quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Em sentença histórica da Corte Interamericana (OEA), Brasil é condenado por trabalho escravo e tráfico de pessoas


A Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) emitiu no último 15 de dezembro a sentença do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil, condenando o Estado brasileiro por ser internacionalmente responsável por não garantir a proteção de 85 trabalhadores de serem submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado a realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados desta condição.

Em consequência de sua condenação, o Estado brasileiro deverá retomar as investigações sobre o caso, adotar medidas para evitar que a prescrição seja aplicada ao delito de escravidão, e reparar as vítimas pelos danos imateriais sofridos, pagando indenizações pecuniárias a 127 trabalhadores e a uma trabalhadora. Além dos 85 resgatados na fiscalização de 2000, que receberão 40 mil dólares cada um, por terem sido submetidos a trabalho escravo e tráfico de pessoas, se somam, em razão da denegação de justiça, outros 43 trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997, os quais receberão 30 mil dólares cada.

Tais valores dizem por si a gravidade das ofensas sofridas por essas pessoas.

A fiscalização de março de 2000 documentou que encontrou trabalhadores em situação de escravidão. Foram aliciados por um 'gato' no interior do Piauí e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. O teto era de lona. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada.

A sentença ora publicada é histórica, porque é a primeira vez que a proibição da escravidão e da servidão é aplicada no julgamento de um caso concreto no Continente Americano, estabelecendo parâmetros para o conceito previsto no art. 6º da Convenção Americana, em particular na definição do que se considera responsabilidade e dever do Estado no enfrentamento à escravidão moderna e ao tráfico de pessoas.

A sentença é também paradigmática porque reconhece que a violação ao direito de não ser submetido a escravidão está inserida em um contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica. Descreve que tal discriminação foi reiterada por parte da administração de justiça e outros setores, quando as vítimas ou seus representantes, em busca do reconhecimento de sua dignidade, recorreram à justiça para denunciar a submissão à servidão e tráfico, pleiteando a devida reparação, e não receberam qualquer resposta do poder judiciário.

O Tribunal considerou que as características específicas a que foram submetidos os  trabalhadores resgatados em março de 2000 foram além da servidão por dívida e do trabalho forçado, ao configurar: “violação à integridade e à liberdade pessoais (violência e ameaças de violência, coerção física e psicológica dos trabalhadores, restrições da liberdade de movimento); os tratamentos indignos (condições degradantes de habitação, alimentação e de trabalho) e a limitação da liberdade de circulação (restrição de circulação em razão de dívidas e do trabalho forçado exigido), foram elementos constitutivos da escravidão no presente caso”. “Foi constatada a existência de trabalho exaustivo, condições degradantes de vida, falsificação de documentos e a presença de menores de idade”.

Na Sentença fica explicitada a responsabilidade dos Estados “de garantir as condições necessárias para que não ocorram violações a esse direito inalienável e, em particular, o dever de impedir que seus agentes e terceiros particulares atentem contra ele”. Os Estados devem assegurar “que nenhuma pessoa seja submetida a escravidão, servidão, tráfico ou trabalho forçado, mas também requer que os Estados adotem todas as medidas apropriadas para pôr fim a estas práticas e prevenir a violação do direito a não ser submetido a essas condições, em conformidade com o dever de garantir o pleno e livre exercício dos direitos de todas as pessoas sob sua jurisdição”.

Para Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT: “se por um lado é lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para assegurar que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar, por outro lado é muito oportuno, na conjuntura política que essa sentença é proferida, que o Brasil perceba que continuará sendo monitorado pela comunidade internacional para que não deixe de ser a referência à qual chegou a ser identificado - por várias instâncias da ONU, inclusive a OIT - no combate ao trabalho escravo”.

A obstrução às garantias do sistema de justiça também foi uma das principais violações constatadas no Caso Brasil Verde, pois nenhum dos perpetradores chegou a ser efetivamente responsabilizado e nenhuma das vítimas recebeu reparação.

Nesse sentido, Beatriz Affonso, Diretora do CEJIL para o Programa do Brasil, enfatiza que “a decisão do Tribunal é emblemática porque cria um precedente importante ao declarar o caráter imprescritível do delito de escravidão segundo as normas do Direito Internacional por entender que a aplicação da prescrição constitui obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas.

O combate à escravidão contemporânea requer uma ação de caráter integral. Além de pressupor uma normativa com conceitos vigorosos, hoje no Brasil já garantida na formulação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é necessário que a atuação repressiva e judiciária seja eficiente. A sentença da Corte Interamericana reforça a tese de que combater o trabalho escravo requer políticas abrangentes que possibilitem a educação, o combate a discriminação de raça e de gênero, o acesso ao direito ao pleno desenvolvimento, acesso a terra, e a erradicação de todas as demais mazelas que caracterizam a discriminação estrutural que a Abolição de 1888 ainda não superou.

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Para entrevistas:

- Beatriz Affonso – Diretora do Programa do Cejil para o Brasil

Fone: (21) 969800303

- Xavier Plassat - Coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT

Fone: (63) 992219957

*O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) é uma organização não-governamental de defesa e promoção dos direitos humanos no continente americano. O objetivo principal do CEJIL é promover a plena implementação das normas internacionais de direitos humanos nos Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio do uso efetivo do sistema interamericano de direitos humanos e outros mecanismos de proteção internacional. www.cejil.org   

**A Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja católica, foi constituída há mais de 40 anos para ser presença solidária e força de apoio efetivo junto aos povos do campo na sua histórica luta por terra, territórios e dignidade, frente à violência excludente do latifúndio. Com as comunidades camponesas, a CPT defende os direitos à terra e à água. Sua atuação tem sido decisiva na mobilização do Brasil contra o trabalho escravo contemporâneo. http://www.cptnacional.org.br

***CEJIL e CPT são copeticionários do Caso Brasil Verde desde 1998 quando enviaram a denúncia á Comissão Interamericana e, também em parceria, representaram o Caso José Pereira, precursor na Comissão Interamericana por denunciar trabalho escravo no Brasil, o qual culminou com uma Solução Amistosa que impulsionou as múltiplas políticas públicas de combate ao trabalho escravo no país no final da década de 90 e anos 2000.


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Cinco movimentos feministas que abalam o machismo latino


Se antes elas queimavam sutiãs, o novo ingrediente para a ebulição de atos, campanhas e movimentos
é a internet; conheça os grupos que levam milhares às ruas.


Por  Marcelle Souza  em  Calle 2


O movimento feminista nunca morreu, mas é fato que ele andou adormecido nas décadas de 1980 e 1990 na América Latina. Nesse período, os países discutiram leis e implementaram políticas (ainda tímidas, é verdade) com o objetivo de reduzir a desigualdade e a violência de gênero na região. Na última década, no entanto, ficou evidente que ainda há um longo caminho a seguir e que parte da pauta feminista do século XX continua muito atual. Além disso, essa retomada da luta por direitos tornou-se mais importante na medida em que a América Latina vivencia hoje um aumento dos discursos conservadores e religiosos nos espaços políticos.

Segundo a Cepal (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe), em relatório publicado em outubro, todos os dias morrem, em média, 12 mulheres na região – pelo simples fato de serem mulheres.

Se antes elas queimaram sutiãs para chocar a sociedade machista, o novo ingrediente para a ebulição de atos, campanhas e movimentos é a internet e, a partir dela, as feministas do século XXI ganharam nos últimos anos as redes e as ruas das maiores cidades da América Latina.

“Além de ser uma ferramenta de comunicação sem custos e sem fronteiras, as redes sociais mantêm uma mobilização latente entre as manifestações. A rede não de desfaz inteiramente depois de um ato”, diz Ingrid Cyfer, professora de teoria política do curso de ciências sociais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Nesse despertar feminista, uma das ferramentas mais eficientes têm sido as hashtags, usadas para convocar protestos e visibilizar as violências que fazem parte do cotidiano das latino-americanas. O ciberativismo só se transforma em protesto nas ruas quando um crime ou a agenda política impulsionam essa transposição. “Somente as causas capazes de gerar volume suficiente de engajamento chegarão fortalecidas às ruas, e essa capacidade está relacionada menos à justiça ou injustiça da causa em questão, e mais à sua receptividade em cada contexto político, histórico, social e cultural”, afirma a professora.

Além de contar com a internet e o momento político, esses novos movimentos são mais horizontais e heterogêneos, reunindo mulheres diversas em torno de um objetivo central e abrindo o debate para demandas específicas. “É um feminismo que começa a se anunciar como feminismos, como capaz de abarcar dentro de si visões de mundo e estilos de vida diversos. O compromisso com a liberdade e a emancipação soa mais autêntico nesse contexto. Além disso, a própria agenda do feminismo vem se ampliando. As feministas são também ativistas ambientais, estão nas lutas anti-racistas, contra as injustiças geopolíticas etc.”, diz a professora.

Esse novo formato, explica Cyfer, ajuda na proliferação da agenda feminista. “Ao lançar luz nos ‘novos’ temas do feminismo, os temas ‘antigos’ tornaram-se também visíveis, pois todos eles remetem a aspectos entrelaçados das injustiças estruturais de gênero”.

Um dos exemplos mais recentes desse novo feminismo latino-americano é a campanha Ni Una Menos, que ganhou visibilidade na Argentina no mês passado e ecoou em outras cidades da região. O movimento não está sozinho e acompanha uma onda de protestos que transbordaram das redes sociais para visibilizar e criticar o machismo na América Latina. A Calle2 lista a seguir alguns desses grupos que saíram às ruas nos últimos anos:
#NiUnaMenos na Argentina

A multidão de mulheres de preto que parou Buenos Aires contra a violência de gênero e o feminicídio no dia 25 de outubro repercutiu em jornais de vários países do mundo. A convocatória foi realizada pelas redes sociais com uso das hashtags #NiUnaMenos, #VivaNosQueremos e #MiercolesNegro, e ocorreu após o brutal assassinato e estupro da adolescente Lucía Pérez, de 16 anos. As argentinas decidiram então parar por uma hora e reuniram-se no Obelisco, no centro de Buenos Aires. A campanha ganhou eco e chegou a outras partes da América Latina, e atos também foram realizados em países como Chile, Brasil e Uruguai.

“O aumento da brutalidade dos feminicídios junto com a repressão policial ao movimento de mulheres nos obrigaram a uma reação imediata. Por isso, em cinco dias organizamos uma greve nacional de mulheres e convocamos todo o continente a uma mobilização. A magnitude dos protestos deve ser lida a partir da novidade da greve nacional, bem como pela gravidade dos fatos que originou os protestos. A onda de misoginia orquestrada pela restauração conservadora latino-americana, mas também mundial, encontra resistência de milhões de mulheres que a sentem em sua própria carne”, afirma Cecília Palmeiro, uma das representantes do Ni Uma Menos.

O coletivo de mesmo nome da campanha já havia mobilizado feministas universitárias, de partidos políticos e organizações da sociedade civil em outros momentos. “A primeira marcha Ni Uma Menos juntou 250 mil pessoas, a segunda, cerca de 150 mil pessoas e a terceira teve mais ou menos 200 mil. Trata-se de um movimento que se conecta e que se agita através da internet, mas que vive nas ruas”, diz Palmeiro.
“Primavera Feminista” no Brasil

Foi em 2015 que os meios de comunicação começaram a usar o termo “Primavera Feminista” para definir os atos nas ruas e as mobilizações nas redes sociais contra a cultura do estupro, o machismo e a desigualdade de gênero no Brasil. O movimento foi ganhando visibilidade aos poucos, como na campanha #EuNãoMereçoSerEstuprada de 2014, e foi para as ruas com mais força em outubro de 2015, quando as mulheres reagiram às mensagens de teor sexual a respeito da menina Valentina, participante do programa MarterChef Júnior, que invadiram a internet naquele ano. A resposta foi uma enxurrada de depoimentos que usavam a hashtag #MeuPrimeiroAbuso sobre casos de abuso sexual e até de estupro na infância e pré-adolescência.

“O #meuprimeiroabuso e #nãomereçoserestuprada expuseram uma das facetas mais perversas do sexismo: a responsabilização da vítima pela violência sexual. Além disso, essas campanhas criaram também uma rede de solidariedade em torno do combate a esses preconceitos, uma rede que é acionável com mais facilidade em novas campanhas de combate à cultura do estupro”, afirma a professora da Unifesp.

No mesmo mês do, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 5069, de autoria do então deputado e presidente da Casa Eduardo Cunha, que dificulta a realização do aborto nos casos já previstos em lei. Foi o suficiente para que atos fossem realizados pelo país contra o projeto e contra o machismo. Em São Paulo, 15 mil mulheres protestaram na avenida Paulista.
#NiUnaMenos no Peru

Antes da greve que parou a Argentina neste ano, as mulheres do Peru já tinham tomado as ruas para protestar contra a violência de gênero. Em julho, duas decisões judiciais favoráveis a homens que haviam espancado suas companheiras ganharam a imprensa do país. Os dois não foram condenados à prisão, o que causou grande indignação e mobilizou ativistas, artistas, estudantes e políticos pedindo o fim da violência. O grande ato realizado dia 13 de agosto foi liderado por mulheres que sobreviveram após sofrer brutais agressões dos ex-maridos. Segundo o Ministério da Mulher, entre 2009 e junho de 2016, houve 921 tentativas e 812 feminicídios no Peru.
#24A no México

No dia 24 de abril deste ano, mulheres mexicanas saíram às ruas em mais de 40 cidades contra a violência de gênero e o feminicídio no país. O que começou com um pequeno evento no Facebook organizado por amigas, em pouco tempo transformou-se em uma grande mobilização nacional, que contou com o uso das hastags #24A e #VivasNosQueremos e reuniu desde organizações tradicionais até feministas autônomas. Na véspera dos atos, houve também uma onda de relatos de violência no Twitter registrados na campanha #MiPrimerAcoso. Vestidas de lilás, elas saíram em marcha para tentar colocar na agenda pública o debate sobre violência de gênero. O principal protesto começou na frente do Palácio Municipal de Ecatepec, o município mais perigoso para ser mulher no México, e terminou em Victoria Alada, na Cidade do México.
Pela despenalização do aborto no Chile

Um dos poucos países do mundo em que o aborto é proibido em qualquer situação, o Chile é palco das “Marchas por el Aborto Libre, Seguro y Gratuito” desde 2013. Os atos engrossaram nos últimos anos o debate em torno do projeto apresentado em janeiro de 2015 pela presidente Michelle Bachelet, que prevê a despenalização da interrupção da gestação em três situações: risco de morte para a mãe, inviabilidade fetal e estupro. Nas redes, o movimento é marcados pelas hashtags #AbortoLibre e #Aborto3Causales. O tema, no entanto, gerou forte reação contrária tanto nas redes sociais quanto nas ruas. Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto atualmente é discutido no Senado.



terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Comparato: um Judiciário sem controle algum



Para o grande jurista, há uma razão  para quase duzentos anos de  desresponsabilização dos juizes:
eles são o grande guardião do poder oligárquico. Mas existem alternativas. 


Fábio Konder Comparato, entrevistado por Franciele Petry Schramm*



O arquivamento do pedido de impeachmentdo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, enquanto ainda tramitava no Senado Federal, não surpreendeu Fábio Konder Comparato, um dos integrantes do grupo de juristas que apresentou o pedido.

Segundo o professor emérito de Direito da Universidade de São Paulo (USP), é preciso levar em consideração que os senadores são julgados pelo STF nas infrações penais comuns, e que vários deles respondem a inquéritos criminais ou são réus em ações penais.  “É óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal”, avalia.

Apresentado ao Senado no dia 13 de setembro e arquivado uma semana depois, o pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta, em seus argumentos, o comportamento partidário do ministro e a violação de princípios constitucionais e de códigos da magistratura.

Em entrevista a Articulação Justiça e Direitos Humanos, Comparato alerta para a falta de controle jurídico sobre Ministros do Supremo Tribunal Federal e aponta a necessidade de uma reforma do Poder Judiciário.

Confira:

JusDh: O pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta um comportamento partidário por parte de Gilmar Mendes, e acusa o ministro de ferir a Constituição, o Código de Ética e a Lei Orgânica da Magistratura. O senhor considera que a postura do Ministro é uma postura isolada dentro do STF?

Fábio Comparato: De todos os atuais Ministros do Supremo Tribunal Federal, o desempenho de Gilmar Mendes é o que mais deixa a desejar. É por isso que decidimos ingressar com o pedido de impeachment, exatamente para alertar os demais Ministros e a opinião pública quanto ao perigo de generalização desse mau procedimento. Na verdade, atualmente os Ministros de nossa Suprema Corte de Justiça não estão sujeitos a controle jurídico algum, pois não há nenhum Poder acima do tribunal e dos magistrados que o compõem. A Constituição Federal dispõe em seu artigo 102 competir precipuamente ao Supremo Tribunal Federal “a guarda da Constituição”. O Conselho Nacional de Justiça é um órgão constitucional, com competência para controlar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, declarados no Estatuto da Magistratura (art. 103-B, § 4º). Ninguém pode negar, nem mesmo o Ministro Gilmar Mendes, que os Ministros do Supremo Tribunal Federal fazem parte da magistratura e devem, por conseguinte, cumprir os deveres impostos pelo Estatuto da Magistratura. Ora, abusando de sua condição de instância judiciária máxima, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.367 do Distrito Federal, decidiu que “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o STF e seus Ministros”. Ou seja, o tribunal decidiu isentar-se do cumprimento de qualquer dever funcional, ainda que previsto na Constituição, da qual foi declarado guardião.

Esse não a primeira vez que um pedido de impeachment de um ministro do STF foi protocolado no Senado Federal. Até o momento, nenhum desses pedidos foi acatado pelo Senado. O senhor avalia que há dificuldade em colocar em questionamento as posturas e decisões do STF? Por quê?

Levando-se em conta que os Senadores são sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns, e sabendo-se que vários dos atuais Senadores respondem a inquéritos criminais, ou já são réus em ações penais, é óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal. Consta, aliás, que Sua Excelência, o Sr. Presidente do Senado Federal, responde a inquérito criminal no Supremo. Ora, ele, evidentemente, assim que recebeu a petição de impeachment de Gilmar Mendes, determinou o seu arquivamento. Ou seja, aplicou-se o velho costume do “dá lá, toma cá”.

De que forma a composição do Sistema de Justiça contribuiu para a manutenção de uma prática pouco democrática e que nem sempre observa a garantia dos direitos humanos?

Até a promulgação da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 35, de 14/03/1979), não eram definidos os deveres funcionais dos magistrados. E até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 8/12/2004, que instituiu o Conselho Nacional de Justiça, não havia nenhum órgão de controle da atuação dos magistrados, incumbido de julgar o cumprimento de tais deveres. Verificamos, portanto, que durante um século e meio após a Independência, os nossos magistrados atuaram isentos de qualquer controle, a não ser o mui esporadicamente exercido por eles mesmos.

Dois exemplos históricos são ilustrativos dessa tradição de irresponsabilidade.

Em sua viagem ao redor do mundo, pela qual comprovou sua teoria da evolução das espécies, Charles Darwin fez uma estadia de vários meses no Brasil em 1832. Pôde então verificar o seguinte, conforme reportado em seu diário de viagem:

“Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados. Um homem pode tornar-se marujo ou médico, ou assumir qualquer outra profissão, se puder pagar o suficiente. Foi asseverado com gravidade por brasileiros que a única falha que eles encontraram nas leis inglesas foi a de não poderem perceber que as pessoas ricas e respeitáveis tivessem qualquer vantagem sobre os miseráveis e os pobres”.

O segundo exemplo diz respeito ao Supremo Tribunal de Justiça, o mais alto órgão judiciário no tempo do Império. Ao final do seu reinado,em declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro II não pôde conter-se e desabafou:

“A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz; e enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguirá esse fim”.

Quais caminhos e possibilidades o senhor considera necessário para tornar o Sistema de Justiça menos intangível, no que se refere à sua composição e na avaliação de suas próprias ações?

Desde sempre a magistratura brasileira, com raras e mui honrosas exceções, fez parte integrante do poder oligárquico, que predominou em nosso país desde o início da colonização portuguesa. Ora, um costume multissecular, entranhado na mentalidade coletiva e preservado pelas instituições políticas, não desaparece em pouco tempo. O processo de reforma em profundidade do Poder Judiciário será, portanto, concomitante ao processo de extinção do regime oligárquico; ou seja, não se fará da noite para o dia e, uma vez iniciado (o que ainda não aconteceu), irá durar várias gerações. O que se pode fazer hoje para provocar o início desse processo é propor algumas medidas específicas, as quais, como o pedido de impeachment de Gilmar Mendes, serão no começo certamente denegadas, mas, sendo reiteradas, acabarão por abalar a opinião pública, abrindo os olhos da maioria do povo, que não faz parte da oligarquia. Uma dessas medidas é a transformação do Supremo Tribunal Federal em Alta Corte Constitucional, reduzindo a sua competência e determinando que a nomeação de seus Ministros seja feita pelo Congresso Nacional, dentre candidatos escolhidos preliminarmente pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. É o que consta da Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013, por mim redigida e apresentada à Câmara dos Deputados pela Deputada Luiza Erundina. A segunda medida é a reorganização do Conselho Nacional de Justiça, a fim de que ele não seja composto por uma maioria de magistrados, como agora, e passe a ter explicitamente jurisdição sobre os Ministros do Supremo Tribunal Federal. A terceira medida seria, simplesmente, reintroduzir em nossa Constituição a ação popular contra magistrados, como determinavam os artigos 156 e 157 da Constituição de 1824:

Art. 156 – Todos os Juízes de Direito e os Oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício de seus Empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por Lei regulamentar.

Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo obedecida na Lei.


*Publicado no JusDH


domingo, 4 de dezembro de 2016

Os avanços no ensino público superior estão ameaçados



Na última década, dobrou o número de campi e de vagas nas universidades federais, especialmente nas regiões mais carentes. Um avanço que a PEC 55 deverá sucatear

por Cida de Oliveira 



 Fronteira Sul (UFFS): mesmo as mais antigas estão em risco


A população de Chapecó (SC), Realeza e Laranjeiras do Sul (PR), Cerro Largo, Erechim e Passo Fundo (RS) viu sua reivindicação começar a ser atendida entre 2011 e 2014, quando foram construídos 35 prédios da tão esperada Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Com R$ 280 milhões de investimentos, em quatro anos foram postos em funcionamento 43 cursos de graduação e 12 de mestrado para 8.500 alunos com as melhores notas no Enem. São em sua maioria filhos de agricultores, egressos da escola pública, moradores de uma região que recebia recursos federais apenas para obras nas fronteiras. A vocação agropecuária e a busca por desenvolvimento regional sustentado são contempladas em cursos de engenharia, na ênfase à agroecologia na produção de alimentos e no cooperativismo. E o de medicina, com foco preventivo, é o primeiro criado no país no âmbito do programa Mais Médicos.

A UFFS é um dos símbolos do processo de ampliação e desenvolvimento da rede federal de ensino superior iniciado em 2005, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Seguiu interior adentro, abrindo portas para os filhos de trabalhadores, tirando o atraso e diminuindo as desigualdades regionais. Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), ao longo de 83 anos, entre 1919 e 2002, foram construídas 45 universidades federais nas capitais ou grandes cidades. E nos últimos 11 anos, outras 19, porém no interior do país, ajudando a reduzir a demanda reprimida por ensino superior gratuito.

A necessidade de ampliação da rede, em atendimento ao Plano Nacional de Educação (PNE) do período, fez com que essas primeiras 45 construíssem novas unidades em regiões carentes. O resultado, segundo balando do MEC, é que entre 2003 e 2014 o número de campi passou de 148 para 321, o número de cursos de graduação presencial foi ampliado de 2.047 para 4.867 e as vagas, de 113.263 para 245.983. As matrículas subiram de 500.459 para 932.263, principalmente no Norte, com 76% de aumento na oferta, e no Nordeste, com 94%. A democratização do acesso foi acompanhada por políticas de auxílio à permanência do estudante na universidade.

O vice-reitor da UFFS, Antônio ­Andrioli, conta que desde que a instituição começou a funcionar, há sete anos, 90% dos alunos são egressos da escola pública, que necessitam de auxílio para moradia, transporte e alimentação inclusive no curso de Medicina. Ao contrário da lógica nacional, ali a ampla maioria dos estudantes não é de filhos de médicos, mas de trabalhadores da agricultura. Por isso, recebem até R$ 520 mensais, um investimento que totaliza R$ 9 milhões ao ano.

“Demandas futuras, como a inclusão da população indígena para além das cotas, vai exigir mais recursos porque aqui essa população tem auxílio especial, que pode chegar a R$ 900. E queremos também ampliar auxílio de apoio pedagógico e incluir quilombolas e outras populações tradicionais da nossa região que ainda não conseguem acesso ao ensino superior. Tanto que estávamos propondo um campus dentro de uma comunidade indígena”, conta Andrioli.

Assim como toda a rede federal de ensino superior, a UFFS viu sua situação financeira enfrentar cortes orçamentários no ano passado, e a situação poderá se agravar com o fantasma da PEC 55, se o Senado confirmar a aprovação da Câmara. “Antes tínhamos os recursos e as empresas demoravam para entregar as obras. Agora são elas que nos cobram e por isso atrasam. Falta terminar o hospital universitário em Realeza, um bloco de salas de aulas em Chapecó e um em Passo Fundo”, diz.

Mesmo assim, Andrioli avalia que sua situação é melhor do que a de muitos outros reitores. Dos 38 prédios planejados, falta concluir apenas três. Mas um projeto de 2009, de um prédio exclusivo para a reitoria, deve ser engavetado, assim como os planos de ampliar cinco cursos por campus e, depois, construir cinco novos campi, juntando neles todas as áreas do conhecimento.

De volta aos 90

“Vínhamos de um contexto em que o Brasil assegurou recursos para que atingíssemos uma meta, que considero moderada, de ter 20% dos jovens de 18 a 24 anos na universidade até 2020. E achávamos que seria possível com os recursos do pré-sal. Agora, vivemos outro cenário, sem conseguirmos ampliar as vagas. O desafio agora é manter os cursos, concluir os concursos, decidir internamente sobre os cursos abertos com financiamento de outros programas federais agora extintos”, relata Andrioli. “O cenário que visualizamos é que dificilmente os estudantes terão acesso à universidade pública. Estamos voltando à política que imperou no país na década de 1990. À frente do MEC estão as mesmas pessoas de antes, que sucatearam a educação nos anos 1990.”

O tom se repete com a diretora de Universidades Públicas da União Nacional dos Estudantes (UNE), Graziele Monteiro. “Era um tempo em que as universidades estavam sucateadas. Faltava dinheiro para coisas básicas, como pagar luz e água”, conta. De acordo com ela, superado o sucateamento, políticas de apoio à permanência ganharam a dimensão principal. “A nova universidade que construímos corre risco de acabar. Há ameaça de cortes de vagas principalmente em cursos de licenciatura, mais populares, na extensão. Com o congelamento do orçamento trazido pela PEC, é a volta a uma era de desmonte da universidade pública. O risco é de fim da popularização da educação pública de qualidade no país.”

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) defende justamente a consolidação da expansão universitária federal. Em aula magna na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), no final de setembro, a presidenta da entidade, Ângela Maria Paiva Cruz, reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), destacou o aumento de cursos noturnos, a revisão da estrutura dos programas e a atualização dos projetos pedagógicos e das políticas de democratização do acesso e de assistência estudantil. Segundo ela, “a cara da universidade federal passou a ser a cara do Brasil”. Segundo um estudo recente da Andifes, 66,19% dos alunos matriculados têm origem em famílias com renda média de até 1,5 salário mínimo. Se consideradas apenas as regiões Norte e Nordeste, esse percentual atinge 76%.

Os docentes, com queixas sobre as dificuldades de trabalhar numa rede em expansão com suas mais variadas implicações, temem agora a total precarização do trabalho. “Já estava difícil. Estamos com salários defasados, perdas em torno de 20%, e muitos professores ainda contratados temporariamente”, avalia o primeiro-secretário do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Francisco Jacob Paiva da Silva. E vai piorar, segundo ele, quando os cursos começarem a ser extintos e a infraestrutura e laboratórios sucatearem. “Defendemos mais investimentos, melhores condições, mais vagas, e recebemos a PEC. Temos de pressionar contra porque se trata do desmonte, da estagnação, da desesperança.”


Na mira da PEC

A partir de 2003, foram abertas 19 novas universidades, com 173 campi, permitindo 431.804 novas matrículas. A proporção da democratização do acesso: 66,19% dos alunos matriculados são de família com renda média de até 1,5 salário mínimo, que devem deixar de estudar depois da PEC 55. Além das 45 universidades mais antigas, estão na mira a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e outras 18 criadas recentemente

Norte

Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa)
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unidesspa)

Nordeste
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)
Universidade Federal do Cariri (UFCA)
Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf)
Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa)

Centro-Oeste
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
Universidade Federal do Tocantins (UFTO) 

Sudeste
Universidade Federal de Alfenas (Unifal)
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)
Universidade Federal do ABC (UFABC)

Sul
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
Universidade Federal de Ciências da Saúde e Porto Alegre (UFCSPA)


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...