"O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada." - George B. Shaw
Por Aluizio Moreira
A invenção da universidade foi o resultado da divisão do trabalho social, em que o docente, consciente ou inconscientemente, assume um papel importante no processo de reprodução e dominação ideológica, como forma de manutenção da estrutura sócio-econômica da sociedade, o que não impede que exista uma intelectualidade ligada à educação, que desempenhe uma ação transformadora.
Não é demais recordar que desde sua criação na Idade Média, o ensino superior se instituiu com o desempenho de funções específicas e diversificadas, ora como centro de difusão do pensamento filosófico-religioso, ora como centro aglutinador das discussões cientificas, ora como instituição voltada para o ensino profissionalizante. Para além dessas múltiplas funções, registramos como a universidade no século XVIII passou a ser disputada pela Igreja e pelo Estado, como forma de preservação do poder espiritual de um lado e da afirmação do poder secular do outro, na medida em que surgem contestações dos iluministas ao caráter divino do poder político herdado da Idade Média.
Soares Junior (2006, p.14) diagnostica:
A estrutura do ensino universitário, via de regra, e inquisitiva e imobilizadora, fruto da própria visão do mundo, já que coloca o professor-educador como o detentor das verdades necessárias ao ensino “adequado”, cuja única possibilidade de espelho são seus pares, ou seja, os iguais a ele, os que, na mesma posição, detêm o poder do saber. E, no outro polo, encontra-se o aluno, que lá está tal qual uma tabula rasa, uma vasilha, um recipiente, pronto para engolir, para se deixar encher de conhecimentos (verdades perfeitas e acabadas), para permitir a ocupação de sua mente pelos axiomas (valores) do sábio, sem nada poder problematizar.
Visão docente esta, de fundo elitista, autoritária e conservadora, na qual muitos professores acreditam, que por serem professores, detêm o monopólio do saber diante dos alunos que nada sabem.
O que ouvimos mais frequentemente no meio universitário, é o discurso da especialização/profissionalização. É o novo fetiche! Apresentado como exigência para se enfrentar um mundo do trabalho cada vez mais competitivo, a profissionalização virou artigo de consumo. E também de venda. A especialização e a profissionalização estariam na razão direta dos domínios dos conteúdos repassados em sala de aula, das habilidades específicas, o que garantiria ao futuro profissional, não só uma vaga no mercado de trabalho, mas sua ascensão no exercício da sua atividade. Daí a ênfase, os esforços despendidos pelos cursos superiores na formação do profissional “executor”. Para o profissional criador/inovador não teria espaço na sociedade.
Esta discussão da institucionalização do ensino nas escolas e universidades, entre a formação humanística e a formação profissional, embora seja uma questão antiga, não perdeu sua atualidade. Inclusive, em nossos dias, tendências do pensamento pedagógico, defendem com “unhas e dentes” a criação de instituições de ensino que enfatizem os dois tipos de educação: uma voltada para a formação humanística, outra dedicada à formação profissional. Mas até que ponto essas forma de educação especializada não seria uma forma um tanto sutil de eternizar e aprofundar as diferenças sociais? Onde a igualdade de oportunidade, se já decidimos previamente que alguns devem obter conhecimento humanista e científico-tecnológico, e que outros devem se contentar com um conhecimento profissionalizante? Reservaremos para os primeiros a perspectiva da formação do homem integral, para os segundos, não? O que dizer da tendência hoje verificada na criação de cursos superiores voltados para a formação, prioritariamente, do tipo do profissional exigido pelo mercado? Passada a euforia inicial, a demanda diminui e a oferta também: os cursos passam a funcionar precariamente ou fecham. (1)
Ao nosso ver, a especialização nas entidades de ensino é uma propensão que acontece vetorialmente na horizontal como na vertical, ou seja, no interior das instituições como fora delas.
Mas existe uma outra questão em relação ao ensino: é necessário desconstruir todo um conjunto de ideias que durante séculos tem preponderado nas escolas e cursos superiores. Por exemplo, a aceitação de que a tarefa da escola ou da universidade, e particularmente dos professores, é o de simplesmente transmitir conhecimento (2) como esse conhecimento não necessitasse ser repensado, como se não fosse possível levantar dúvidas sobre o saber institucionalizado e tido como incontestável.
Consideremos: uma outra observação que deverá ser feita, é a postura que costumamos ter diante das contradições, das especificidades das coisas. Não fomos orientados no sentido de entendermos os objetos e fenômenos nas suas diversidades e contradições; diversidades e contradições que formam uma unidade apesar das diversidades e contradições. Desconhecemos um dos princípios básicos da dialética: o principio das contradições existentes em todas as coisas e de seus inter-relacionamentos.
Todas essas reflexões acerca da educação, do ensino, do conhecimento, das ciências naturais e humanas são fundamentalmente estudos da condição humana (do aprender viver, da formação do cidadão). Condição humana cuja reforma do pensamento “é uma necessidade democrática fundamental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua época” [...] como “condição sine qua non para sairmos de nossa barbárie.” (MORIN, 2010, p.103-104)
A condição humana é natural e metanatural. O homo economicus é também o homo faber e o homo philosophicus. Não se conhece o homem, estudando-o separado do cosmos, do biológico, do social, do cultural, do espiritual.
A grande contradição existente é que enquanto se procura tratar os saberes cada vez mais fragmentados, mais compartimentados, a própria realidade da qual fazemos parte, é, ela própria, multidimensional.
As consequências dessas formas de ver e de tratar o ensino superior, são graves: porque se passa a admitir que não seja necessário criar um espaço para a interdisciplinaridade, que permita o aluno ver o mundo, a sociedade sob a ótica de outras áreas do conhecimento e seus inter-relacionamentos; cria-se a ilusão de uma atividade descompromissada e neutra em relação às forças sociais contraditórias e conflituosas que integram a sociedade; elimina-se o caráter social do conhecimento, como se este só existisse em função do individuo e não da sociedade; ignora-se o caráter dinâmico e histórico da ciência, acreditando-a imutável e infalível; defende-se que basta o aluno conhecer, mas não pensar, pois este pensar seria prerrogativa das mentes “iluminadas” e “brilhantes”, exclusividade dos que exercem a docência.
Por fim, é necessário que as escolas, as universidades, passem a reservar espaços para formação continuada do seu quadro de docentes, dentro daquilo que exige sua atividade na área da educação, harmonizando a competência intelectual e a competência pedagógica, o que alias, nem sempre acontece.
Notas:
1) Aconteceu aqui no Recife com os Cursos de Turismo: algumas Faculdades ofereciam-no em três turnos diferentes, hoje não mais que um turno apenas. Faculdades de Formação de Professores que deixaram de oferecer cursos de Licenciatura em Geografia, História, Ciências Biológicas. Várias Instituições de Ensino Superior investem hoje em cursos tecnológicos de graduação de menor duração e nos Cursos de Administração e Direito.
2) É exatamente neste ponto, que para muitos se encontra a diferença entre professores e educadores. Os professores seriam profissionais da educação que limitariam suas atividades como transmissor de conhecimentos, transferindo conteúdos. O aluno, neste caso, na concepção de Edgar Morin, teria “uma cabeça bem cheia”. Os educadores, também profissionais da educação, se preocupariam não só em difundir conhecimentos, mas ao mesmo tempo procurariam contribuir para a formação integral da pessoa, como ser humano, como cidadão, em interação com a sociedade, com o mundo.
REFERENCIAS
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 12.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
LEFEVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, 4.ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6.ed., São Paulo: Cortez, 1991.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução: Eloá Jacobina, 18.ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
SOARES JUNIOR, Antonio Coelho. Ensino jurídico: procura-se! Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n.1047, 14. Mai.2006. Diponivel em
<HTTP://jus2.uol.com.br/doutrina.texto.asp?id=8423> Acesso em: 27 fev. 2007.
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