessoas e outros seres vivos.

Entre os casos de contaminação via pulverização aérea, temos o ocorrido em 2013 na Escola Municipal de São José do Pontal, localizada na região rural do município de Rio Verde, Goiás. Ali, essa prática resultou em diversos casos de intoxicação aguda de trabalhadores e de alunos de 9 a 16 anos. Nesse episódio, a pulverização teria sido feita sobre a lavoura de milho localizada a poucos metros da escola, não obedecendo aos limites mínimos de distância recomendados na legislação. O produto pulverizado, segundo a empresa de aviação agrícola, era o inseticida Engeo Pleno, fabricado pela multinacional Syngenta. Um de seus componentes é o tiametoxam, do grupo dos neonicotinoides, produto altamente tóxico para abelhas e que por isso havia sido proibido para uso por pulverização aérea pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente - IBAMA. No entanto, após pressão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, a proibição foi suspensa.

IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre a legislação brasileira no que diz respeito à liberação e uso de agrotóxicos? Recentemente, a ANVISA aprovou a iniciativa para propor o banimento dos agrotóxicos Forato e Parationa Metílica. Como avalia essa iniciativa e quais as implicações desses agrotóxicos?

O efeito danoso dos agrotóxicos é reconhecido e estabelecido em lei. A ANVISA é o órgão responsável no âmbito do Ministério da Saúde pela avaliação da toxicidade dos agrotóxicos e seus impactos à saúde humana; emite o parecer toxicológico favorável ou desfavorável à concessão do registro pelo Ministério da Agricultura.

Fran Paula - O problema em geral não está na lei 7802/89, que define a Legislação dos Agrotóxicos no Brasil, e sim no não cumprimento da mesma. Quanto ao registro de agrotóxicos, a lei estabelece a proibição para os quais o Brasil não disponha de métodos para desativação de seus componentes, de modo a impedir que os seus resíduos remanescentes provoquem riscos ao meio ambiente e à saúde pública, para os quais não haja antídoto ou tratamento eficaz no Brasil. Ainda proíbe registro aos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica, que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, de acordo com procedimentos e experiências atualizadas na comunidade científica. Não permite registro de agrotóxicos que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de laboratório com animais tenham demonstrado, segundo critérios técnicos e científicos atualizados e também cujas características causem danos ao meio ambiente. O risco maior está nas inúmeras tentativas de flexibilização da lei por parte da bancada ruralista, cujo propósito é defender os interesses das indústrias químicas e assim liberar o registro de mais agrotóxicos no mercado.

IHU On-Line - Quais os pontos mais urgentes em que a legislação precisa avançar ou ser revista?

Fran Paula - A legislação brasileira, apesar de conter normas de restrição ao registro de agrotóxicos, não estipula tempo para reavaliação dos agrotóxicos. Acaba ficando a critério dos órgãos responsáveis pelo registro solicitarem a mesma. No Brasil, a validade do registro do produto é de tempo indeterminado, ao contrário de países como Estados Unidos, onde o registro tem validade por 15 anos. Na União Europeia são 10 anos, no Japão três anos e no Uruguai quatro anos. Apesar de a lei atribuir responsabilidades quanto ao monitoramento e fiscalização, o cenário é de uma capacidade reduzida dos órgãos de saúde e de meio ambiente. Isso ocorre nas três esferas de governo, no que diz respeito ao desenvolvimento de serviços de monitoramento e controle de agrotóxicos.

IHU On-Line - Um dos herbicidas mais usados e conhecidos no Brasil e no mundo é o Glifosato, chamado “mata mato”. Como acaba com praticamente todas as ervas daninhas, além da aplicação em zona rural, há municípios que usam em áreas urbanas, fazendo o que algumas pessoas chamam de “capina química”. Que problemas para o meio ambiente, no campo e na cidade, o uso indiscriminado dessa substância pode causar?

Fran Paula - Mata mato é um dos nomes comerciais do herbicida Glifosato. Possui uma ação sistêmica, ou seja, ao ser aplicado nas folhas das plantas é translocado até as raízes e é não seletivo. Mata todo tipo de plantas, exceto as transgênicas que apresentam resistência a este princípio ativo. Dentre os riscos ao meio ambiente estão a contaminação do lençol freático e do solo, com a morte de microrganismos e consequente perda da fertilidade. E se tratando de capina química, há uma nota técnica da ANVISA de 2010 recomendando a proibição dessa prática em ambientes urbanos, devido à exposição da população ao risco de intoxicação, além de contaminar a fauna e a flora local.

IHU ON-Line - E para a saúde de quem se expõe ao Glifosato?

Fran Paula - Há estudos toxicológicos do Glifosato em diversos países e todos são unânimes nos resultados para efeitos tóxicos na saúde. Estes estudos revelam que a toxicidade do Glifosato provoca os seguintes efeitos: toxicidade subaguda (lesões em glândulas salivares), toxicidade crônica (inflamação gástrica), danos genéticos (em células sanguíneas humanas), transtornos reprodutivos (diminuição de espermatozoides e aumento da frequência de anomalias espermáticas) e carcinogênese (aumento da frequência de tumores hepáticos e de câncer de tireoide). Os sintomas de intoxicação incluem irritações na pele e nos olhos, náuseas e tonturas, edema pulmonar, queda da pressão sanguínea, alergias, dor abdominal, perda de líquido gastrointestinal, vômito, desmaios, destruição de glóbulos vermelhos no sangue e danos no sistema renal. O herbicida ainda pode continuar presente em alimentos num período de até dois anos após o contato com o produto. Em solos pode estar presente por mais de três anos, dependendo do tipo de solo e clima. Apesar da classificação toxicológica que recebe no Brasil, o produto é considerado um biocida. Tanto que já foi banido de países como a Noruega, Suécia e Dinamarca.

IHU On-Line - Qual o papel de outros órgãos, como Ministério Público, nas discussões e no combate ao uso indiscriminado de agrotóxicos?

Fran Paula - A atuação do Ministério Público é fundamental diante do contexto e cenário que o Brasil se encontra, de ineficiência de aplicação da lei e da omissão dos órgãos de monitoramento e fiscalização. O Ministério Público do Trabalho lançou em 2009 o Fórum Nacional de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos. Criado para funcionar como instrumento de controle social, o Fórum Nacional conta com a participação de organizações governamentais e não governamentais, sindicatos, universidades e movimentos sociais, além do Ministério Público. Além do Fórum Nacional, foram sendo criados os fóruns estaduais de combate aos impactos dos agrotóxicos com o mesmo objetivo. A Campanha participa do Fórum Nacional e dos estaduais, com objetivo de levantar elementos e embasar o Ministério Público em ações que visem à redução do uso de agrotóxicos e promoção da agroecologia.

IHU On-Line - A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida já destacou que 2015 será um ano em que se desenvolverão diversas políticas nacionais de agroecologia e produção orgânica. Que políticas são essas?

Fran Paula - Em agosto de 2012, a presidenta Dilma Rousseff instituiu a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO, por meio do Decreto nº 7.794, de 20-08-2012, resultado de intensos diálogos e reivindicações dos movimentos sociais. A partir de então, governo e sociedade civil se debruçaram na tarefa de construção de um Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PLANAPO.

No campo produtivo, o Plano propõe mecanismos capazes de atender à demanda por tecnologias ambientalmente apropriadas, compatíveis com os distintos sistemas culturais e com as dimensões econômicas, sociais, políticas e éticas no campo do desenvolvimento agrícola e rural. Ao mesmo tempo, apresenta alternativas que buscam assegurar melhores condições de saúde e de qualidade de vida para a população rural. Assim foi criado, no âmbito da PNAPO, o Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos – PRONARA. É construído numa parceria da Campanha com diversos ministérios e órgãos subordinados, além de outros movimentos sociais. O PRONARA contém 35 iniciativas que, se levadas a cabo, melhorariam drasticamente as condições de saúde do povo brasileiro em relação aos agrotóxicos. A lógica do PRONARA se desenvolve como base em iniciativas estruturadas de forma articulada, cobrindo seis dimensões: registro; controle, monitoramento e responsabilização da cadeia produtiva; medidas econômicas e financeiras; desenvolvimento de alternativas; informação, participação e controle social; e formação e capacitação.

O prazo de três anos para execução desta primeira edição do Plano Nacional de Agroecologia vincula suas iniciativas às ações orçamentárias já aprovadas no Plano Plurianual de 2012 a 2015. Trata-se, portanto, de um forte compromisso para trazer a agroecologia, seus princípios e práticas, não só para dentro das unidades produtivas, como para as próprias instituições do Estado, influenciando a agenda produtiva e de pesquisa e os mais diferentes órgãos gestores de políticas públicas. Em síntese, um grande avanço da sociedade brasileira na construção de um modelo de desenvolvimento sustentável.

IHU On-Line - O que mais deve pautar a luta do movimento em 2015?

Fran Paula - Já avaliamos que 2015 será um ano de grandes desafios e lutas intensas, a começar pelo cenário sombrio da nomeação de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura. Ela tem sido até agora uma representante atuante da bancada ruralista no Congresso e defensora dos interesses do agribusiness brasileiro. Também queremos garantir mobilização social articulada e contrária às iniciativas da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBIO para a não liberação de mais variedades transgênicas.

Hoje, a Campanha tem mais de 100 organizações e movimentos sociais atuando de ponta a ponta do país. A meta para 2015 é ampliar e fortalecer nosso diálogo com a sociedade, alertando para o risco que os agrotóxicos representam, reforçando a necessidade e urgência da efetivação de políticas públicas de promoção da agroecologia, solução para a produção de alimentos saudáveis a todos os brasileiros.

Temos, ainda, nossa agenda de luta, onde são organizadas as ações massivas da Campanha: 07 de abril – Dia Mundial da Saúde e o aniversário de quatro anos da Campanha, 16 de outubro – Dia Mundial da Alimentação Saudável e 03 de dezembro – Dia Mundial de Luta contra os Agrotóxicos. 2015 será um ano das Conferências Nacionais, a exemplo da Conferência Nacional de Saúde e a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. São espaços onde estaremos reforçando a necessidade do controle social e da importância da efetivação das políticas públicas de promoção da agroecologia e do não uso de agrotóxicos.

Créditos da foto: Secretaria de agricultura e abastecimento / Flickr

FONTE: Carta Maior

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Cela especial: por que o Estado trata melhor quem tem diploma?




Por Leonardo Sakamoto 


A desigualdade social se manifesta de diversas formas, algumas mais tacanhas que outras. A prisão especial provisória para quem tem diploma de curso superior, na minha opinião, é uma das mais descaradas.

Se duas pessoas cometem o mesmo crime, mas um delas estudou mais, esta poderá ficar em uma cela especial, separada dos demais presos até condenação (ou absolvição) em definitivo.

Se a outra tiver, digamos, até o ensino médio, terá que aguardar o julgamento com a massa, na xepa.

O artigo 5° da Constituição Federal diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Mas, na prática, a legislação brasileira confere o privilégio de não ficar em cárcere comum até o trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória para alguns grupos. Em alguns casos, como juízes e delegados de polícia, por exemplo, faz sentido, em outros, como os detentores de diploma de curso superior, não.

Estou resgatando essa discussão já travada aqui no blog por conta das ações da Polícia Federal nos escândalos federal (envolvendo empreiteiras, Petrobras e seus políticos) e paulista (com o cartel metroferroviário e seus políticos). Nesses casos, é claro, os envolvidos acabam ficando “hospedados” nas carceiragens da Polícia Federal e não em centros de detencão comuns. Mas o debate suscitado é mais profundo que isso.

Quem teve acesso à educação formal desfruta de direitos sobre quem foi obrigado, em determinado momento, a escolher entre estudar e trabalhar. Ou que, por vontade própria, simplesmente optou por não fazer uma faculdade.

Afinal de contas, só o pensamento limitado é capaz de considerar alguém superior por ter um bacharelado ou uma licenciatura. Posso ter mais conhecimento técnico em determinada área, mas isso não faz de mim uma pessoa melhor.

O Senado Federal havia derrubado essa aberração presente no artigo 295 do Código de Processo Penal, mas a Câmara os Deputados barrou a mudança. (Artigo 295: “Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República” – parágrafo único, inciso VII).

Concordo com a opinião dos juristas que ressaltam que estamos tratando de prisão provisória. Ou seja, considerando que, antes do julgamento e de uma condenação, há a presunção da inocência, seria importante que o regime desses presos fosse diferenciado. Mas, nesse caso, teria que valer para todo mundo – do iletrado ao que tem pós-doutorado. Assim, não seria a concessão de um privilégio, mas a garantia de um direito.

Contudo, há um tempero novo nesse caldo. O atual Código de Processo Penal passou a vigorar em 1942, quando poucos tinham acesso ao ensino superior – situação que está mudando no Brasil.

Antes, o número de faculdades particulares era pequeno e as suas mensalidade altas, ao passo que os vestibulares das universidades públicas eram duros o bastante para quem estudou a vida inteira em escola pública e não tinha dinheiro para pagar um cursinho.

Não que o acesso tenha se universalizado, longe disso, mas ao mesmo tempo que aumentou o número de vagas em públicas federais (ainda que continuem bem insuficientes, diga-se de passagem), explodiu a quantidade de faculdades privadas, com mensalidadades acessíveis ou possibilitadas por Fies e Prouni – e qualidade muitas vezes duvidosa. O fato é que muita gente do “andar de baixo” passou a obter diplomas de nível superior.

Quando muitos têm uma calça exclusiva, ela deixa de ser exclusiva e passa ser popular.

Qual seria o próximo passo? A construção de mais celas especiais ou a criação de outros critérios para garantir que nós, da elite, continuemos separados da ralé, agora com diploma?

Por enquanto o andar de cima não perdeu nada, por mais que os mais ricos reclamem que o povaréu tupiniquim ascendeu e está transformando aeroportos em rodoviárias e tirando seu sono.

Mais simples e melhor continua sendo o método: “tenha um bom advogado e seja feliz”.

Com isso, fica mais fácil cometer barbaridades e ficar em um lugar “diferenciado” até o julgamento. E, mesmo julgado, permanecer separado da massa até que todos os recursos sejam esgotados – isso quando não consegue ficar em casa mesmo em um processo que pode levar mais tempo do que aquele que lhe resta de vida.

Com um bom advogado, já foi possível conseguir habeas corpus no Supremo Tribunal Federal de forma rápida.

Com um bom advogado, foi possível suspender, no STF, o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra escrava em pleno recesso de final de ano, dificultando o gerenciamento de riscos pelo mercado e penalizando trabalhadores.

Por que eles compram resultados? Não. Mas porque eles usam todos recursos possíveis para garantir tudo aos seus clientes – coisa que a xepa não consegue (ainda mais com a estrutura insuficiente à disposição das Defensorias Públicas).

Talvez a cela especial acabe quando o acesso ao ensino superior tornar-se tão comum quanto a alfabetização – o que pode levar algum tempo, mas há de acontecer.

Ou seja, não terá sido mérito nosso como sociedade essa mudança, mas do tempo, que – inexoravelmente – transforma tudo.

Ou quase tudo. Precisamos de leis. E que sejam punidos, conforme essas leis, os que causaram mal aos outros ou à sociedade. O problema é que prisões estão lotadas de pobres, com crimes ridículos como a pequena venda de maconha, enquanto muitos ricos sabem que, muito dificilmente, serão – agora ou no futuro próximo – responsabilizados por seus delitos.


Texto postado originalmente em:

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2015/01/04/cela-especial-por-que-o-estado-trata-melhor-quem-tem-diploma/


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Por que a Suécia está revendo a privatização do ensino




Por Ricardo Alvarez


Rede Democrática – Escolas introduziram publicidade maciça, pressão sobre professores e estímulo permanente à competição. Resultados lastimáveis estão levando defensores da “novidade” a pedir desculpas públicas

Quando uma das maiores empresas privadas de educação faliu, alguns meses atrás, deixou 11 mil alunos a ver navios e fez com que o governo da Suécia repensasse a reforma neoliberal da educação, feita nos moldes da privataria com o Estado financiando a entrega dos serviços públicos aos oligopólios capitalistas e assim causando graves prejuízos para os trabalhadores e a população.

No país de crescimento mais acelerado da desigualdade econômica entre todos os membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os aspectos básicos do mercado escolar desregulamentado estão agora sendo reconsiderados, levantando interrogações sobre o envolvimento do setor privado em outras áreas, como a de saúde.

Duas décadas após o início de seu experimento de “livre” mercado na educação, cerca de 25% dos alunos do ensino médio da Suécia frequentam agora escolas financiadas com recursos públicos, mas administradas pela iniciativa privada. Essa proporção é quase o dobro da média mundial. Quase metade desses alunos estudam em escolas parcial ou totalmente controladas por empresas de “private equity”, que compram participações em outras empresas.

Na expectativa das eleições do ano que vem, políticos de todos os matizes estão questionando o papel dessas empresas, acusadas de privilegiar o lucro em detrimento da educação, com práticas como deixar alunos decidirem quando aprenderam o suficiente para passar e não manter registro de notas.

O oposicionista Partido Verde – que, a exemplo dos moderados, apoia há muito as escolas de gestão privada, mas que agora defende um recuo – divulgou um pedido público de desculpas num jornal sueco no mês passado sob o título “Perdoe-nos, nossa política desencaminhou nossas escolas”.

No início da década de 1990, os pais recebiam vales do Estado para pagar a escola de sua preferência. A existência de escolas privadas foi autorizada pela primeira vez, e elas podiam até ter fim lucrativo.

O Reino Unido absorveu muitos aspectos desse sistema, embora não tenha chegado a permitir que escolas custeadas com dinheiro público visassem lucro. Empresas de educação suecas alcançaram países tão distantes como a Índia.

A falência, neste ano, da JB Education, controlada pela empresa dinamarquesa de “private equity” Axcel, foi o maior, mas não o único, caso do setor educacional sueco.

O fechamento da JB custou o emprego de quase mil pessoas e deixou mais de 1 bilhão de coroas suecas (US$ 150 milhões) em dívidas. Os alunos de suas escolas ficaram abandonados.

A permissividade do ambiente regulatório também contribuiu. A Suécia substituiu um dos sistemas escolares mais rigidamente regulamentados do mundo por um dos mais desregulamentados, o que levou a escândalos como um caso de 2011 em que um pedófilo condenado pôde abrir várias escolas de forma absolutamente legal.Uma em cada quatro escolas de ensino médio é deficitária e, desde 2008, o risco de insolvência subiu 188% e é 25% superior à média das empresas suecas, disse a consultoria UC. “São poucos os setores que exibem cifras tão ruins como essas”, disse a UC. Parte do problema resulta da distribuição etária da população, com os números totais das escolas secundárias sofrendo queda significativa desde 2008 e pouca probabilidade de voltar ao antigo nível por uma geração ou mais.

“Eu disse muitas vezes que é mais fácil abrir uma escola do que uma barraca de cachorro-quente”, disse Eva-Lis Siren, diretora do sindicato de professores Lärarförbundet, o maior da Suécia.

As escolas privadas introduziram muitas práticas antes exclusivas do mundo corporativo, como bônus por desempenho para funcionários e divulgação de anúncios no sistema de metrô de Estocolmo. Ao mesmo tempo, a concorrência pôs os professores sob pressão para dar notas mais altas e fazer marketing de suas escolas.

No início, disseram que a participação privada na educação se daria por meio de escolas geridas individualmente e em nível local. Poucos vislumbraram que haveria empresas de “private equity” e grandes corporações administrando centenas de unidades. “Era uma coisa que não estava sequer nos sonhos mais delirantes das pessoas”, tenta se justificar Staffan Lundh, responsável por questões escolares no governo do primeiro-ministro na época e que hoje dirige a Skolverket, a agência sueca de escolas.

É tão obvio que envolvimento do setor privado e a queda da qualidade estão diretamente ligados que a Skolverket já começa a “vê indícios” de que as reformas de mercado contribuíram para aprofundar o fosso do desempenho escolar.

O referencial Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, nas iniciais em inglês) da OCDE pinta um quadro sombrio, em que a Suécia ocupa atualmente classificação inferior à da Rússia em matemática.

Vinte e cinco por cento dos garotos de 15 anos não conseguem entender um texto factual básico, disse Anna Ekstrom, diretora da Skolverket. Um estudo da agência divulgado no ano passado mostrou um diferencial crescente entre estudantes, em que um número cada vez maior deles não preenche os requisitos necessários para ingressar no ensino médio.

Uma pesquisa da GP/Sifo realizada neste ano com mil pessoas mostrou que 58% são amplamente favoráveis a proibir a geração de lucro em áreas financiadas com dinheiro público, como a educação.

O ministro da Educação, Jan Bjorklund, de centro-direita, dirigente do segundo maior partido da coalizão de governo, formada por quatro partidos, disse que empresas de “private equity” também deveriam ser vetadas como controladoras de empresas do setor de assistência médica, inclusive de assistência aos idosos.

“Acho que acreditamos cegamente demais na possibilidade de mais escolas privadas garantirem maior qualidade da educação”, disse Tomas Tobé, diretor da comissão de educação do Parlamento e porta-voz de educação do governista Partido Moderado. Como são “ingênuos” os neoliberais…

O fechamento de escolas e a piora dos resultados tiraram o brilho de um modelo de educação admirado e imitado em todo o mundo pelos mesmos privatistas e neoliberais que propagandeiam o mercado capitalista como uma espécie de solução milagrosa para todos problemas da sociedade, quando na verdade é o capitalismo quem gera todos os problemas e desigualdades sociais ao concentar toda a riqueza, poder e oportunidades nas mãos de uma classe dominante privilegiada, as custas da miséria, exploração e exclusão de grande parte da humanidade e do empobrecimento crescente dos povos.



Texto postado originalmente em:
http://www.leituras.eu 


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Morte em Paris


Por Antonio Martins



Por que o “Charlie Hebdo” foi atacado. As manifestações e o risco de mais xenofobia na Europa. Os sinais de um sistema em crise profunda


Pela Redação de Outras Palavras


Uma das hipóteses mais lúgubres do sociólogo Immanuel Wallerstein concretizou-se, em parte, esta manhã em Paris. Dois homens encapuzados e vestidos de negro, aparentando (ou simulando) ser fundamentalistas islâmicos, invadiram a sede de um jornal satírico francês, o Charlie Hebdo, e executaram, a rajadas de metralhadoras, ao menos doze pessoas. Entre os mortos estão o editor da publicação e outros três chargistas de enorme talento e renome internacional. Charlie Hebdo é irreverente, inclinado à esquerda e crítico às instituições religiosas. Esta postura levou-o, algumas vezes, a provocar o islamismo, religião de milhões de imigrantes oprimidos e discriminados na Europa.

Sejam quais forem os responsáveis pelo atentado, as consequências são potencialmente trágicas: aumento da onda xenófoba – especialmente anti-islâmica – na Europa. Crescimento dos partidos de extrema-direita. Reforço à postura ultra-agressiva que os Estados Unidos, com notável apoio da França, já adotam no Oriente Médio. Risco ampliado de guerras de provocação. Wallerstein adverte que a crise do capitalismo é profunda, mas poderá abrir espaço tanto para um sistema mais democrático e igualitário quanto para o oposto. Ao entrar em declínio, a ordem hoje hegemônica liberta a emergência e expansão de valores de um pós-capitalismo; mas engendra, ao mesmo tempo, riscos de um mundo ainda mais hierarquizado, violento e desigual. As circunstâncias do atentado e seu contexto parecem validar a hipótese.

Armados de fuzis, os dois assassinos chegaram à redação de Charlie Hebdo, no centro de Paris, por volta das 11h. Sob ameaça, obrigaram a cartunista Corrine Rey (“Coco”), que entrava com sua filha, a abrir a porta do prédio. Ela relatou que falavam “um francês perfeito” e disseram pertencer à Al-Qaeda. Subiram dois andares e começaram a fuzilaria.

Chegaram num momento preciso. Às quartas pela manhã, a redação reunia-se, para definir a pauta do número seguinte. Estavam presentes o diretor, Charb, mais três cartunistas – Cabu, Tignous e Wolinski (este último mais conhecido do público brasileiro, por publicar, em abril de 2011, em Piauí, a sequência “Meio século de sexo”) – e quatro redatores (entre eles, o economista Bernard Maris, ex-membro do Conselho Científico do movimento ATTAC, em favor do controle social sobre o sistema financeiro).

Todos foram mortos na hora, junto com mais dois funcionários do jornal e dois policiais. Os assassinos teriam gritado, segundo testemunhas que os jornais franceses não identificam claramente, “Allahu Akbar” [“Alá é o Maior”] e se vangloriado de que “vingamos o Profeta”. Mas fugiram de carro, ao invés de se auto-martirizarem, como é comum em atentados cometidos pelo terror islâmico. Além disso, até o fechamento deste texto, nenhum grupo havia assumido o ato.

Fundado em 1992, o atual Charlie Hebdo (que resgata o nome de uma publicação anterior) não é um jornal de extrema-esquerda, ao contrário do que se afirmou no Brasil. Parte de sua equipe esteve presente em revistas humorísticas ligadas à revolta de 1968. Mas seu foco central não são os grandes temas políticos franceses ou mundiais – mas a crítica às instituições religiosas e à ultradireita.

Nos últimos anos, voltou-se especialmente contra o islamismo. Em 2005, reproduziu uma série de charges publicadas originalmente no jornal dinamarquês Jyllands Posten, consideradas ofensivas ao profeta Maomé. Manteve a mesma postura por anos a fio, o que despertou críticas de analistas importantes do Islã – como Alan Gresh, redator do Le Monde Diplomatique. Num texto publicado em 2012, ele defendeu, obviamente, a liberdade de expressão do Charlie Hebdo, mas criticou sua linha anti-islâmica. Lembrou que, além de discriminados, os muçulmanos sofrem, há anos, restrições às liberdades políticas (em 2014, o governo francês chegaria a proibir manifestação contra o ataque israelense aos palestinos da Faixa de Gaza). Diante deste contexto, Gresh indagava: seria correto, em 1931, em plena ascensão do nazismo, uma publicação alemã de esquerda estampar charges ridicularizando aspectos retrógrados da religião judaica?

A hipótese de que o atentado de hoje seja de autoria de fundamentalistas islâmicos é real. Num sinal da descoesão ocidental, apontada por Wallerstein, o New York Times lembra hoje que, entre os militantes do grupo ultrafundamentalista ISIS, criador de um califado no Iraque, há milhares de europeus (além de norte-americanos, seria justo acrescentar…).

Mas a pergunta clássica – cui profit, a quem beneficia o crime – sugere não ficar apenas nesta hipótese. Quase quinze anos após os atentados de 11 de Setembro, não foram respondidas as teorias segundo as quais a derrubada das Torres Gêmeas não poderia ocorrer sem algum tipo de participação das agências de inteligência dos Estados Unidos, nem as crônicas sobre o estranho comportamento do presidente George W. Bush ao ser informado de sua derrubada.

Mais de 100 mil pessoas saíram às ruas esta noite, em dezenas de cidades francesas, em solidariedade à redação de Charlie Hebdo. O clima foi de óbvia consternação e de defesa das liberdades. Manifestaram-se os que se sentem próximos de um jornal irreverente e sarcástico. Mas e a Europa profunda? Na própria França, as pesquisas colocam em primeiro lugar, na preferência dos eleitores para a próxima eleição à Presidência, Marinne Le Pen, da Frente Nacional, xenófoba e de extrema-direita. Na Alemanha, ressurgem, pela primeira vez depois da II Guerra Mundial, manifestações contra estrangeiros, articuladas por um movimento que se apresenta como contrário à suposta “islamização do Ocidente”. Que efeito terá o atentado de hoje sobre estes sentimentos já em ascensão?

As doze vítimas de hoje merecem tantas homenagens quanto cada um dos mais de 500 mil mortos no Iraque, desde a invasão norte-americana, ou as mais de 2.400 pessoas seletivamente assassinadas pelo governo norte-americano, por meio de drones, só entre 2009 e 2014.

Porém, mais que os mortos, está em questão o futuro do humanidade. Para Wallerstein, é impossível saber, hoje, o que virá após o declínio do capitalismo. É uma disputa que se prolongará por décadas e será definida em “uma infinidade de nano-ações, adotadas por uma infinidade de nano-atores, em uma infinidade de nano-momentos”.

O atentado de hoje chama atenção para os riscos inerentes a este cenário de crise. Mas pode, num sentido oposto, ecoar o apelo à ação feito, na sequência, pelo mesmo sociólogo. Ele diz: “Em algum ponto, a tensão entre as duas soluções alternativas vai pender definitivamente em favor de uma ou outra. É o que nos dá esperança. O que cada um de nós fizer a cada momento, sobre cada assunto imediato, importa”.


segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

É muito dinheiro!


                                                                                                                             Claudius


Por Silvio Caccia Bava

Em meio a esta discussão sobre a falta de recursos para investir no social – no transporte público, no salário dos professores, no sistema de saúde e em tudo o mais que pode tornar a vida melhor para as maiorias – fomos procurar recursos públicos... e encontramos muito dinheiro! Mas não é fácil acessá-lo.

Durante décadas as grandes empresas investiram pesadamente, influenciando o Parlamento e o Executivo para moldarem uma legislação e políticas que atendam a seus interesses. Nos anos 1990, com a hegemonia do pensamento neoliberal se afirmando no Brasil, o governo orientou suas políticas para facilitar, ou amplificar, o processo de acumulação das grandes empresas. O dinheiro público é destinado a potenciar investimentos privados, ou a remunerar aplicações financeiras.

A autonomia do Banco Central é um dogma neoliberal que comprova a hegemonia dessa doutrina; na prática, entrega a gestão da política econômica ao setor financeiro privado. O compromisso com o superávit primário garante aos rentistas o pagamento do serviço da dívida, que consome hoje mais de 48% do total dos impostos arrecadados. Os principais credores da dívida pública são as corporações financeiras nacionais e internacionais e os fundos de investimento. A taxa Selic serve para assegurar essa extraordinária rentabilidade para os investidores que compram títulos da dívida pública. E o risco zero desse investimento está garantido na própria Constituição de 1988, em seu artigo 166, § 3o, que trata das emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem, impedindo que os cortes orçamentários incidam sobre o serviço da dívida. Pode-se cortar o orçamento das políticas sociais, mas nunca a remuneração assegurada aos rentistas.

No âmbito do Judiciário, as facilidades continuam. As dívidas pelo não pagamento dos impostos podem ser proteladas por anos; depois de vencido o último recurso, elas podem ser parceladas em até sessenta meses e ao final ainda receber abatimentos − descontos que chegam a 40% do valor principal no caso do agronegócio. Essas políticas públicas são um verdadeiro incentivo à sonegação.

Mas as fontes de receitas possíveis não são só as dívidas que não foram pagas pelas empresas aos poderes públicos: há o dinheiro dos impostos que não entrou, por conta de toda uma legislação que facilita a vida das empresas e de seus “planejadores tributários”, profissionais especializados em aproveitar as brechas legais para evitar o pagamento de impostos. Também entra nessa conta o que é remetido ilegalmente para os paraísos fiscais, uma prática tão tolerada quanto a atuação dos “doleiros”, operadores do sistema financeiro conhecidos pela mídia que enviam clandestinamente recursos para fora do país. Além disso, podem entrar nessa lista os subsídios para setores da indústria e do agronegócio. São as grandes corporações internacionais, como a indústria automotiva, que não precisam, mas recebem subsídios, transferências do dinheiro público em apoio à sua atuação. Há ainda o comércio internacional intracorporativo, que faz sua contabilidade de maneira a zerar os lucros e os impostos devidos. Entre os países que mais importam produtos brasileiros, sejam eles quais forem, se destaca a Suíça! Mesmo que os produtos nem sequer passem por lá, a escrituração fiscal da grande maioria das empresas brasileiras exportadoras traz esse destino, beneficiando-se dos baixos impostos lá cobrados.

Seria ingenuidade pensar que os expedientes para a sonegação fiscal param por aqui, mas já temos informações suficientes para dizer que um grande desafio é cobrar os impostos de quem deve. Com esse dinheiro seria possível atender às demandas das ruas e, em pouco tempo, às necessidades de todos. Especialistas da área tributária estimam que a sonegação fiscal esteja em torno de 40%, ou até mais em alguns setores. 

Não estamos falando de pouca coisa. A União tem a receber mais de R$ 1 trilhão lançados na dívida ativa, principalmente de grandes empresas; outro R$ 1 trilhão é dinheiro de empresas e empresários brasileiros depositado em paraísos fiscais.

No plano estadual, também temos recursos disponíveis, mas não cobrados. Por certo a dívida ativa mereceria mais atenção. Mas outras medidas são possíveis. A cobrança mais efetiva do IPVA na cidade de São Paulo – um terço dos carros está com o IPVA atrasado – pode gerar uma receita da ordem de R$ 7 bilhões. Dividido meio a meio com o governo do estado de São Paulo, esse montante poderia ser destinado à melhoria dos transportes coletivos metropolitanos.

Considerando uma escala menor, se a prefeitura de São Paulo, por exemplo, recuperasse dos devedores 10% de sua dívida ativa por ano, poderia oferecer, por dez anos, transporte público gratuito aos usuários.

O que não pode continuar ocorrendo é o Estado acobertar os grandes devedores. Numa tentativa de identificar quem são eles em São Paulo, nem mesmo esforços feitos junto à Câmara Municipal foram frutíferos. Esse silêncio compromete os governos e o interesse público.



Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...