sábado, 28 de setembro de 2019

O que há por trás de Greta Thunberg


Como se articulou a Greve Climática Global – em que milhões questionaram corporações e governos. Por que a garota sueca tornou-se símbolo. A progressiva politização: da esperança ao desencanto e protestos. O que esperar agora




27/9, milhares nas ruas em Valencia (Espanha). No encerramento da semana de Greve Global pelo Clima,
multidões foram às ruas em centenas de cidades.


Por Nick Engelfried, no CTXT | Tradução: Antonio Martins


MAIS:
Calcula-se que 6 milhões de pessoas — a grande maioria muito jovens — tenham participado da Greve Global pelo Clima. Veja aqui nossa cobertura e imagens da primeira jornada (20/9) do grande protesto.


Começou com um chamado à ação de um grupo de jovens ativistas espalhados pelo mundo, e logo tornou-se o que está se configurando como o maior protesto em favor do clima já visto, em escala planetária. A Greve Global pelo Clima, que terminou nesta sexta-feira (27/9) não foi a primeira ocasião em que pessoas de todo o mundo foram às ruas num único dia contra a destruição da natureza. Mas talvez seja um ponto de virada na resistência de base aos combustíveis fósseis.

“As greves estão ocorrendo em quase todos os lugares em que você pode pensar”, diz Jamie Margolin, uma estudante de ensino médio de Seattle, EUA, que jogou um papel na deflagração deste movimento global. “As pessoas estão participando em literalmente todas as partes do mundo”.

Buenos Aires, 27/9

Entre os dias 20 e 27, milhões de pessoas participaram de ações que exigiram dos governos agir diante da crise climática. De estudantes muito jovens organizando manifestações a ativistas experientes planejando corte de vias em grandes cidades, as pessoas chamaram atenção para a urgência moral da mudança climática ao interromper a banalidade da vida cotidiana.

“É um instante de galvanização do movimento pelo clima, que está perdendo a batalha até agora”, diz Jake Woodier, da Rede Norte-Americana de Estudantes pelo Clima, que organizou-se para a greve em Londres e outras cidades do Reino Unido. “De repente, há toda uma nova geração de ativistas desafiando todo mundo, não importa quem seja, por não fazer o suficiente – e isso está despertando as pessoas”.

Roma, 27/9. Os protestos ocorreram em dezenas de cidades  italianas
e reuniram 1,3 milhões de pessoas.
Como quase sempre, no caso de grandes movimentos sociais, o impulso para a Greve do Clima partiu de muitas iniciativas distintas, em diferentes pontos. Mas se as origens podem ser ligadas a um evento específico, foi provavelmente uma marcha em 2018, organizada pela organização juvenil Hora Zero (Zero Hour), que Margolin ajudou a fundar um ano antes, com um pequeno grupo de outros ativistas jovens – principalmente estudantes não brancos.

A marcha juvenil pelo clima do Hora Zero ocorreu em 21 de junho do ano passado, em Washington e foi precedida, dois dias antes, por um dia de pressão sobre os deputados norte-americanos, além de outros eventos nos Estados Unidos. Centenas de jovens aderiram, apesar da chuva, o que atraiu considerável atenção da mídia e jogou os holofotes em como a chamada Geração Z é atingida de modo desproporcional pela crise climática. Mas o que quase ninguém poderia ter imaginado é que, nos bastidores, o Hora Zero havia colocado em movimento uma série de processos que iria levar a uma mobilização ainda maior, e em escala global.

Guayaquil, Equador, 27/9

No outro lado do Atlântico, a garota sueca Greta Thunberg, então com 15 anos, havia lido notícias sobre o Hora Zero e fora inspirada pela visão de seus líderes a respeito de um movimento claramente liderado por jovens. Ela começou a seguir organizadores como Margolin nas mídias sociais. Em pouco tempo, garotas e garotos de distintos continentes comunicavam-se sobre ativismo climático pela internet. Em 20 de agosto, Thunberg realizou sua primeira “greve climática”, faltando à escola pra exigir ação, nas escadarias do Parlamento sueco. No mês seguinte, ela lançou as “Sextas-feiras pelo Futuro” (“Fridays for Future”), convidando outros estudantes para somar-se a ela em seus protestos semanais.

“As ações de Greta Thunberg deflagraram o movimento”, diz Woodier. “Num mundo em que somos levados quase sempre a nos individualizar e atomizar, e a crer que somos pequenos e não podemos fazer diferença, ela foi uma enorme inspiração para muitas pessoas jovens”.

Bangalore, Índia, 27/9

No final de 2018, Greta passou a assistir encontros intergovernamentais sobre o clima na Europa – entre eles, um evento da ONU na Polônia. Ela não foi a primeira pessoa muito jovem a aparecer nas Nações Unidos e exortar governantes a agir, mas havia algo único em sua abordagem.

Greta era decisivamente mais focada que seus antecessores em denunciar a inação dos governantes. “Vocês só pensam em continuar com as mesmas ideias más que nos colocaram nesta crise. Vocês não são suficientemente maduros para dar às coisas seus nomes”, disse ela na Polônia. Para milhares de pessoas em todo o mundo que estavam saturadas de décadas de inércia governamental, seu tom marcou uma mudança indispensável.

Madrd, 27/9

Diversos fatores convergentes contribuíram para que o ativismo de Greta chegasse no momento perfeito. Ao longo da última década, movimento pelo clima foi aos poucos tornando-se mais capaz de organizar ações coordenadas entre os continentes, o que tornou possível a rápida difusão de novas táticas. Ao mesmo tempo, nos EUA, a Marcha por Nossas Vidas, contra a violência por armas de fogo, mostrou como poderia um movimento de massas formado por muito jovens. Finalmente, com a multiplicação de fenômenos climáticos extremos em quase todas as partes do mundo, mais pessoas estão despertando para a urgência da crise, o que as torna receptivas à mensagem de Greta. Como integrante articulada de uma geração que terá de suportar os custos da mudança climática mais do que as anteriores, ela tornou-se a porta-voz perfeita para aproveitar a oportunidade criada por estes eventos. Rapidamente suas falas aos governantes do mundo tornaram-se virais no YouTube.

Enquanto isso, o movimento das Sextas pelo Futuro crescia – especialmente na Europa, onde até então era mais influente. Em julho, a chanceler alemã Angela Merkel apontou a pressão dos jovens ativistas como uma das razões pelas quais seu governo planeja reduzir mais agressivamente as emissões de carbono. Em boa parte da Europa o movimento pela greve ajudou a colocar a mudança climática num patamar mais alto da agenda política dos governantes e dos eleitores. Um forte avanço dos Partidos Verdes nas eleições para o Parlamento Europeu, em maio, é possivelmente o sinal mais concreto até agora do impacto do movimento. Mas as greves rapidamente se espalharam além da Europa.


Milão, 27/9

No início de 2019, houve manifestações estudantis em países como os EUA, Brasil, Índia e Austrália. Nos meses seguintes, surgiram apelos para um novo avanço do movimento – agora, liderado por jovens, mas com participação de gente de todas as idades. A ideia era de uma greve mundial em que as pessoas deixassem a escola, o trabalho ou outras atividades diárias para somar-se aos protestos por ação climática.

A data escolhida para iniciar a greve global coincidia com a convocação de uma cúpula climática de emergência, feita pelo secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, e que começaria em Nova York em 23/9. Muitos veem este encontro – concebido como uma oportunidade para que os países reforcem seus objetivos sob o Acordo de Paris pelo clima – como sendo reação direta às pressões de base que os governos estão sentindo.

Wellington, Nova Zelandia, 27/9

“Este encontro de ação climática foi convocado em resposta ao agravamento da crise e à pressão do movimento da greve, diz Woodier. “É o contrário do passado, quando os organizadores da sociedade civil organizavam manifestações em resposta aos encontros oficiais marcados muito tempo antes”.

Greta foi convidada a falar no encontro da ONU, e uma cúpula especial da juventude reuniu jovens de todo o mundo, entre eles Margolin. Em 28/8, Greta chegou a Nova York depois de cruzar o Atlântico em um barco que não emite carbono. Mal havia posto os pés em solo norte-americano, já se somava a um protesto climático liderado por jovens, do lado de fora da sede da ONU. Enquanto isso, a Greve Climática Global era apoiada por centenas ou milhares de organizações no mundo.

Lisboa, 27/9

Embora as maiores manifestações tenham ocorrido em grandes cidades, a greve também provocou ondas em localidades menores, menos nos países produtores de combustíveis fósseis. Segundo o grupo internacional sobre o clima 350.org, houve milhares de ações em 117 países do mundo.

O 350.org tem vasta experiência com este tipo de mobilização climática internacional. A organização começou com a primeira jornada de ação em larga escala especificamente voltada conta a mudança climática, em outubro de 2009. Ocorreu nos preparativos para as negociações climáticas da ONU, realizadas naquele ano em Copenhague. Visava pressionar os delegados a adotar um tratado climático internacional forte e de cumprimento obrigatório. A ideia de que tal objetivo poderia ser alcançado naquele momento pode soar ingênua em perspectiva, mas naquele momento não parecia irrealizável. Os EUA havia elegido fazia pouco Barack Obama para a presidência, e mesmo muitos ativistas climáticos não compreendiam quão profundamente o dinheiro dos combustíveis fósseis está incrustado nos salões de governo.


Barcelona, 27/9

O Dia de Ação Global de 2009 foi em grande medida um evento festivo, celebratório. Grupos de pessoas posaram para fotos com cartazes diante de glaciares alpinos em derretimento e outras paisagens afetadas pela mudança climáticas. Havia muitas obras artísticas e relativamente poucas marchas realmente grandes. Fazia sentido para um movimento global que acabava de se colocar em pé – num momento em que de fato parecia que os governantes do mundo poderiam ser gentilmente empurrados a fazer a coisa certa. Mas com a medidas internacionais contra a mudança climática praticamente bloqueadas, atividade legislativa quase nula na maior parte dos países e o ascenso de políticos de extrema direita como Donald Trump, o ânimo do movimento pelo clima mudou dramaticamente.

“As pessoas que acompanham a Ciência sabem que estamos agora na fase de fuga da catástrofe climática”, diz Nadine Bloch, organizadora do #ShutDownDC, que organizou ações em Washington. “A urgência de estar em chamas foi finalmente compreendida por gente de fora das comunidades de ativistas”. A Greve Climática Global ocorreu apenas dez anos depois da mobilização de 2009 e teve manifestações muito maiores e mais importantes. Sua mensagem – a de que a mudança climática tem precedência, diante da escola e do trabalho – reflete esta urgência ampliada.

Palestina, 27/9

Porém, embora a palavra “Greve” conote um tipo de ação mais militante do que sessões fotográficas, nem todo mundo compartilha a mesma visão sobre o que ela significa. “Nos EUA, muita gente nem sabe o que é uma greve”, diz Nadine. “Ainda se fala em obter permissões para protestos, o que não é uma greve de fato”. O #ShutDownDC quer algo mais disruptivo, ainda que não violento. “Devemos interromper os negócios na sede do poder governamental cujos integrantes recusam-se a reconhecer a crise climática ou a assumir responsabilidade”.

Os ativistas também pensam em como levar o impulso da greve a outros movimentos de jovens. “A frustração diante da inação dos governos levou as pessoas a se envolver nas greves climáticas”, diz Gracie Brett, do Divest Ed, que promove campanhas de desinvestimento em combustíveis fósseis em mais de 70 universidades norte-americanas. “A mesma urgência permitiu que o movimento tivesse um novo impulso, há pouco. Oferecemos uma oportunidade de agir além dos dias de greve”.

Helsinki, 27/9
Jamie Margolin também vê a greve como maneira de atrair um número maior de pessoas jovens para o movimento pelo clima. “Muita gente não parece, no início, interessada pelas tarefas de organização, que tomam a maior parte do tempo de ativismo”, diz ela. “Mas se você propõe a estas pessoas: ‘Ei, quer aderir a esta ação?’ – a fala atrai quase todo mundo. Ações como a greve são uma porta de entrada para o movimento mais amplo”.

Jamie, que originalmente ajudou a inspirar o ativismo de Greta Thunberg, agora segue seu chamado, deixando regularmente de comparecer à escola. Ela tem parentes na Colômbia e é motivada pela consciência de como a mudança climática pode afetar tanto sua casa atual quanto o lugar de origem de sua família. Nesse sentido, ela tem muito em comum com outras pessoas jovens, num movimento climático cada vez mais diverso e internacional – em que jovens adultos e adolescentes usam a internet para coordenar ações através de continentes e oceanos.


Montreal, 27/9. Greta é mais uma, em meio à marcha.

“Duas coisas me motivam: aquilo que desejo e aquilo que rejeito”, diz Jamie. “Estou lutando para proteger o belo Noroeste do Oceano Pacífico onde vivo agora e a pujança da Floresta Amazônica, de onde vem minha família. Mas também estou lutando contra o punhado de executivos, num punhado de corporações que estão literalmente destruindo a vida na Terra, contra sete bilhões de pessoas”.



segunda-feira, 16 de setembro de 2019

País sem ciência e sem futuro



Cortes em bolsas de pesquisa alastram-se e já afetam setores estratégicos, como a saúde. Propostas de remanejamento, como unir Capes ao CNPq, são ineficazes e podem enfraquecer ainda mais produção científica a longo prazo







Por Beatriz Jucá, no El País


Há dois anos, o pesquisador Lucas Pinheiro Dias estuda alternativas para o tratamento de infecções causadas por bactérias já resistentes aos antibióticos existentes no mercado. A pesquisa que ele desenvolve no pós-doutorado em Bioquímica que cursa na Universidade Federal do Ceará (UFC) têm relevância global: um levantamento da ONU estima que, até 2050, 10 milhões de pessoas no mundo poderão morrer anualmente por conta de doenças resistentes a medicamentos, e a Organização Mundial da Saúde considera este problema uma das dez maiores ameaças à saúde pública mundial.

Com dedicação exclusiva ao estudo e recebendo uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) de 4.100 reais nos últimos dois anos, Lucas Pinheiro conta ter avançado bastante nos experimentos. Conseguiu desenvolver seis peptídios — material criado com parte de moléculas naturais e proteínas de plantas — que têm dado boas respostas para combater dois tipos de bactérias. Mas esta é uma pesquisa longa e que exige muito trabalho e testes até que os cientistas consigam efetivamente desenvolver uma nova droga para a população. O problema é que o estudo está ameaçado em meio à crise da ciência brasileira, provocada pelos cortes orçamentários na Educação pelo Governo e que há meses vêm afetando o financiamento dos pesquisadores.

Na última segunda-feira, a Capes anunciou o corte de 5.200 bolsas, que deixariam de ser renovadas (ou seja, redistribuídas para novos alunos) para conseguir manter as que estavam ativas. No total, a agência já cortou 11.800 bolsas neste ano. Já o CNPq afirmou nesta semana que não teria como garantir o pagamento de seus 84.000 bolsistas a partir do mês de setembro por falta de verbas. Na tarde da última terça-feira, o ministro Marcos Pontes prometeu um remanejamento interno no orçamento do órgão para conseguir pagar os 82 milhões de reais necessários para parar as bolsas de pesquisa previstas para setembro. Mas ainda não há qualquer garantia de continuidade dessas bolsas até o fim do ano. A proposta orçamentária para o ano que vem também não é animadora: o Governo prevê um aumento de 22% em relação ao orçamento deste ano ao CNPq. No entanto, o valor para 2020, de 962 milhões de reais, não cobre os 1 bilhão de reais da folha de pagamento das bolsas da agência. Por enquanto, entidades ligadas à produção científica brasileira tentam chamar a atenção do Congresso para os prejuízos à pesquisa brasileira, caso a previsão orçamentária não seja corrigida pelos parlamentares.

Por conta do contingenciamento de recursos, Lucas Pinheiro — que é o responsável pela maior parte do trabalho no laboratório — não teve a bolsa renovada no último mês, como acontecia a cada semestre. “Se fosse só pelo dinheiro, a pesquisa teria parado total porque, embora o projeto tenha outro bolsista que está regular, todas as análises são feitas por mim”, explica o pesquisador, que continua trabalhando, se mantendo no último mês graças às economias que começou a fazer quando começaram os rumores do corte. Esses recursos pessoais, porém, não devem durar muito, e ele estuda formas de conseguir continuar seu estudo. “Mesmo com o cenário desanimador e sem receber, continuo frequentando o laboratório e desenvolvendo algumas atividades. Vou completar um mês sem bolsa pra não perder a minha pesquisa”, conta.

Se por um lado os cortes preocupam pela paralisação de pesquisas importantes no curto prazo, pesquisadores temem que a crise desemboque em uma conjuntura ainda mais grave: o desmonte da produção científica brasileira. A Capes e o CNPq são as duas principais agências de fomento à pesquisa no Brasil. A primeira, vinculada ao Ministério da Educação, é focada no apoio às pós-graduações das Instituições de Ensino Superior. Já o CNPq, agência ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, atua prioritariamente no apoio aos pesquisadores individualmente em todos os níveis, incluindo estudantes de ensino médio e de graduação. Ambas vêm sofrendo com os cortes de verbas.

A pesquisadora Anna Venturini terminou recentemente o doutorado em Ciências Políticas, no qual estudou a criação de ações afirmativas pelos programas de pós-graduação de universidades públicas em todo o Brasil. Para isso, analisou os editais de 2.763 programas de pós-graduação em publicados até janeiro de 2018, inclusive alguns programas específicos para garantir não só o acesso, mas a permanência de minorias nas universidades. Com base nesta pesquisa, ela analisa que o corte das bolsas fará com que apenas pessoas com mais recursos financeiros devem conseguir fazer um mestrado ou doutorado sem bolsa, já que as instituições de ensino exigem dedicação exclusiva.

“Enquanto o mercado não valorizar a pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), será difícil falar em conciliação. E entre um emprego remunerado e um não remunerado, as pessoas farão escolhas a depender de suas capacidades financeiras”, argumenta. Para ela, outra alternativa para viabilizar a permanência dos pesquisadores na universidade é acabar com a dedicação exclusiva. “Mas isso afetaria fortemente a qualidade das pesquisas”, emenda.

Anna Venturini lamenta os cortes das bolsas em uma conjuntura cujos valores já estavam defasados. Um mestrando ganha, em média, 1.500 reais mensais, por exemplo. “Lamento esses cortes em um momento em que os programas estavam se estruturando para tornar a pós-graduação mais inclusiva e representativa da sociedade em termos sociais e raciais, como constatei na minha pesquisa”, finaliza.

O presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Ildeu de Castro Moreira, diz que é difícil contabilizar o impacto dos cortes, mas pondera que sem garantir a presença de bolsistas de iniciação científica, mestrandos e doutorandos nos laboratórios, é difícil conseguir avançar nas pesquisas desenvolvidas nas mais diversas áreas — de saúde e meio ambiente.  “Esses cortes afetam imediatamente uma série de pesquisas, mas o fundamental é que desmonta um sistema de ciência e tecnologia que vinha crescendo nas últimas décadas”, completa ele. Moreira se preocupa com o impacto global da paralisia da pesquisa brasileira.

A comunidade científica também vem se manifestando contra uma ideia que ronda os bastidores do Governo no sentido de fundir a Capes e o CNPq, duas instituições que atuam de forma complementar, para fomentar a pesquisa. “Esta é uma péssima ideia. São duas agências que existem desde os anos 1950 e que atuam de forma complementar, mas têm praticas diferentes”, explica Ildeu de Castro. Além das diferentes funções exercidas por cada agência, o temor é de que a fusão enfraqueça ainda mais a governança, a importância e o orçamento delas. Para Ildeu de Castro, os cortes sucessivos que vêm ocorrendo já ameaçam a imagem da ciência brasileira no exterior. Ele teme que, caso os cortes não sejam revertidos, haja uma saída mais rápida de pesquisadores das universidades brasileiras, o que enfraquece o desenvolvimento do país.


domingo, 8 de setembro de 2019

Quando os cientistas enfrentam o sistema



Oposição à guerra, à vigilância, às drogas psiquiátricas, aos agrotóxicos. Defesa de uma Ciência para o Povo. Movimento dos anos 1970 poderia inspirar pesquisadores hoje, quando tecnologia parece transformar-se em pesadelo





Por Jane Shallice | Tradução: Gabriela Leite


As consequências sociais da direção para a qual a ciência move-se hoje são claras. Novas tecnologias usadas para fortalecer a vigilância de Estado. A interminável pesquisa e produção de armas. A necessidade de acabar com a energia baseada no carbono. A natureza corporativa da ciência e das universidades. O direito à propriedade intelectual e a captura do conhecimento como propriedade privada para retornos privados. Modificações genéticas, inteligência artificial, algoritmos, a dominância da indústria farmacêutica e seu impacto na assistência médica. A poluição do meio ambiente e sua degradação. Acima de tudo, o papel da atividade humana nas mudanças climáticas.

Embora muitas campanhas tentem abordar algumas dessas questões, não há nenhuma organização que desafie o papel geral da ciência e da tecnologia na sociedade, hoje. Cinquenta anos atrás, quando alguns desses problemas estavam começando a surgir no debate público, mais de mil pessoas, incluindo alguns dos cientistas mais proeminentes, como um ganhador do prêmio Nobel, criaram a Sociedade Britânica para Responsabilidade Social na Ciência (BSSRS, na sigla em inglês), que transformou questões anteriormente tratadas como neutras e técnicas em pontos focais de controvérsia política e contestação.

É difícil de imaginar, hoje, dada a grande sensibilidade dos governos, mas ao longo dos anos 1960, as notícias diretas sobre a guerra do Vietnã eram constantes. Jornalistas foram incorporados às tropas dos EUA, e escreviam relatórios, que eram transmitidos diariamente (ainda hoje a fotografia da garota nua, correndo de um ataque de napalm nos lembra o Vietnã). Todas as noites, em toda sala de estar, as pessoas assistiam e ouviam os sons dos helicópteros enviando tropas ou munições, ou soltando nuvens químicas de desfolhantes como o Agente Laranja. Nessa guerra televisionada, o fato de todos puderem assistir seus horrores e ter notícia do número de vítimas garantiu uma crescente oposição.

Foi em 1966-67 que Jonathan Rosenhead, um jovem matemático britânico, passou um ano na Universidade de Pensilvânia e conheceu cientistas que se opunham à guerra do Vietnã. Estavam focados em pesquisas químicas que usadas para desenvolver aparatos de guerra químicos e biológicos. Em seu retorno à Inglaterra, Jonathan estava determinado a encontrar maneiras de tornar público o claro mau uso da ciência. Em 1968, em meio à fermentação das revoltas estudantis, a Sociedade de Química da Universidade de Essex havia convidado um palestrante de Porton Down, que era e ainda é o estabelecimento de guerra química do governo inglês. Como resposta, os estudantes que estavam em uma ocupação organizaram uma aula pública de Steven Rose, um neurobiólogo, e Rosenhead. Essa reunião bem sucedida foi um dos principais impulsionadores para que pudessem organizar um grupo de cientistas de ideias semelhantes. Aí a Sociedade Britânica para a Responsabilidade Social da Ciência (BSSRSO começou a ser gestada.

Um ano depois, em 1969, a BSSRS foi lançada na Royal Society, talvez a sociedade científica mais antiga no mundo, num encontro com mais de 300 participantes. Maurice Wilkins, prêmio Nobel de Medicina, foi nomeado presidente, apoiado por outros célebres cientistas como Hans Krebs, Bertrand Russel e Ernst Braun. Deles, Wilkins e Tom Kibble, um físico teórico que foi um dos descobridores do bóson de Higgs, mantiveram por um longo período seu envolvimento e compromisso com o BSSRS. Um comitê nacional elegeu Steven Rose como presidente, Peter Smith como tesoureiro, e Bob Smith como secretário. Diversos grupos de trabalho foram estabelecidos. Eles organizavam reuniões de comitê mensais, um encontro anual e publicavam a revista Science for People (algo como “Ciência para as Pessoas”).

O objetivo era encontrar maneiras para organizar cientistas para fazê-los reconhecer sua responsabilidade coletiva e pessoal pela ciência na qual estavam trabalhando. Queriam que as consequências do trabalho dos cientistas fossem expostas e amplamente debatidas, de maneira a criar um público informado e ativo.

No primeiro período, houve uma série de ações que refletiam o espírito da época. No início de 1971, alguns membros participaram de uma conferência de matemática/física patrocinada pela OTAN no Bedford College. Até a sessão final, um terço desses participantes havia assinado uma declaração em repúdio ao financiamento militar da ciência através de organizações como a OTAN. No ano seguinte, Felix Pirani, um físico do Kings College com um histórico radical (“Ele gostaria de ver universidades onde os estudantes recebessem seus diplomas ao entrar, e não precisassem se preocupar com os exames”) organizou sua intervenção na reunião anual do British Association for the Advancement of Science (“Associação Britânica para o Avanço da Ciência”, em tradução livre) em Newcastle, que era frequentada pelo establishment da ciência. No momento em que o presidente Lord Todd discursava, foi cercado por uma manifestação de oposição na forma de teatro de rua, o que claramente o irritou. A publicidade desse evento aumentou a adesão para 1000 membros. No auge, foram 1500.

Estabelecendo o BSSRS

Em um momento, no final dos anos 1960, quando o pensamento crítico foi desencadeado através da educação superior em boa parte da Europa e Estados Unidos, desafiando ideologias e práticas educacionais, a BSSRS aliou-se com as demandas por democracia mais ampla em instituições educacionais e espaços de trabalho, especialmente aquelas que demandavam representação estudantil. Questionou as hierarquias em instituições médicas e outras instituições de treinamento. Exigiu a responsabilização social em indústrias e instituições de pesquisa, expôs e foi contra o uso de universidades para pesquisa militar. Um exemplo disso foi o departamento de Michigan, nos EUA,  que foi usando para planejar padrões de bombardeio no Vietnã.

A BSSRS apoiou a abolição de armas nucleares. Opôs-se ao desenvolvimento e uso de armas químicas e biológicas, minas terrestres e bombas de fragmentação. Preocupava-se com o uso excessivo de pesticidas e o impacto  da “Revolução Verde”. Nesse momento, durante a luta política e militar na Irlanda do Norte, a BSSRS priorizou a oposição ao uso de gás lacrimogêneo, ao uso de balas de borracha e de plástico (especialmente desenvolvidas para esse conflito) e questionou as técnicas usadas pelos militares após internamento. Levantou questões sobre as técnicas de vigilância, encerrou circuitos de câmeras de televisão e o uso de drogas psiquiátricas.

Os membros do BSSRS desenvolveram uma posição radical em relação à política de energia, opondo-se particularmente às tecnologias nucleares. Escreviam papers analisando as relações sociais da produção de conhecimento, tecnologias e manufaturas, como por exemplo a gestão científica (taylorismo e fordismo). A Sociedade estabeleceu a base para campanhas de longo prazo em torno dos riscos no trabalho.

Uma figura estudo sobre os riscos no trabalho foi Charlie Clutterbrook, um zoólogo que estudou o impacto de herbicidas em animais rasteiros. O BSSRS estava procurando um “homem para a poluição” quando, em 1974, Jonathan Hosenhead encontrou um desenvolvedor imobiliário rico com o desejo de financiar, por um curto período, uma pessoa para “fazer alguma coisa pelo meio ambiente”. Esse benfeitor era David Hart, que vivia em Nothing Hill, em Londres, e era rico o suficiente para ter um helicóptero e uma propriedade em Devon (sul da Inglaterra). Ele ficaria notório, mais tarde, por apoiar Margareth Thatcher e, especialmente, por financiar o sindicato separatista dos mineiros. Charlie foi designado para ajudar os esforços da comunidade para responder a preocupações locais, e trabalhou próximo a Alan Dalton, uma fonte de grande experiência e apoio para aqueles envolvidos em todas as campanhas contra o uso do amianto. Essas campanhas foram levadas adiante por trabalhadores que acreditavam que apesar de todo o dinheiro despejado pela indústria do amianto para limpar a imagem seu produto, tratava-se de um material de construção que poderia levar à morte. Uma campanha posterior, de grande porte, tinha como alvo a poluição causada pelas operações da British Petroleum na baía de Baglan, no Port Talbot, na qual relatou-se produção de PVC, material que mais tarde descobriu-se ser cancerígeno. Um filme da World in Action foi feito sobre o assunto. Muito desse trabalho foi desenvolvido em colaboração com sindicalistas e ativistas locais. Seu legado encontra-se, hoje, nos avanços críticos em torno da saúde e segurança.

Questões de saúde e segurança tornaram-se um ímpeto importante para a criação, pelos trabalhadores da Lucas Aerospace, de um plano para “produção socialmente útil”. Apesar de que saúde e segurança sejam preocupações tanto para os produtos militares que eles desenvolviam quanto para as condições nas quais trabalhavam, aprenderam que a tecnologia não é neutra. Como engenheiros e designers muito qualificados, rapidamente identificaram o valor de modelar o desenvolvimento de novas tecnologias incluindo a nova informação tecnológica que era potencialmente ameaçadora a seus trabalhos. Optaram por proteger seus empregos não defendendo seus projetos com mísseis, mas organizando através da empresa os “comitês combinados” de delegados sindicais, nos quais faziam a campanha de oferecer suas habilidades para propostas úteis à sociedade. No processo, trabalharam em causas comuns com muitos membros da BSSRS, e com Dave Elliott, do departamento de tecnologia da Open University. A Lucas Workers Alternative tornou-se um farol para a ideia de que a direção da tecnologia pode ser alterada. Havia alternativas voltadas à sociedade.

Um grupo sobre agricultura da BSSRS foi estabelecido 1975-76, com foco em produção alimentar, tornando-se um marco importante para jovens cientistas preocupados com a indústria moderna de alimentos. No ano seguinte, Tim Lang conheceu Clutterbuck e se juntou à BSSRS. Em um artigo sobre a campanha de alimentos nos anos 1980 e 90 (que foi a público em 1997), explicou a importância do BSSRS, por unir “uma ampla variedade de disciplinas para discutir uma perspectiva que não era nem a corporativista nem a orientada de cima para baixo, nem para o livre mercado, mas para a saúde pública, o trabalhador, o povo”. Mais tarde, Tim Lang liderou a Comissão de Londres para a Comida, que foi estabelecida na gestão de Ken Livingstone do Conselho da Grande Londres. A importância do trabalho da BSSRS nessa área foi arrebatadora, por ter diretamente apoiado e alimentado as campanhas em resposta às patentes e dominação corporativas.

Como foco central, a BSSRS destinava-se a apoiar trabalhadores da ciência, sindicalistas e ativistas. Seus vários grupos de trabalho produziram uma infinidade de panfletos e papers. Em 1975, um grupo de Mulheres na Ciência foi criado com Dot Griffiths, Anne Cook, Leslie Walker, Esther Saraga, Suzie Orbach, Hilary Rose e outras, autônomas à BSSRS mas produzindo para a publicação Science for People. Outros grupos trabalharam intensamente com o uso da ciência para a sociedade, a ciência e a arte, os fatores sociais na saúde e nas doenças, a eliminação de resíduos nucleares e a sociobiologia.

Em resposta ao estudo Os Limites do Crescimento, de 1972, a BSSRS argumentou que este não dizia nada sobre a distribuição desigual do consumo, nem a relação essencial entre a acumulação de capital, a competição e o crescimento. Também fez um comentário crítico às propostas de Rothschild para financiamento de pesquisa universitária, em 1971, que defendiam uma relação cliente-consumidor entre a ciência e o Estado.

Em uma campanha importante e bem sucedida com sindicalistas, membros da BSSRS ajudaram a desenvolver um ensino de ciências antirracista, trabalhando com professores membros do sindicato que se opunham ao uso de testes de QI nas escolas. Parte de seu trabalho foi também apoiar movimentos negros e Bernard Coard, cujo panfleto “Como o sistema escolar torna as crianças negras educacionalmente secundárias” foi um argumento crucial contra o uso do QI para determinar a alocação de escolas especiais.

Ao longo desse período, com o governo britânico engajado na supressão de ações republicanas na Irlanda do Norte, a BSSRS produziu um panfleto, a “Nova tecnologia da repressão”, e, a esse respeito, Carol Ackroyd, Karen Margolis, Jonathan Rosenhead e Tim Shallice publicaram, em 1977, a “Tecnologia de controle político”, uma análise inovadora sobre a vigilância de Estado e os métodos de controle que estavam sendo usados nas operações do exército contra a população civil. Tim Shallice argumenta que, em 1984, George Orwell estabeleceu na consciência popular a ideia de que o Estado poderia investigar e controlar a população. A contribuição particular da BSSRS foi analisar as formas que a tecnologia estava sendo desenvolvida. Hoje, um membro da Royal Society e instituições como o departamento de Estudos de Paz de Bradford consideram que o trabalho foi o pioneiro no campo.

A pesquisa científica do pós-guerra foi financiada por meio de corpos de financiamento público (com, é claro, algum dinheiro de pesquisa industrial) e havia um nível de autonomia dentro das universidades, o que significou espaço e recursos para que mentes acadêmicas críticas determinassem o propósito e a direção de seu trabalho, sem a pressão de interesses privados ou definições estreitas sobre o que poderia ser desenvolvido. Para muitas pessoas trabalhando no mundo acadêmico, havia um ethos de serviço público básico, com a vontade de trabalhar em conjunto e aproveitar as contribuições de uma camada de intelectuais independentes e pesquisadores ativistas de movimentos sociais. Também nesse período, havia autoridades locais, especialmente com a eleição de um Conselho da Grande Londres de esquerda, que encomendavam e apoiavam algumas das iniciativas.

No entanto, com a eleição de Margareth Thatcher e a vitória do neoliberalismo, houve uma grande mudança em favor da privatização, terceirização, mercantilização e liberalização, e a ênfase mudou para o parques científicos e empresas em todos os aspectos de pesquisa básica. As corporações, especialmente empresas de medicamentos e biotecnologia, determinariam cada vez mais as prioridades de pesquisa.

Declínio e queda

Ao longo dos anos 1970, surgiram distinções nítidas entre aqueles que queriam que a BSSRS fosse uma agência para a introdução e informação de autoridade sobre questões científicas para um público mais amplo; e aqueles que queriam ficar claramente aliados com movimentos revolucionários e da classe trabalhadora. Para preencher essa lacuna, ficou acordado que a BSSRS deveria priorizar a provisão de expertise científico e conselhos àqueles com menos acesso a tais informações. Faria comentários sobre questões políticas, mantendo as discussões ideológicas internas, e continuaria tentando recrutar cientistas.

Como em todas as organizações, havia diferenças políticas, pessoas que deixavam e formavam novos grupos, como Robert Young fez, criando a Revista de Ciência Radical. No final dos anos 1980, houve um grande rompimento entre membros e ex-membros do BSSRS, e demonstrou-se muito difícil manter a energia e o projeto que o iniciou. Muitos de seus membros iniciais tornaram-se famosos em seus campos, e achavam impossível contribuir com seu tempo para a sociedade. Embora continuassem apoiando o projeto, muitos sentiram que haviam gastado muito tempo escrevendo panfletos que ninguém leria. A sociedade foi encerrada no início dos anos 1990, após uma votação na última reunião anual.

A importância da BSSRS ainda permanece. Muitas das questões nas quais se focou são de importância central hoje, e seu legado é encontrado em campanhas individuais tais como a Perigos no trabalho, campanhas em torno dos mísseis Trident, armas nucleares e drones, ou em torno de questões de alimentação. Ainda hoje, não há nenhuma organização com o foco no papel geral dos cientistas e sua relação com a sociedade e questões sociais. Com o ímpeto e velocidade da mudança tecnológica enquadrando muitos de nossos pensamentos e respostas, há demandas por responsabilização pública diante do aumento do controle centralizado e dos mecanismos particulares de controle estatal — levantados consideravelmente pela Guerra ao Terror e “interesses de segurança”.

E por que é que tantas pessoas que lutam por esses temas não são cientistas? Onde estão os cientistas politicamente críticos? O exemplo de Wilkins e outros deveria iluminar o caminho para intelectuais de todo tipo examinarem criticamente seu papel.


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