Governo e movimentos de direitos humanos são unânimes em classificar a redução da maioridade penal e o excesso de internações de adolescentes como uma solução simplista e de consequências catastróficas para a juventude. A discussão a fundo sobre as causas e consequências do problema convida você a repensar seus conceitos
Por Maíra Streit
A violência no Brasil tem cor, classe social e idade. Embora se apresente de forma generalizada, não há dúvidas de que, nesse quesito, um perfil se destaca em meio à população: o dos jovens negros da periferia. E, contrariando a ideia construída no imaginário coletivo, as estatísticas mostram que é no lugar de vítimas – e não de autores – da violência que eles se encaixam melhor.
Uma pesquisa publicada em janeiro pelo Observatório de Favelas, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj) e o governo federal, revelou que mais de 42 mil adolescentes poderão ser vítimas de homicídio nos municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, entre 2013 e 2019.
O Brasil só fica atrás da Nigéria em números absolutos de adolescentes mortos, atingindo o maior patamar da série histórica do levantamento. Outro dado alarmante aponta que a possibilidade de jovens negros serem assassinados é 2,96 vezes superior à dos brancos, o que, segundo alertam grupos de defesa dos direitos humanos, caracterizaria um genocídio por motivações raciais.
Uma das críticas recorrentes de militantes da área de direitos humanos é o silêncio em relação ao problema, principalmente por parte da mídia tradicional, que raramente apresenta o debate de forma mais aprofundada. A imagem dos adolescentes de baixa renda no país quase sempre é mostrada de forma enviesada, reforçando preconceitos e estereótipos na sociedade.
Se por um lado as chacinas cometidas diariamente nas periferias das grandes cidades têm pouca repercussão na mídia, qualquer crime cometido por adolescentes – sobretudo se a vítima for branca e de classe média – ganha destaque certo nos noticiários. A cada episódio, uma avalanche de matérias sensacionalistas se debruça sobre o espectador e o clima de pânico alimenta a sensação de insegurança na população, além de garantir alguns pontos a mais no Ibope.
Na contramão dessa realidade, dados divulgados pelo Programa de Cidadania dos Adolescentes do Unicef mostram que, em 2011, adolescentes foram responsáveis por aproximadamente 1,8 mil homicídios no país, 8,4% do total. Porém, no mesmo ano, 4,3 mil pessoas nessa faixa etária foram assassinadas. Ou seja, mais que o dobro.
Se os adolescentes não representam nem 10% dos crimes contra a vida no Brasil, outra informação que surpreenderia os mais conservadores é que os homicídios estão longe de ser o delito mais praticado. A maioria deles é apreendida por roubo ou tráfico de drogas. Sem dúvida, isso não diminui a gravidade do envolvimento dos mais jovens com a criminalidade, mas o que está em questão é a maneira mais eficiente e adequada para lidar com o problema.
Na opinião do juiz Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é fundamental avançar e ir além da tão alardeada discussão sobre a redução da maioridade penal. “Efetivamente, discursos simplistas, vazios e estéreis precisam ser confrontados com saberes científicos”, afirma. Para ele, o ponto principal é incentivar a prevenção e o investimento em políticas públicas que ofereçam oportunidades de crescimento saudável aos jovens, minimizando as situações de risco.
Excesso de internações
Para os que já estão inseridos na prática de crimes, o magistrado lembra que é preciso relativizar a necessidade de aplicar medidas de privação de liberdade, que só devem ser utilizadas em último caso. “A modalidade de internação deve ser sempre cautelosamente avaliada. É a medida extrema”, explica. Antes de submeter o adolescente à carceragem, existem cinco outras opções, que variam de acordo com a gravidade da infração: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida e regime de semiliberdade.
No entanto, o que se vê na prática é a internação como regra e não como exceção, o que aumenta significativamente a população encarcerada e contribui com problemas de superlotação. Outro desafio, segundo Lanfredi, é fazer com que esse processo contribua para a ressocialização do adolescente para que ele possa, assim, voltar ao convívio da comunidade. Mas, para isso, seria necessário repensar as condições do espaço para onde eles são levados.
Não são raras as denúncias de humilhações, torturas, falta de ventilação e insalubridade em instituições que deveriam, por lei, priorizar a recuperação, a educação e a formação profissional desses jovens. “São poucas as instituições que têm conseguido promover a reaproximação concreta do adolescente infrator com a sociedade. Com direitos violados e submetidos a toda sorte de agressões, inclusive as institucionalizadas, não é de se esperar um retorno pacífico e sereno ao convívio social”, alerta o juiz.
De acordo com levantamento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) de 2012, somente naquele ano 30 adolescentes morreram dentro das unidades de internação, índice que supera a média de dois jovens por mês, tendo como principais causas os conflitos interpessoais e o suicídio.
Isso sem falar em quando adolescentes são presos em cadeias comuns, junto aos adultos. Em 2007, um caso emblemático trouxe a discussão à tona quando uma garota de 15 anos foi levada para uma delegacia no município de Abaetetuba (PA), sendo agredida e estuprada por cerca de 20 presos durante quase um mês. Ela havia sido acusada de furto e foi colocada na mesma cela dos homens por falta de um local adequado.
Perfil dos adolescentes infratores*
- Idade média: 16,7 anos
- 86% não concluíram o ensino básico
- 43% foram criados apenas pela mãe e 17% pelos avós
- 14% dos jovens têm filhos
- 75% fazem uso de drogas ilícitas
- 28% declararam ter sofrido agressão de funcionários, 10% disseram apanhar da PM dentro
das unidades e 19% revelaram outros castigos físicos
*Pesquisa do CNJ de 2012 com 1.898 jovens em privação de liberdade no país
O não à redução da maioridade penal
Para o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos, o cumprimento efetivo do Estatuto da Criança e do Adolescente – que em julho completa 25 anos – é o caminho para a garantia de um desenvolvimento pleno para os jovens brasileiros. “Temos, sim, que prevenir, incluir e garantir oportunidades à juventude. Se o adolescente procura a escola, o serviço de atendimento à drogadição, trabalho e profissionalização e não encontra vaga, ele vai para o crime”, observa.
Sobre a possibilidade de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, o especialista afirma que só pioraria uma situação que já é bastante crítica. Segundo ele, 60% dos presidiários no país voltam a cometer crimes. No sistema de internação de adolescentes, o índice é de aproximadamente 30%. Na Fundação Casa, em São Paulo, por exemplo, chega a 15%.
Ele ressalta que colocar esses jovens em presídios sem qualquer condição de ressocialização poderia ter consequências bastante sérias, que comprometeriam a recuperação dos internos. “Além disso, as propostas de redução da idade penal são inconstitucionais, só poderiam prosperar através de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Trata-se de oportunismo e demagogia”, critica.
Porém, essa é uma discussão que parece não ter fim em uma sociedade que tem dado exemplos cada vez mais contundentes de um crescente conservadorismo. No ano passado, uma pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), com o Instituto MDA, mostrou que 92,7% dos brasileiros são a favor de baixar a maioridade penal para 16 anos. Outros 6,3% foram contra e 0,9% não opinaram.
É claro que, pegando carona nessa demanda, muitos parlamentares passaram a defender essa tese de maneira ferrenha. Na Câmara Federal, existem mais de 20 projetos sobre o assunto. Um deles, do deputado Benedito Domingo (PP/DF), tramita na Casa desde 1993. Há ainda aqueles que propõem a ampliação do tempo máximo de reclusão para os jovens que cumprem medidas socioeducativas. É o caso do Projeto de Lei 345/11, de autoria do deputado Hugo Leal (PSC-RJ), que eleva de 21 para 26 anos a idade limite para a soltura dos adolescentes que cometeram delitos.
De acordo com a ministra de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, esse tipo de proposta é “inadmissível”. “Para nós, é algo inadmissível a redução da maioridade penal. Em 54 países que alteraram a legislação, diagnosticou-se que a redução da maioridade penal não reduziu a violência. Países como Alemanha e Espanha decidiram, inclusive, voltar atrás na decisão. Além disso, se a redução não vier acompanhada da melhoria das condições de inclusão social, pode aprofundar ainda mais as desigualdades de territórios, gênero e raça”, destaca.
Entenda as medidas socioeducativas
O que são?
As medidas socioeducativas são aplicadas pelo juiz para indivíduos de 12 a 18 anos que praticarem atos infracionais. Elas têm como foco um caráter pedagógico que coíba a reincidência dos delitos cometidos por adolescentes. Em tese, a aplicação é baseada em uma análise social e psicológica que leva em conta a capacidade do cumprimento, as circunstâncias do ocorrido e a gravidade da infração.
E quais são elas?
- Advertência
Repreensão verbal, executada pelo juiz, dirigida ao adolescente (sem antecedentes) que cometeu ato infracional de pouca gravidade
- Obrigação de Reparar o Dano
Busca a restituição, ressarcimento ou a compensação do prejuízo sofrido pela vítima. Caso o infrator não possua meios de reparar o dano, a responsabilidade passará a ser dos pais, permitindo a imposição de uma outra medida pedagógica ao adolescente.
- Prestação de Serviços à Comunidade
Tarefas ou serviços não lucrativos, que serão prestados em locais como escolas, hospitais e entidades assistenciais
- Liberdade Assistida
Conjunto de ações personalizadas, que permitem um acompanhamento e orientação adequada, visando à inserção do jovem no convívio familiar e comunitário, além de seu desenvolvimento escolar e integração profissional.
- Regime de semiliberdade
Uma forma de transição do adolescente infrator da internação para o meio aberto. Possibilita a realização de atividades externas em convívio com a sociedade, mas limitando em parte o direito de ir e vir. O regime também prevê a escolarização e a profissionalização no período diurno.
- Internação
Esta medida inclui a privação da liberdade, retirando o infrator do convívio com a sociedade. A internação pode ser imposta em casos de grave ameaça ou violência, ou pela reincidência e descumprimento de outra medida. Assim como as outras, também possui um viés pedagógico, buscando a reinserção do adolescente na sociedade.
O período de internação deve ser constantemente analisado e tem o prazo máximo de até três anos. Atingido o tempo limite, o adolescente deve ser liberado ou inserido na medida de semiliberdade ou liberdade assistida.
Impasse
A ministra afirma que o grande entrave para o governo federal no cumprimento das demandas ligadas aos adolescentes infratores é a relação com os governos estaduais, que, no geral, não veem a pauta como prioridade. “Essa é a área onde eu tenho as mais baixas execuções orçamentárias, os projetos se arrastam, não vemos boa vontade”, opina.
Ela explica que, por esse motivo, a presidenta Dilma Rousseff defende uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para que a União passe a dividir com os estados a responsabilidade da condução das políticas de segurança pública, atualmente atribuição exclusiva dos entes federados. “Estamos condenados pela Corte Interamericana [de Direitos Humanos] pelas condições dos presídios. É a SDH que tem que apresentar avanços, mas não temos a menor condição de obrigar os estados a efetivarem as medidas”, pontua.
Outra iniciativa apontada por Salvatti como fundamental para buscar saídas para esse problema é o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Letal de Crianças e Adolescentes, que está sendo elaborado com o objetivo de definir estratégias e políticas públicas para reduzir a incidência de homicídios entre a população jovem no Brasil.
Justiça?
A história de Ricardo* é um dos exemplos de que a Justiça brasileira não está, definitivamente, a serviço de todos. O rapaz, hoje com 18 anos, nasceu em Brazlândia, cidade a 45 quilômetros de Brasília. Nunca conheceu o pai. A mãe se dividia entre os cuidados com os filhos e o emprego como auxiliar de serviços gerais. Ele conta que desde muito novo trabalhou para ajudar nas despesas de casa, mas, mesmo com o esforço de seguir o caminho que considerava correto, acabou sendo vítima de discriminação, ao ser confundido com um ladrão.
Ricardo foi ao caixa eletrônico de um supermercado para sacar o benefício que a mãe recebia e, vendo que a máquina estava com problema, deixou o local com um amigo que o acompanhava. Não demorou muito para que policiais chegassem, com truculência, acusando os dois de roubo a uma das mulheres presentes no mercado. Uma sequência de socos, chutes e humilhações começou ainda na delegacia.
A pessoa apontou para eles como autores do ato e a polícia acreditou na história, sem sequer questionar. “Passei vergonha porque todo mundo da rua me conhecia. Todo mundo ficou olhando”, lamenta.
Resultado: um ano de encarceramento no antigo Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje), conhecido no DF por constantes denúncias de maus-tratos. “Se você não se cuidar, você apanha. Os caras fazem o que querem com você. Fiquei tentando controlar minhas emoções”, conta. Para Ricardo, a situação virou um pesadelo. “Fui tratado como cachorro, os agentes xingam, a comida é horrível, não tem cobertor e dormimos no chão”, relata.
Cumprida a penalidade, ele pensa em processar a mulher que o acusou sem provas. “Não tenho raiva nem revolta, graças a Deus, mas tenho em mim que a justiça vai ser feita”, afirma. Hoje, o rapaz participa do projeto Jovens em Harmonia com a Vida, da Defensoria Pública do DF, em parceria com a Secretaria de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude do governo do Distrito Federal.
A iniciativa busca acompanhar e oferecer, a adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, uma chance de ter reintegração na comunidade. Lá, cerca de duzentos jovens fazem estágios com ou sem remuneração, dependendo da decisão judicial.
Para Ingrid Quintão, diretora do Departamento de Atividade Psicossocial (DAP) da Defensoria, oferecer oportunidades assim é algo que faz toda a diferença para que essa transição seja feita de uma maneira positiva. “Este jovem passa a ganhar responsabilidade e ter contato com outras pessoas e outra expectativa de vida, mudando sua relação com a família, com o dinheiro, aprendendo a trabalhar em equipe e a conviver com outras pessoas”, explica.
* O nome foi alterado para preservar a identidade do entrevistado
Redução da maioridade penal: mitos e verdades
1. Mito: O ECA não permite punição para adolescentes em conflito com a lei
Verdade: O ECA prevê seis tipos de medidas socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação, que implica real privação de liberdade, podendo durar até 3 anos.
2. Mito: Os adolescentes são responsáveis por grande parte da violência praticada no país
Verdade: Os atos infracionais realizados por adolescentes não atingem 10% do total de crimes praticados no Brasil. O que de fato acontece é que qualquer ato infracional praticado por adolescentes é amplamente divulgado, dando a impressão de que esta é uma prática comum. Se assim fosse, esses atos já fariam parte dos noticiários policiais e não ocupariam as manchetes dos jornais.
3. Mito: Os adolescentes estão ficando cada vez mais perigosos, cometendo crimes mais graves
Verdade: De todos os atos infracionais praticados pelos adolescentes, somente 8% equiparam-se a crimes contra a vida. A grande maioria dos atos infracionais – cerca de 75% – são contra o patrimônio, sendo que 50% são furtos.
4. Mito: Somente com a diminuição da idade penal e imposição de penas a adolescentes, em patamar elevado, haveria uma diminuição da violência nessa faixa etária
Verdade: Está mais do que provado que a punição pura e simples, bem como a quantidade de pena prevista ou imposta, mesmo para adultos, não é um fator de diminuição da violência. Exemplo claro é aquele dado pela chamada Lei dos Crimes Hediondos, que através de um tratamento mais rigoroso com os criminosos pretendia diminuir sua incidência. Ocorre que nunca foram praticados tantos crimes hediondos como hoje, estando nossas cadeias abarrotadas a ponto de estudar-se a revogação da lei e sua substituição por uma menos severa.
(Informações do Instituto Recriando, da Rede ANDI Brasil)
“Os chamados centros socioeducativos ainda são grandes masmorras”
Depoimento de Conceição Paganele, presidente e fundadora da Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (AMAR)
“Quando me deparei com a internação do meu filho na antiga Febem, tive a esperança de que ali ele fosse tratado do problema com as drogas. Mas, infelizmente, me deparei com uma concentração de sobreviventes do abandono do Estado. Foi traumatizante entrar nas unidades de internação e perceber o olhar de dor daquelas mães. O medo e a dor gritavam profundo no olhar de cada uma de nós. Saindo dali, quis conversar com elas; era preciso fazer algo. A AMAR surgiu do amor e da dor.
Os chamados centros socioeducativos são grandes masmorras, com avanços ainda muito tímidos. Hoje, a associação tem colaboradores em vários estados. Nós, sociedade, temos que estar muito atentos aos jovens, que são a continuação da humanidade, e fiscalizar o nosso país, que tem fama de torturador.
Tenho acompanhado as superlotações das unidades, cada vez inchando mais, com maus-tratos e violência. É preciso aumentar a fiscalização, investir em medidas de prevenção e medidas socioeducativas de meio aberto. Muitos jovens saem e tentam se equilibrar na vida. É uma luta contínua”.
FONTE: Revista Forum
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