sexta-feira, 26 de abril de 2019

O Brasil perderá suas escolas rurais?



São uma conquista da luta por reforma agrária. Surgem sem recurso algum – exceto o desejo de formar cidadãos. Espalharam-se pelo país. Estão ameaçadas pelo corte dos programas sociais e a propaganda hostil da ultra-direita



Por Anelize Moreira, no Brasil de Fato




O lugar onde você mora fica a muitos quilômetros da cidade e você e outros meninos e meninas querem estudar, mas lá não existe escola. Você e as famílias da sua comunidade se juntam e coletivamente constroem uma, conseguem apoio e autorização do poder público e educadores da própria comunidade fazem parte do dia a dia escolar. É assim que nascem as escolas que atendem crianças e adolescentes sem-terra na zona rural brasileira. Ao ocupar uma terra improdutiva, uma das principais preocupações do MST é assegurar o direito à educação das famílias camponesas.

Foi assim, por exemplo, com a Escola Bernardo Sabino, no Assentamento Palmares, em Luzilândia, norte do Piauí. A alfabetização das crianças começou a acontecer pelos próprios assentados em um barracão de palha e hoje, mais de 20 anos depois, tornou-se uma referência na região pela qualidade de ensino.

“Em 1997, quando  se estabeleceu o acampamento, buscamos quem tinha maior nível de escolaridade entre os acampados. Eu só tinha ensino médio. Começamos a alfabetizar as crianças e depois de três anos legalizamos a escola. Porém, professores da rede municipal se recusavam a dar aula no assentamento. Nós tivemos que nos organizar e fazer curso superior em outro estado. Voltamos pra escolinha com a proposta de ensinar voltado mais para a educação do campo”, lembra Ildener Pereira de Carvalho, assentada e educadora da escola, que fica a 240 quilômetros da capital Teresina.

Um dos primeiros desafios das famílias é conseguir apoio do poder público para construção dos espaços de ensino. Apesar das dificuldades enfrentadas, no Assentamento Palmares atualmente as aulas acontecem em um prédio de alvenaria. Porém, a infraestrutura em âmbito rural precisa ser compreendida em seu contexto. No sul do país, no assentamento Eli Vive1, no Paraná, a Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, as salas são de madeira, mas o envolvimento de educadores é grande e o mais importante acontece: o processo de aprendizagem, independe das condições de infraestrutura — que não são como da cidade.

“A escola é toda feita de madeira e foi construída pelos próprios assentados. As famílias quando chegaram no local se organizaram e construíram salas de aulas. A estrutura ainda é precária, as crianças merecem estruturas melhores, porém isso não impede que o trabalho seja realizado dentro da proposta pedagógica que o próprio município impõe para a educação no campo”, conta José Carlos de Jesus Lisboa, diretor da escola.

Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, assentamento Eli Vive1,
Paraná/José Carlos de Jesus Lisboa.
O conceito de educação do campo foi formulado a partir da iniciativa de movimentos populares do campo, que começaram a pressionar o Estado por políticas públicas específicas para as populações não-urbanas. Até então, as escolas rurais eram sucateadas e desassistidas pelo poder público. Além do MST, lutaram pelo direito à educação a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e movimentos dos povos da floresta como indígenas, quilombolas e ribeirinhos.

“As famílias que foram chegando nos acampamentos desde a década de 1980 passaram a entender que não bastava lutar pela terra. Para poder plantar, para sobreviver, era preciso lutar por outras políticas públicas fundamentais para o desenvolvimento dos territórios.”, explica Erivan Hilário, da direção nacional do MST, do setor de educação. Foi assim que grupos que vivem no e do campo contribuíram para a efetivação da política, e também para denunciar o fechamento de escolas no campo na década de 1990. Hoje o ensino na zona rural é garantido pela legislação.

“A educação no campo foi conquistada no Brasil pelos movimentos sociais e camponeses como uma modalidade específica de educação formal na nossa legislação. A LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, as resoluções do Conselho Nacional de Educação, o Plano Nacional de Educação reconhecem o direito das populações de camponeses, ribeirinhos, povos da floresta de terem uma oferta educacional que é adequada às suas condições de vida, aos seus territórios. Antes de tudo, é um direito assegurado na nossa legislação”, explica o professor de políticas públicas da UFABC Salomão Ximenes.

Em 2010, o ex-presidente Lula assinou e regulamentou por decreto as políticas públicas voltadas ao meio rural. As escolas instaladas nos assentamentos e acampamentos não são do movimento, mas equipamentos públicos vinculados aos estados e municípios, assim como outras escolas rurais. Mais de 200 mil alunos acessam o ensino básico nas mais de 2 mil escolas públicas construídas em acampamentos e assentamentos que atendem crianças, adolescentes, jovens e adultos. Essas escolas seguem regras das secretarias de educação, mas possuem as particularidades de cada região, de acordo com o território em que estão inseridas.

Escola Municipal Maria Salete Moreno,
assentamento Palmares 2, em Parauapebas,
Pará/Ícaro Matos Neri



Para o Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação no Campo da Universidade Federal de São Carlos, Luiz Bezerra, é preciso entender que essas escolas nasceram da luta pelo direito à educação pública, de qualidade e não são propriedade do MST, mas dizem respeito a uma demanda por educação na zona rural.

“É preciso desmistificar que a escolas do campo são do movimento, porque não são. As escolas são públicas e mantidas pelo estado ou município. Quem escolhe professor é o estado ou município, o movimento não interfere nessa escolha. Mesmo quando a escola é de assentamento, não é ele que designa o professor.”

O número de escolas no campo diminuiu significativamente nos últimos dez anos. De acordo com Censo Escolar, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC), em 2008 existiam no Brasil mais de 85 mil escolas rurais públicas. Em dez anos, esse número caiu para pouco mais de 56 mil escolas. De acordo com levantamento da UFSCar, o número é maior, pois entre os anos de 2002 a 2017 já havia sido registrado o fechamento de 38 mil escolas.

“Esse número pode ser maior. Esses dados de agora estão camuflados. Como tem uma lei que dificulta o fechamento de uma escola, que requer a concordância da comunidade, eles simplesmente suspendem as atividades na escola, mas não fecham. E quando está suspenso, ela não entra nos dados de fechamento. O argumento é que a qualquer momento as aulas podem ser retomadas, mas não tem alunos suficientes”, ressalta o pesquisador sobre os dados do Inep.

O pesquisador explica que não houve êxodo rural que justifique o fechamento nos últimos anos, mas atribui a redução ao custo aluno no campo ser maior do que na cidade. A lei que dificulta o fechamento de escolas rurais indígenas e quilombolas foi sancionada em 2014, pela presidenta Dilma Rousseff.

Segundo o professor da UFABC, a educação no campo é uma modalidade que vem sofrendo um conjunto de ataques significativos nos últimos anos. Ele comenta que antes do golpe de 2016 eram “ataques mais velados” pela ausência de apoio efetivo por parte dos governos estaduais e municipais e, depois, passa a haver  “incentivo mais forte de fechamento de salas”.

“Hoje há uma intenção de um ataque mais direto a oferta de educação do campo, sobretudo aquela oferta que é organizada pelo movimento dos trabalhadores do campo, quilombolas, como espaço de resistência e defesa do seu modo de vida e de produção. Há necessidade de fortalecer políticas públicas dessa modalidade de ensino e de resistência desses povos, que na prática mantêm viva a educação no campo”.

Uma reportagem da TV Record acusou o MST de doutrinação socialista de crianças. Desde a campanha eleitoral do ano passado, Jair Bolsonaro (PSL) já apontou o movimento como um dos seus inimigos e enfatizou que irá acabar com escolas do campo que estão em espaços onde as famílias sem terra plantam alimentos para sua subsistência e comercializam produtos agroecológicos.

Unidade Escolar Bernardo Sabino, assentamento Palmares, Luzilândia,
Piaui/Nemoel Klessler Costa Silva

“Há uma falsa ideia de que o MST atua como estado paralelo. Todas as escolas que existem em assentamentos e acampamentos são públicas e assim defendemos. O MST virou referência por ter lutado para ter escolas públicas em seus territórios, por ter formulado um projeto de educação conectado com a realidade do campo de tal modo que ganhou o prêmio UNICEF como melhor projeto educação ”, comenta o dirigente do MST.

As escolas em assentamentos têm sido exemplares na qualidade de ensino se destacando em olimpíadas da Língua Portuguesa, História e atualmente tem nas pesquisas de educação. Através do método cubano ‘Sim eu Posso’, que o MST promove junto ao governo do Maranhão, mais de 50 mil adultos já foram alfabetizados.


Esse é o primeiro capítulo da série de reportagens “Saberes da Terra”. O especial traz em quatro reportagens experiências de escolas do campo em assentamentos que vêm quebrando preconceitos e garantindo direito a educação à milhares de crianças e adolescentes na zona rural. 



terça-feira, 16 de abril de 2019

Educação domiciliar prevê que pais definam plano pedagógico





ANA LUIZA BASILIO -Proposta assinada nesta quinta-feira 11 por Bolsonaro também aponta avaliação anual de desempenho para os estudantes

O presidente Jair Bolsonaro assinou nesta quinta-feira 11 o projeto de lei que regulamenta a prática da educação domiciliar, conhecida como homeschooling. A proposta integra uma lista de documentos assinados em uma cerimônia no Palácio do Planalto na tarde da última quarta-feira, quando se completou 100 dias de governo.

O projeto de lei altera o previsto na Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996), que prevê como dever dos pais ou responsáveis a matrícula de crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade. A mesma lei reconhece a educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos 17 anos de idade, organizada nas modalidades de pré-escola, ensino fundamental e ensino médio.

Também modifica o previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) que prevê o direito à educação atrelado ao acesso de crianças e adolescentes à escolas públicas e gratuitas e próximas de sua residência.

Para entrar em vigor, o projeto passará por tramitação no Congresso.

 A educação domiciliar dá a possibilidade a pais ou responsáveis legais de preverem o regime de ensino de crianças e adolescentes, e dá a eles prioridade de direito na escolha do tipo de instrução que será ministrada a seus filhos. No artigo 205 da Constituição Federal, a educação é entendida como um direito de todos e dever do Estado e da família e sua promoção com a colaboração da sociedade.

O texto do PL diz que a opção pela educação domiciliar será efetuada pelos pais ou pelos responsáveis legais do estudante, formalmente, por meio de plataforma virtual do Ministério da Educação, onde devem constar: documentação de identificação do estudante, na qual conste informação sobre filiação ou responsabilidade legal; documentação comprobatória de residência;
termo de responsabilização pela opção de educação domiciliar assinado pelos pais ou pelos responsáveis legais; certidões criminais da Justiça Federal e da Justiça Estadual ou Distrital; plano pedagógico individual, proposto pelos pais ou pelos responsáveis legais; e caderneta de vacinação atualizada.

Esse cadastro teria que ser renovado anualmente pelos familiares, com a publicação do plano pedagógico individual direcionado ao estudante. Também é responsabilidade dos representantes legais da criança e adolescente a inserção de registros periódicos das atividades pedagógicas do estudante na plataforma.

Sobre a avaliação dos estudantes, o PL aponta que o estudante será submetido a uma avaliação anual sob a gestão do Ministério da Educação. Caso o desempenho seja considerado insatisfatório, o texto menciona a oferta de uma prova de recuperação. Também prevê, no artigo 9º, a regulação de taxas pelo MEC para fins de custeio das avaliações (serão avaliadas hipóteses de isenção de pagamento).

Também estão previstas condições para que os pais sigam com o direito à educação domiciliar que pode ser suspenso em alguns casos: quando o estudante for reprovado, em dois anos consecutivos, nas avaliações anuais e nas provas de recuperação; quando o estudante for reprovado, em três anos não consecutivos, nas avaliações anuais e nas recuperações; quando o aluno injustificadamente não comparecer à avaliação anual ou enquanto não for renovado o cadastramento anual na plataforma virtual.

Direito à educação em risco?

A regulação da educação domiciliar foi pauta do Supremo Tribunal Federal no ano passado, que decidiu por não reconhecê-la como modalidade de ensino. Para a Corte, a Constituição prevê apenas o modelo de ensino público ou privado, cuja matrícula é obrigatória, e não há lei que autorize a medida.

Especialistas ouvidos por Carta Capital à época sinalizavam pouca representatividade do tema diante dos quase 50 milhões de estudantes da educação básica. Um levantamento realizado pela Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), uma das principais influenciadoras do tema, indicam 7,5 mil famílias e 15 mil estudantes na modalidade, em 2018.

Além disso, apontavam preocupação com o direito à educação. O coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara entende ser fundamental a convivência dos estudantes com os demais jovens e professores nas escolas. “O direito à educação vai muito além da mera instrução”, declarou.

O professor da Universidade Federal do ABC e doutor em Direito pela USP, Salomão Ximenes, também questionou o entendimento que á trazido com a lei de que a família está acima do Estado na definição da educação. “Seria necessário redesenhar não só a concepção de educação, como a de política educacional e de escola pública”, explicou.

Ximenes reforça a concepção de educação pública e republicana que, além da complementaridade entre Estado e família no dever de estudar, reconhece a educação obrigatória “como um requisito necessário para a igualdade e democracia, independente da posição de seus pais”.

A preocupação dos especialistas mira nos interesses que sustentam a agenda e que, para eles, têm convergência com o Escola sem Partido. O presidente da Aned, Ricardo Dias, traz como um dos motivos para os pais tirarem seus filhos da escola a “doutrinação ideológica”, principal reivindicação do movimento, amplamente acolhida por Bolsonaro e seus representantes governamentais, como o atual ministro da educação Abraham Weintraub, declarado apoiador do combate a um suposto marxismo cultural nas instituições de ensino.


terça-feira, 9 de abril de 2019

Qual o interesse em retirar Sociologia e Filosofia do currículo?





Ana Luiza Basilio — Especialista questiona pesquisa do Ipea que atrela a piora na aprendizagem da Matemática às disciplinas.
Segundo pesquisa, a presença das disciplinas impacta negativamente a aprendizagem em Matemática
Filosofia e Sociologia obrigatórias derrubam notas em Matemática”. O título da reportagem publicada na Folha de S.Paulo na segunda-feira 16 revela os resultados de uma pesquisa inédita que será publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo, realizado pelos pesquisadores Thais Waideman Niquito e Adolfo Sachsida, já apontado como conselheiro econômico de Bolsonaro, defende que a presença das disciplinas como componentes curriculares obrigatórios no Ensino Médio prejudica a aprendizagem dos estudantes, essencialmente os de baixa renda.

Para chegar à conclusão de que a obrigatoriedade das disciplinas na etapa, estabelecida pela Lei 11.684 de 2008, levou à queda no desempenho escolar, os pesquisadores tomaram como base os resultados de estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em dois momentos. A pesquisa comparou os resultados dos alunos que prestaram o exame em 2009, por entender que eles ainda não tinham sido impactados pela obrigatoriedade, com aqueles que o prestaram em 2012, após a promulagação da Lei.

A partir das correlações, os autores levantam a hipótese de que, dada a limitação de carga horária do Ensino Médio, a inserção obrigatória de qualquer nova disciplina “se reflete em redução no espaço dedicado ao ensino das demais”.

As aferições são vistas com preocupação pela socióloga e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia São Paulo (IFSP), Ana Paula Corti. A especialista, também membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), pontua inconsistências na metodologia do estudo e questiona a sua intenção.

“É notório que o desempenho em Português e Matemática, assim como em outras disciplinas, muitas vezes é colocado como insatisfatório nos resultados de avaliações em larga escala”, avalia Corti. “Muitas questões explicam isso, como a precariedade do sistema público, a falta de investimento, os problemas de financiamento e estrutura. Em nenhum momento, as pesquisas ou o conhecimento acumulado sugerem que esses problemas possam ser explicados pela presença de alguns componentes curriculares na escola”, avalia.

A especialista indaga: “Por que tanto interesse em mostrar que Sociologia e Filosofia tem que sair do currículo?”. Confira na entrevista.

Carta CapitalQual a sua leitura sobre a pesquisa “Efeitos da inserção das disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio sobre o Desempenho Escolar”?

Ana Paula Corti: O primeiro aspecto que me chamou a atenção foi o título contundente da reportagem veiculada pela Folha, que é categórico ao relacionar a piora do desempenho em Matemática com o ensino de Filosofia e Sociologia. É muito atípico explicar parte do rendimento em uma disciplina em função da existência de outra.

Depois, lendo o estudo, dá para perceber que ele busca produzir um certo conhecimento correlacionando disciplinas, tentando estabelecer uma relação que é difícil entender. Por que esse interesse de explicar o rendimento de uma disciplina em função da existência de outra? É notório que o desempenho em Português e Matemática, assim como em outras disciplinas, muitas vezes é colocado como insatisfatório nos resultados de larga escala.

Muitas questões explicam isso, a precariedade do sistema público, a falta de investimento, os problemas de financiamento e estrutura. Em nenhum momento as pesquisas ou o conhecimento que temos sugere que esses problemas possam ser explicados pela presença de alguns componentes curriculares na escola. É estranho que os pesquisadores queiram estabelecer esse tipo de relação.

CC:  Como você avalia os caminhos metodológicos para estabelecer as conclusões da pesquisa?

AC: O método que usaram para fazer a correlação apresenta muitas falhas. Do ponto de vista metodológico, a pesquisa apresenta dois experimentos, ambos baseados nos resultados do Enem. No primeiro, eles comparam o rendimento dos alunos no exame em dois anos diferentes, 2009 e 2012, supondo que no primeiro ano, os alunos não tinham tido aulas de Filosofia e Sociologia e, no segundo, já tinham tido contato com as disciplinas. A ideia então foi comparar esses rendimentos para avaliar como a inclusão da Sociologia e Filosofia impacta as notas em Matemática e Português.

A Lei que torna o ensino de Sociologia e Filosofia obrigatório é de 2008, mas isso não significa que essas disciplinas não estivessem nas escolas antes desse período, porque as escolas não só podiam contemplá-las como várias já o faziam. Então, não é verdade que os alunos que fizeram o Enem em 2009 não tiveram essas aulas.

A outra questão é que a inclusão dessas disciplinas como componentes obrigatórios foi algo progressivo, porque tivemos resistência por parte de alguns estados. Notadamente os estados governados pelo PSDB, como é o caso de São Paulo, tiveram uma enorme resistência. O Conselho Estadual de Educação paulista, na época, tentou de todas as maneiras não implantar a Legislação na rede estadual. Os próprios autores dizem no estudo que, em 2010, apenas 48,5% das escolas do País ofertavam Sociologia e Filosofia. Isso significa que não é possível ter segurança de que os alunos analisados pelo estudo realmente tiveram aulas sobre essas disciplinas.

O que é grave? Toda a correlação que o estudo faz apontando uma piora no desempenho em Matemática é feita com base em alunos que podem ou não ter tido aulas de Sociologia e Filosofia. Então, isso já coloca, ou deveria colocar, muitos cuidados com relação a qualquer tipo de conclusão. O experimento não permite chegar a conclusões contundentes.

CC: A pesquisa fala em um segundo experimento com as escolas…

AC: O segundo experimento é baseado na média das escolas no Enem. Qual é o problema dessa vez? O Enem é uma exame de caráter voluntário, os alunos o fazem se quiserem e quando quiserem. Eles podem prestar o exame tendo concluído o Ensino Médio naquele ano ou há dez anos atrás, por exemplo. A consequência disso é que o Enem não é um exame bom para analisar resultado por escola, justamente porque você tem escolas em que dois estudantes fizeram o exame, outras em que 300 alunos o fizeram e unidades em que ninguém fez.

Os autores também reconhecem isso no estudo ao apontar que, em 2010, apenas 31% das escolas tiveram nota no Enem, ou seja, muitas delas ficaram de fora porque provavelmente seus estudantes não participaram do exame. Então, analisar as médias das escolas no Enem é, no mínimo, um procedimento falho.

CC: Na sua opinião, os métodos da pesquisa não validam as conclusões feitas?

AC: No mínimo, eles precisavam colocar qualquer conclusão com muito cuidado, apontando as limitações, mas não é isso que vemos, observamos resultados contundentes. Os pesquisadores dizem claramente que a limitação da carga horária no Ensino Médio faz com que, ao incluir uma disciplina, se prejudique outras. Isso não só não é verdade, como o estudo não investigou a questão. Há conclusões que estão fora do escopo dos objetivos da investigação feita, o que nos leva a desconfiar da intencionalidade do trabalho. Outra questão é que a pesquisa não consegue produzir evidência de que o estudo de Filosofia e Sociologia tem algum tipo de impacto no aprendizado da Matemática, muito menos provar que ele piora o ensino como é sugerido.

Quando você encontra uma correlação matemática ou estatística entre variáveis, isso não significa relação de causalidade. Também é um problema muito grave da pesquisa a maneira como eles tratam os resultados.

CC: Diante disso, como avalia as intenções da pesquisa?

AC: O que eu tenho visto nas pesquisas das áreas é muito mais uma tentativa de tentar entender como essas disciplinas vem sendo implantadas e quais são os resultados de aprendizagem. Você não vai encontrar coisas do tipo: o ensino de Biologia piora o ensino de Sociologia! Então, eu fico me perguntando se a busca por esse tipo de correlação não teria a ver com uma intencionalidade oculta de sugerir, nesse contexto que estamos vivendo de Reforma do Ensino Médio, que as disciplinas de Sociologia e Filosofia podem ser retiradas do currículo. Qual o interesse de tentar provar que a retirada das disciplinas não só não vai fazer falta como poderia melhorar o aprendizado em Matemática? É uma correlação espúria e uma maneira de tentar produzir evidências no mínimo duvidosas.

CC: Vê interesses dos autores da pesquisa nas afirmações?

AC: O fato de um deles, o Adolfo Sachsida, ter uma relação direta com políticos como Bolsonaro e projetos bastante controversos como o Escola sem Partido é complicado. Claro que os pesquisadores são cidadãos, tem seus posicionamentos políticos, e não têm que ter suas pesquisas questionadas por serem de direita ou esquerda.

Temos que tomar cuidado com isso, porque se imagina que eles tenham capacidade de ter uma autocrítica ao produzirem suas pesquisas. Agora, nesse caso específico, a gente fica se perguntando se esse pesquisador não tem como objetivo produzir evidências que atestem as políticas polêmicas que ele apoia, caso da Reforma do Ensino Médio e do Escola sem Partido.

Nós sabemos que para muitos partidários desse movimento, a Sociologia e a Filosofia é uma pedra no sapato por serem disciplinas de vocação crítica, reflexiva e que trazem o tema da política para a sala de aula como uma demanda da formação cidadã contemporânea. Sabemos que o Sachsida é um partidário do movimento, então acho que no mínimo precisaríamos ouvir outras vozes.

CC: Na sua opinião, a pesquisa valida a reforma do Ensino Médio?

AC: A reforma do Ensino Médio foi apresentada no final de 2016, como Medida Provisória, no mesmo período em que foi apresentada a PEC do congelamento dos gastos públicos, hoje Emenda Constitucional 95. Nada disso foi ao acaso, essas medidas estão conectadas.

O Ensino Médio é de responsabilidade dos estados e nós sabemos que eles estão enfrentando uma crise econômica e fiscal. Ao mesmo tempo, a EC 95 coloca para os estados um limite com gastos em educação. O que quero dizer com isso é que a Reforma do Ensino Médio, na medida em que diminui a oferta de formação geral, flexibiliza a contratação de professores, e permite convênios com instituições privadas, sobretudo com o itinerário formativo da formação profissional, é também uma maneira de promover esse ajuste fiscal. A Reforma é uma ação vinculada a um modelo neoliberal, O Estado mínimo, que permitirá aos estados fazerem ajustes e estabelecerem um modelo de oferta educacional com redução de custos.

Vale lembrar que o Sachsida foi favorável à aprovação da emenda do teto de gastos. Então, juntando, por que tanto interesse em mostrar que a Sociologia e a Filosofia têm que sair do currículo? Por quê a tentativa de mostrar que o currículo do Ensino Médio precisa valorizar só Português e Matemática? Porque essa é uma visão professada pela reforma do Ensino Médio, o que me leva a crer que a pesquisa que tenta produzir evidências para legitimá-la.

https://www.cartacapital.com.br/politica/qual-o-interesse-em-retirar-sociologia-e-filosofia-do-curriculo




quarta-feira, 3 de abril de 2019

Paulo Arantes provoca: a esquerda está sem programa


Em debate com movimentos sociais e intelectuais gaúchos, professor sustenta: é tolo tentar reconstruir a utopia a partir do velho mundo do trabalho




Por Marco Weissheimer, no Sul21


Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, em novembro de 2018, Paulo Arantes, professor de Filosofia aposentado da Universidade de São Paulo (USP), definiu assim o que chamou de “encrenca brasileira”: “abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil”. Nos primeiros dias de janeiro de 2019, Paulo Arantes participou, em Porto Alegre, de uma conversa com um grupo de lideranças políticas, sindicalistas, professores universitários e representantes de movimentos sociais sobre o cenário político que se abre no país a partir da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado. O ponto de partida dessa conversa foi o detalhamento desta noção de ingovernabilidade que, na avaliação de Arantes, é um fenômeno que não se restringe ao Brasil.

Segundo ele, o Brasil tornou-se ingovernável não no sentido mais tradicional da palavra, de que não possa haver um governo e instituições formalmente funcionando, mas sim em um sentido mais profundo: falta o que governar, o que vai se governar exatamente? Em sua reflexão sobre as raízes dessa governabilidade, Paulo Arantes recua até 1964, quando a democracia foi interrompida no Brasil por um golpe de Estado. Para ele, a ideia de um que país periférico como o Brasil pudesse se tornar uma democracia com desenvolvimento social “foi rifada em 64”. Essa inviabilidade vai se tornar ainda mais evidente com a eleição de Collor, em um momento em que o capitalismo vivia um processo de reestruturação produtiva em nível internacional.

“A partir da redemocratização, violência passou a ser o nexo social central”

Neste momento de “catástrofe nacional”, no entanto, assinala Arantes, emerge um partido de massas, renovando as energias utópicas na sociedade brasileira. Para ele, porém, essa novidade, que foi a criação do Partido dos Trabalhadores, ignorou o diagnóstico da inviabilidade de construção de um projeto nacional, estabelecido em 64. “Havíamos batido no teto e a lógica era outra. A partir do período da redemocratização, a violência passou a ser o nexo social central”, sustenta. A sociedade estava mudando radicalmente e isso não foi percebido como deveria ser. O PT cresce, obtém sucessivas vitórias eleitorais e começa a irrigar esse “campo catastrófico” (uma sociedade onde a violência vai se tornar o principal nexo social) com dinheiro, via políticas públicas. “Isso ruiu. Não se governa mais. É disso que se trata”, resume.

No Rio de Janeiro, exemplifica, as milícias têm poder suficiente para esnobar os políticos, já administram vastos territórios e fazem parte da ingovernabilidade. Em São Paulo, o PCC (Primeiro Comando da Capital), os evangélicos, os agentes do Estado e os trabalhadores precarizados habitam mundos incomunicáveis. “A única coisa que os reúne é o dinheiro. Tem que circular uma grande massa de dinheiro nas periferias, se não a coisa explode”. Os governos do PT, na opinião do professor, executaram com primazia um conjunto de políticas compensatórias, apoiadas pelo Banco Mundial, mas esse modelo bateu no teto.

“As periferias estão por toda parte”

Na avaliação de Paulo Arantes, não há mais possibilidade de um planejamento estratégico em um país como o Brasil. “Fazemos parte de uma sociedade global que está se periferizando. A diferença entre o Brasil e a França não é mais tão grande. As periferias estão por toda a parte. O mundo inteiro está nestas periferias. Não temos mais uma sociedade salarial. Quem herdar essa massa falida vai governar o quê? “, questiona. Para o professor da USP, o círculo militar que cerca Bolsonaro tem esse diagnóstico em mente. Ele chama atenção para uma recente entrevista do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), onde ele disse: “se o governo não der certo, a única coisa que a minha geração terá visto dar certo foi o Pelé jogar bola”. A entrelinha dessa declaração, avalia Paulo Arantes é: essa é a última cartada que nós temos. Há um colapso do sistema andamento e precisamos (nós, militares) entrar em campo. E pensam: Se conosco não der certo….

Ele destaca outra marca importante do diagnóstico que os militares fazem sobre a situação do Brasil e do mundo. A maior parte do staff militar de Bolsonaro é formado por veteranos da contra-insurgência, como é o general Augusto Heleno, que comandou a força militar do Brasil no Haiti. “Eles sabem que poder militar depende de industrialização e que não dá mais. Ficamos muito para trás (com o processo de desindustrialização que o país viveu nas últimas décadas). Além disso, eles preveem que vem aí um grande conflito mundial, envolvendo Estados Unidos, China e Rússia, e que o Brasil precisa se realinhar imediatamente. Para eles, há uma Síria do nosso lado, que é a Venezuela, onde a Rússia, a China e outros países já estão presentes. Se a Venezuela explodir, o conflito vai vazar por todas suas fronteiras. Esse diagnóstico explicaria a velocidade com que o novo governo aderiu à agenda política dos Estados Unidos.

“A construção da sociedade do trabalho foi para o brejo”

Como é que a esquerda pode se contrapor a esse cenário? – questiona Paulo Arantes. O início de sua resposta a essa questão: “não é com um programa de 40 anos atrás”. Para ele, a esquerda de um modo em geral e, em especial, o PT, não deu a devida a atenção para as profundas mudanças que aconteceram na sociedade brasileira. “Acabou a utopia varguista da carteira assinada. Não tem mais solução pelo pleno emprego no mundo inteiro. A construção da sociedade do trabalho foi para o brejo”, opina. A direita e a extrema-direita, por outro lado, entenderam muito melhor o que estava se passando, avalia. “A era de direitos humanos pós-guerra fria está encerrada. O renascimento da política se deu com a extrema direita. Ela reinventou a luta política no mundo.”

O corolário desse avaliação, para a esquerda, conclui Paulo Arantes, passa, entre outras coisas, pela atualização do diagnóstico acerca do tipo de sociedade na qual vivemos hoje, com a formação de crescentes periferias ingovernáveis pelo mundo inteiro. Além disso, esse diagnóstico deve vir acompanhado por novas respostas a questões nada singelas, como, por exemplo: o que fazer, do ponto de vista da luta política de esquerda, em uma sociedade onde a violência passou a ser o principal nexo social?


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...