sábado, 30 de novembro de 2019

Educação Pública sob artilharia pesada


Com PEC do Pacto Federativo, governo promete verbas e autonomia a estados e municípios, mas só aprofunda retrocessos: desmantela o orçamento para políticas educacionais e extingue programas de combate a desigualdades no ensino


                                                                                      Foto: Igor Matias/ NINJA



Por Cleo Manhas, publicado originalmente no Inesc

Está ocorrendo o desmonte das políticas públicas garantidoras de direitos, em um ataque neoliberal ao Estado, como se pode constatar desde a aprovação da Emenda Constitucional do teto dos gastos e, mais recentemente, com a Proposta de Emenda Constitucional nomeada de PEC do Pacto Federativo.  Além de cotidianas manifestações públicas de gestores governamentais contra os direitos humanos, a ciência e o pensamento crítico.

Com relação à política de educação é notória a intensidade do ataque: propostas como “escola sem partido”, em reação ao que chamam de “ideologia de gênero” e imposição de militarização de escolas são alguns dos exemplos mais famosos. No âmbito orçamentário, vieram ataques por meio dos contingenciamentos e retirada de recursos, como propõe o projeto Future-se, apresentado às universidades como panaceia, mas que é uma forma de permitir que organizações sociais passem a gerir universidades públicas, com recursos vindos do mercado. Outra evidência do desmonte na educação é a proposta de junção das agências de fomento Capes e CNPQ, que ficariam sob a responsabilidade direta da Presidência da República e não mais do MEC ou Ministério da Ciência e Tecnologia, criando uma enorme anomalia para o sistema.

O ataque mais recente veio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188/2019, chamada de PEC do pacto federativo, que, entre outras coisas, propõe a unificação dos orçamentos da saúde e da educação. Hoje, os estados destinam para a saúde pelo menos 12% da receita corrente líquida (soma de receitas tributárias, contribuições patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços, transferências correntes, entre outras — menos o que fica para estados e municípios por determinação constitucional), e 25% para educação. No caso dos municípios, os percentuais são 15% e 25%, respectivamente. A PEC agrega os percentuais (40%) de forma que um prefeito poderá, por exemplo, aplicar 20% em saúde e os outros 20% em educação. A proposta provocará uma disputa de recursos entre as áreas, enfraquecendo-as.

Antes de analisar as consequências disso, vamos relembrar como chegamos ao atual quadro de políticas públicas na área da educação:

Linha do tempo da educação

Com a Constituição de 1988 a educação passou a ser um direito de todas as pessoas e dever do Estado, que foi obrigado a oferecer vagas desde a educação infantil, até o ensino médio, ou educação básica. Direito incorporado de forma progressiva, em 1988, no texto constitucional, ampliado com a Lei de Diretrizes de Bases da Educação em 1996 e, mais tarde, com a Emenda Constitucional 59 de 2009.

Para se ter a medida da importância do texto constitucional, que está sofrendo o maior ataque desde a sua aprovação, siga o fio abaixo sobre o direito à educação ao longo da história do Brasil.

1) Até 1930 o ensino que ia além da alfabetização era para poucos. A maior parte da população recebia aprendizagens apenas para o trabalho nas fábricas e no campo.

2) A partir de 1930, o que era responsabilidade apenas dos estados, passa a ter uma centralidade maior no governo federal, que criou o Ministério da Educação e Saúde Pública, com verbas específicas para essas áreas. Apesar do avanço, o ensino público e gratuito não atinge as massas trabalhadoras, que fica bem distante do que é oferecido às elites.

3) Na década de 1950, quase metade da população acima de 15 anos se declarava analfabeta e apenas 15% dos matriculados concluíam a 1ª série.

3) Durante a ditadura militar a educação foi voltada para a profissionalização e o produtivismo, sendo a escola um aparelho de cerceamento do pensamento e reforço das concepções dos militares no poder. O ensino de filosofia foi proibido e em seu lugar nasce a “moral e cívica”. Do mesmo modo, geografia e história foram substituídas por “estudos sociais”. A obrigatoriedade de repasse de verbas do âmbito federal para estados não é perene e os recursos vão escasseando, indo de 7,6% em 1970 para 5% em 1978.

4) A Constituição de 1988 (CF/88) trouxe a educação como direito social, não mais como assistencialismo do Estado. E, por pressão popular, especialmente dos movimentos feministas, a etapa da educação infantil (creche e pré-escola) foi reconhecida.

5) A CF/88, em suas disposições transitórias, obrigava que o Estado universalizasse o ensino e erradicasse o analfabetismo em 10 anos.

6) A partir daí vieram as leis infraconstitucionais que mudaram a realidade da educação brasileira: o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996.

7) Na década de 1980, a taxa de analfabetismo (de acordo com o IBGE) era de 25,9%, hoje é de 6,8%.

Como se pode constatar, a partir da vigência da CF/1988, em termos educacionais, o país caminhou bastante, mesmo que com várias lacunas de qualidade ou de acesso com relação a raça e região, especialmente campo/cidade. Foi a partir daquele momento que se reconheceu até mesmo  as diferenças, como a importância da educação indígena, por exemplo, garantindo uma maior reflexão sobre a oferta de educação multifacetada.

Contudo, esse caminho nunca havia sofrido risco tão grande como agora, em seu conjunto, seja com relação aos modelos educacionais propostos, como aos recursos orçamentários destinados à política.

PEC do Pacto Federativo e disputa de orçamentos entre educação e saúde

A PEC do Pacto Federativo, além de propor a junção dos orçamentos, o que promoverá uma disputa entre áreas essenciais para a população, como são a saúde e a educação, abre flanco para a desvinculação dos recursos, ao flexibilizar a sua utilização.

Vejamos o exemplo do Salário-Educação

Hoje recolhido pela União e repassado para estados e municípios, de acordo com a proposta, o Salário-educação poderá ser integralmente repassado, não ficando nada na União, ou melhor, para o Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino (FNDE). O Fundo é essencial para amenizar as desigualdades regionais, por meio de programas que são, em parte, financiados com recursos do salário-educação.

A saber, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), até 2018 distribuído para todos os municípios; o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), garantindo alimentação escolar balanceada e de boa qualidade; o Programa Nacional de Transporte Escolar (Pnate), que entra como complementar para os municípios que o acessam, com padrões mínimos de segurança e conforto para crianças e adolescentes; e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que visa ajudar escolas a resolver problemas estruturais, ou mesmo construírem quadras ou bibliotecas com esse recurso, sem burocracias, além de serem fiscalizados pelos conselhos escolares, garantindo participação na forma de utilização.

Até o final da primeira quinzena de novembro de 2019, o que havia sido executado, incluindo os restos a pagar, era um montante de R$ 6,07 bilhões, conforme mostra a tabela 1, que traz o orçamento desses programas administrados pelo FNDE, de maneira centralizada, garantindo tratamento equitativo entre os diferentes entes federados.


A promessa do Ministério da Economia com o pacto federativo é a de que estados e municípios teriam cerca de R$ 9 bilhões a mais em seus orçamentos. No entanto, quando se olha para a arrecadação dessa contribuição, os números não batem, conforme mostra a tabela 2, pois o que ficou na União foi um total de R$ 6,9 bilhões. E o que se precisa é acabar com o teto dos gastos, não com o FNDE e suas importantes políticas para amenização das desigualdades regionais.


Uma das inovações da Constituição de 1988 foi prever que o orçamento público teria a função  de redução das desigualdades, princípio este que a PEC do Pacto Federativo quer extinguir. Com relação à educação básica, desde os primeiros meses desse governo os repasses complementares para políticas tais como ensino integral vêm minguando. E agora deixam clara a intenção de não mais contribuir financeiramente para garantir equidade. A proposta retira, ainda, a obrigatoriedade de o governo gerar vagas em escolas onde houver falta. O que diz a CF/88: que o governo é obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede de ensino quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública em uma localidade. No entanto, se a proposta vingar, essa obrigação será retirada, o que passa a ideia de que em caso de falta de vagas, os estudantes precisam resolver por conta própria. O governo alega que há possibilidade de acessar bolsas de estudo na rede privada. E talvez o que esteja por trás da medida seja o favorecimento da educação privada em detrimento da pública.

Outro agravante é que o relator da matéria, senador Márcio Bittar (MDB/AC) quer aprofundar ainda mais o desmonte orçamentário, pois diz que, por ser um “super liberal”, acrescentará ao orçamento da saúde e educação os gastos com aposentados e pensionistas, reduzindo significativamente os montantes destinados a estas políticas e aprofundando a crise que já está instalada.

Portanto, o que se avizinha é um retrocesso de mais de 30 anos nas políticas públicas garantidoras de direitos no país. A reforma da previdência e as alterações na CLT já foram aprovadas e, se confirmada a PEC do Pacto Federativo, será ladeira abaixo. É preciso muita mobilização para dificultar e impedir essa perda de direitos.

domingo, 24 de novembro de 2019

Brasil é o 4º país que mais prende mulheres: 62% delas são negras




Por Maria Carolina Trevisan

O sistema prisional brasileiro é um dos que mais prende mulheres no mundo. Somos a quarta maior população carcerária feminina do planeta. Mantemos privadas de liberdade cerca de 42.355 mulheres, de acordo com o novo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias sobre Mulheres, o Infopen Mulheres, divulgado (sem alarde) na quarta-feira (9), pelo Ministério da Justiça. Estamos atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia.



A situação é grave e não há indícios de melhora: o Brasil mantém uma taxa de aprisionamento feminino de 40,6, o que representa um aumento de 455% entre 2000 e 2016, como informa a Conectas, organização social de direitos humanos. No mesmo período, a Rússia diminuiu essa população carcerária em 2%.

“A expansão do encarceramento de mulheres no Brasil não encontra parâmetro de comparabilidade entre o grupo de cinco países que mais encarceram mulheres no mundo”, diz o relatório.

Não existem vagas para todas. Há um déficit de mais de 15.300 vagas para receber essas mulheres, além de os presídios não serem adequados às mulheres e suas demandas. Um ponto escandaloso é que quase a metade das mulheres presas não foi condenada, o que configura um enorme descaso e descompromisso da Justiça e do Estado com essa população.

LEI DE DROGAS PARA PRENDER MULHERES NEGRAS
                  

O Brasil teve a mais longa e numerosa escravidão do mundo. Foi o último país a botar fim a esse regime e instituiu há exatos 130 anos a Lei Áurea, que em tese acabou com a escravidão. Mas a nova lei não promoveu a inserção dos ex-escravos na sociedade brasileira, nem reparou os anos de serviços forçados a que essas mulheres e homens foram submetidos, ou tampouco garantiu direitos aos afrodescendentes. Bem ao contrário.

O país não chegou a criar leis segregacionistas, como as Jim Crow, nos Estados Unidos, ou como as legislações da Jamaica e de Porto Rico. O Brasil fingiu ser cordial, alimentando o seu racismo de maneira sorrateira. “Serviu como um argumento para que o Estado dissesse que no Brasil não tem racismo, que a questão da escravidão está resolvida, é passado”, explica o historiador e professor Rafael de Bivar Marquese, do departamento de História da USP, que estuda “Escravidão e História Atlântica”. 

Marquese explica que foi por meio de regras informais que essa segregação racial se estruturou na sociedade brasileira, gerando consequências até hoje. “Abriu-se um amplo espaço para arbitrariedades por parte dos agentes públicos. Discriminação religiosa, criminalização do negro, desigualdades raciais no mercado de trabalho, tudo o que nós estamos vendo hoje é algo que vem historicamente desde o início da escravidão.”

Dessa forma, o Estado criou outras regras para controlar a população negra sem, no entanto, explicitar o componente racial. Não é por acaso que a maioria das mulheres presas (62%) é negra ou que a taxa de aprisionamento de negras (62,5) é muito superior à de brancas (40,1). Há, obviamente, uma seletividade racial que determina, por meio da Justiça, que mulheres negras são mais suspeitas que mulheres brancas.


O mecanismo que opera esse aprisionamento em massa é a nova Lei de Drogas, instituída em 2006. Nela, falta regulamentar de maneira mais explícita o que define quem é traficante e quem é usuário. Essa margem faz com que o racismo opere livremente: cabe primeiro ao policial/delegado e depois ao juiz (geralmente homem e branco) definir se a mulher se enquadra como traficante ou como usuária.



Dados os estereótipos do “suspeito” a que o Brasil está acostumado e a julgar pelas desigualdades que essas mulheres enfrentam, sendo, portanto, muito mais vulneráveis, sabemos quem será privada de liberdade na escolha da Justiça.

“As prisões modernas têm o ‘privilégio’ de ser o lugar onde se materializam as estruturas hierárquicas impostas pela lógica racial da desumanização do corpo negro. A desumanização na prisão abre caminho para a criminalização pelo Estado penal”, afirma a advogada e pesquisadora Dina Alves, em sua análise Rés negras, juízes brancos.

UM SISTEMA INADEQUADO ÀS MULHERES

Mesmo com uma população carcerária feminina tão grande, o Brasil não tem estrutura para dar conta das demandas das mulheres: a maioria dos estabelecimentos penais que as abriga é masculina ou mista. Significa que não tem espaço adequado para gestantes, berçários, locais de aleitamento materno, atenção à saúde da mulher ou visitas. A separação por gênero dos estabelecimentos destinados ao cumprimento de penas privativas de liberdade está prevista na Lei de Execução Penal e foi incorporada à Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional.

O relatório revela que apenas 55 unidades em todo o país declararam apresentar cela ou dormitório para gestantes. Os estados do Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima e Tocantins não possuem nenhum espaço para gestantes. As unidades que declararam ser capazes de oferecer esse local somam uma capacidade total para receber até 467 bebês. Apenas 3% das unidades prisionais femininas ou mistas que declararam ter creches dizem ter condições de receber crianças acima de dois anos.

É o direito à maternidade que está sendo violado. Assim como o direito da criança de conviver com a mãe.

INCOMPATÍVEL COM A VIDA E COM A DIGNIDADE

A chance de uma mulher cometer suicídio no sistema prisional é 20 vezes maior se comparada à população brasileira. “Entre a população total foram registrados 2,3 suicídios para cada grupo de 100 mil mulheres em 2015, enquanto entre a população prisional foram registradas 48,2 mortes autoprovocadas para cada 100 mil mulheres”, diz o relatório.


Esse quadro permite afirmar que o sistema penitenciário brasileiro é um “estado de coisas inconstitucional”, como reconheceu o Supremo Tribunal Federal. O plenário afirmou que o sistema produz “violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas cruéis e desumanas.”

Por tudo isso, não adianta construir mais e mais presídios. É preciso adotar políticas de desencarceramento. É urgente acelerar o processo dos presos provisórios. É necessário rever a Lei de Drogas.


Fonte: https://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2018/05/16/brasil-e-o-4o-pais-que-mais-prende-mulheres-62-delas-sao-negras/


FONTE: Controvérsia

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

“O Judiciário foi usado como vingança e impediu que a democracia siga seu curso”


                                                                 
   Lilia Schwarcz: Antropóloga, autora do livro "Sobre o autoritarismo brasileiro"



Por JOANA OLIVEIRA – Antropóloga, autora do livro ‘Sobre o autoritarismo brasileiro’, diz que o vazamento das mensagens de The Intercept Brasil mostra o Judiciário atuando em causas próprias.

O brasileiro é, antes de tudo, um autoritário. Depois de séculos escondendo-se por trás da ideia de de povo aberto, diverso, tolerante, pacífico e acolhedor —o conceito de “homem cordial”, cunhado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em 1936, em Raízes do Brasil—, ele tirou a máscara da cordialidade e revelou-se abertamente intolerante. Essa é a tese do recém-lançado Sobre o Autoritarismo Brasileiro (Companhia das Letras), livro da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz. Em um exercício de ir ao passado para pensar o presente, a autora destrincha as feições do autoritarismo à brasileira, que nasce na escravidão e nas mazelas do racismo e passa pelo patrimonialismo, violência, corrupção e pela desigualdade de gênero, resultando na polarização atual.

Schwarcz observa o autoritarismo presente já no nascimento da República Brasileira. “Os dois primeiros presidentes da nossa história foram militares que governaram em estado de sítio”, explica em seu escritório. A autora defende que essa cultura autoritária ganhou novos tons desde as manifestações de 2013 e do impeachment de Dilma Rousseff, que desencadearam uma grande crise sociopolítica. “Esses fatos destamparam o caldeirão da democracia. Valores que muitos brasileiros já tinham, mas se sentiam vexados de disseminar, começaram a aparecer e foram totalmente avalizados pelo atual governo”, diz ela. Foi precisamente a busca de razões que explicassem a eleição de Jair Bolsonaro que levou Schwarcz a escrever o livro.

A revelação pela série de reportagens publicadas por The Intercept, no domingo, de que o então juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, e o procurador da Deltan Dallagnol trocavam mensagens controversas sobre o andamento da Operação Lava Jato é, de acordo com Schwarz, o mais recente capítulo do autoritarismo à brasileira. “Esse episódio confirma a ideia de judicradura ou a ditadura do Judiciário, quer dizer, de um Judiciário que cumpre com sua liturgia, mas que cresceu de modo a não equiparar-se com os outros poderes. É um Judiciário que perde a medida do seu poder e põe em questão a prática da equanimidade”.

A historiadora e antropóloga também relaciona o episódios com outros ismos muito presentes na cultura e na história brasileira. O teor das conversas vazadas evidencia a atualidade do autoritarismo e do patrimonialismo no Brasil. Juntamente com a corrupção, seriam os grandes inimigos da República no país.

A subversão da “coisa pública”

Já dizia o historiador José Murilo de Carvalho que “nossa República nunca foi republicana”. Schwarcz concorda com ele, ao lembrar que a res pública —a coisa pública ou o bem comum— deveria opor-se aos interesses privados. Mas, no Brasil, observa, nunca foi assim.  “O patrimonialismo é resultado da relação viciada que se estabelece entre a sociedade e o Estado. É o entendimento, equivocado, de que o Estado é bem pessoal, ‘patrimônio’ de quem detém o poder. O que vimos ocorrer desde domingo [9], com o vazamento de informações sobre Sergio Moro, se chama patrimonialismo. O uso do Judiciário para causas particulares, como forma de vingança e de impedimento à que a democracia siga seu curso”, afirma Schwarz.

A autora também vê esse uso do poder para interesses particulares no Governo Bolsonaro (apesar de não citar diretamente o presidente no livro), que, segunda ela, tem características populistas e autoritárias similares aos governos de Donald Trump, nos Estados Unidos, de Viktor Orbán, na Hungria, de Rodrigo Duterte em Filipinas, ou de Nicolás Maduro, na Venezuela. “São governos que têm uma compreensão muito restrita da democracia. Propagam a ideia de que democracia se resume a ganhar eleição”.

No caso do atual Executivo brasileiro, Schwarz destaca o personalismo, a figura forte do Bolsonaro como “salvador da pátria”, como traço autoritário. “É essa coisa de ‘eu sou o poço da verdade’. Basta ver que a primeira manifestação de apoio ao presidente foi contra o Congresso e contra o Supremo, ou seja, a ideia é do Governo é ‘eu não preciso dos outros poderes, eu sou o poder’. É um governo que não sabe governar, que continua com falas de campanha, que não consegue ser propositivo e que não pratica o que é, na minha opinião, a melhor política: a arte de construir consensos. Ao contrário, ele [Jair Bolsonaro] vai cada vez mais apostando na polarização dos afetos”, diz.

Schwarcz também menciona a constante histórica que permitiu que diversas famílias se perpetuassem na vida política do país. “Isso de governar pela parentela é um costume aceito no Brasil. Mas agora temos um presidente e três de seus filhos que foram eleitos para outros cargos tomando decisões em Brasília. Houve um recrudescimento da bancada dos parentes, e os Bolsonaro exacerbam esse modelo de familismo muito vigente no país”, critica.

Ela pondera, no entanto, que o autoritarismo, pelo menos no Brasil, não se apega a ideologias. “Ele também cabe na esquerda”, afirma. O capítulo sobre corrupção —o maior do livro— está quase inteiramente dedicado ao caso do Mensalão[escândalo de compra de votos de parlamentares no Congresso durante o Governo Lula], à Operação Lava Jato e o papel do PT nela. “A polarização que vivemos hoje é consequência disso. Um lado só se radicaliza se o outro se radicalizar também. É com isso que os partidos de esquerda ou progressistas têm que lidar hoje”.

Apesar de interpretar o Mensalão como uma tentativa de perpetuação no poder, Schwarcz não considera os governos progressistas autoritários. “Tanto os governos do PT quanto do PSDB estavam muito preocupados em ampliar a educação, em fomentar a inclusão, não afastaram da sua pauta a questão das minorias que estavam ascendendo. A corrupção virou uma máquina de governar, mas a questão do autoritarismo é de outra ordem. O governo atual não tem nenhum apego à questão das minorias, não tem uma agenda progressista, a favor da diminuição das desigualdades, e deu provas de que não tem vocação nem vontade política de batalhar pela educação, a única coisa que pode desarmar o gatilho da desigualdade e da exclusão social”, argumenta.

Cicatrizes históricas e a “utopia” da Constituição de 1988

Em Sobre o autoritarismo brasileiro, Schwarcz resgata várias cicatrizes históricas que persistem como nós sem desatar no panorama atual do país. O colonialismo, baseado em um modelo de exploração, e a experiência de colonização portuguesa —uma coroa pequena, com poucos recursos para povoar o território e que baseou-se no sistema latifundiário, além de configurar uma metrópole ausente da vida social local— são responsáveis, segundo ela, pelas especificidades do autoritarismo brasileiro. A maior e mais profunda dessas cicatrizes é, no entanto, a escravidão. “Não é à toa que abro o livro com esse debate. Nem todos os países de governos populistas e autoritários contaram com mão de obra escrava como nós contamos. A escravidão virou uma linguagem entre nós e com graves consequências. Esse é um grande nó da história brasileira, um nó que a gente não desata e que gera esse racismo tão estrutural e institucional que vivemos hoje”.

A historiadora e antropóloga aponta que a Constituição de 1988 foi uma tentativa de mitigar esses danos históricos, mas falhou em não reconhecer uma parcela da população que não se sentiu atendida por ela. “A Constituição de 1988 é generosa com muitos dos nossos direitos, mas falhou em alguns pontos. Um deles foi não mencionar a situação dos militares. Outro foi não tratar dos privilégios de uma sociedade desigual. Minha geração falhou em não ver isso, em não ver essa parte da população que não se espelhava na utopia da Constituição”.

Para Schwarcz, esse é um dos fatores que explicam “como os brasileiros colocamos no poder um projeto autoritário”. As soluções para romper com a cultura de autoritarismo, afirma, passam pelo fortalecimento das instituições e pela educação. Mas não há garantias.  “História não é que nem bula de remédio. A tristeza da História é que, muitas vezes, em vez de irmos para frente, voltamos atrás”, diz.



domingo, 3 de novembro de 2019

5 países que apostam, e muito, na educação





Por Ana Luiza Basilio - Conheça a trajetória de nações que valorizam os professores e são exemplos de modelos educacionais do mundo.

Se é difícil encontrar paralelo no mundo com o que se passa no Brasil de maneira geral, é quase impossível detectar uma experiência semelhante quando se trata de educação. Na maioria dos países, ricos ou pobres, ao Norte ou ao Sul, a compreensão do ensino como esteio da civilização e da prosperidade é disseminada e defendida pela sociedade. Ninguém se atreveria a cortar o orçamento das universidades sob a alegação de “balbúrdia”, interromper o pagamento de bolsistas de mestrado ou doutorado sem critérios claros ou chantagear os eleitores com a possibilidade de secar as torneiras caso uma reforma da Previdência não seja aprovada. O mais provável destino de um governo que assim se comportasse seria uma breve temporada no poder – e o ostracismo político.

Na Europa, berço do Estado de Bem-Estar Social, o ensino, do maternal à universidade, é público e gratuito, salvo raras exceções, e não há líder populista de direita capaz de convencer a população de que o sistema prejudica a economia e estimula o privilégio. Ao contrário. A educação universal e às expensas do Estado é vista como uma condição básica para garantir a igualdade e o desenvolvimento. Nas nações em que escolas públicas e privadas convivem, o ensino pago é preenchido por uma minoria – ou filhos de milionários ou estudantes com dificuldades de adaptação.

Não bastasse, enquanto o governo Bolsonaro escolhe a educação e a ciência como os inimigos número 1, nações que há muito tempo atingiram a universalização do ensino preparam-se para a nova etapa do capitalismo: a revolução industrial e tecnológica chamada de 4.0, tsunami que destruirá milhares de profissões e milhões de empregos ao redor do mundo nas próximas décadas. Corrida para a qual, obviamente, o Brasil se torna cada vez menos competitivo.

A seguir, listamos cinco países que, em diferentes medidas, redobraram seus esforços para adaptar os cidadãos à nova fase do desenvolvimento:

Portugal
Desde que a OCDE, a organização das nações desenvolvidas, começou, em 2000, a aplicar um sistema de avaliação entre seus afiliados, Portugal registra melhoras constantes nos indicadores. Em 2015, os estudantes do país conseguiram notas acima da média em ciências, leitura e matemática. Um dos segredos é o maciço investimento nas famílias e nos primeiros seis anos de uma criança. Entre 2003 e 2015, o total de mães com ensino secundário completo subiu 41%. Quanto maior a escolaridade materna, mostram os estudos, maior o rendimento dos filhos na escola. Nem a crise econômica que devastou Portugal em 2008 interferiu nas políticas públicas.

A educação básica em Portugal é dividida em três ciclos e leva 12 anos para ser concluída. O Ensino Superior contempla dois sistemas: universitário e politécnico. No primeiro, são conferidos aos estudantes os graus de licenciatura, mestrado e doutorado. Os institutos politécnicos concentram-se na formação profissional prática.

Finlândia
Referência mundial, a Finlândia constantemente aparece no topo das avaliações de qualidade da educação. A revolução no ensino começou ainda nos anos 1960, quando os impostos gerados pela indústria de papel e celulose sustentaram a adoção das políticas de Bem-Estar Social. O ensino gratuito e universal foi adotado na década de 70 e desde então mira o conhecimento interdisciplinar e não estanque. Matemática, ciência e música são apresentadas aos estudantes por meio de projetos integrados, forma de combinar os conteúdos e adaptá-los ao cotidiano dos alunos. Como a individualidade é estimulada e não reprimida, uma sala reúne até cinco níveis de estudantes em torno de uma mesma tarefa.

Na Finlândia, é mais difícil virar docente do que médico. É preciso, no mínimo, mestrado para dar aula

O governo incentiva a adoção de novas tecnologias e modelos de aprendizagem. Os professores são valorizados e exigidos. É preciso mestrado para dar aulas em uma escola de Ensino Fundamental. Na Finlândia é mais difícil ser professor – em 2015, a taxa de aprovação nos cursos de formação de professores foi de 4,2% – do que médico, cujo índice de aprovação nas faculdades é de 8,8%.



A FINLÂNDIA mira o ensino multidisciplinar, o CANADÁ, a integração
e a igualdade de oportunidades

Canadá
Em 2015, o país ocupou o terceiro lugar do ranking da OCDE em leitura e ficou entre os dez melhores na avaliação geral. O sistema canadense organiza-se a partir de províncias autônomas, ou seja, não há um sistema nacional, mas políticas distintas em cada localidade. Um traço comum no sistema é, no entanto, a igualdade de oportunidades. Há um esforço para integrar o grande contingente de migrantes que todos os anos aporta no país. Em geral, um aluno de fora leva três anos para alcançar uma performance semelhante aos estudantes de origem canadense.

São também expressivos os investimentos em alfabetização, treinamento de professores, bibliotecas e reforço para alunos com dificuldade de aprendizagem.

Os bons índices refletem ainda a homogeneidade socioeconômica. Há pouca diferença de rendimento escolar entre os alunos mais e menos pobres. No último Pisa, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, a variação de notas causada por diferenças socioeconômicas foi de apenas 9%, em comparação aos 20% da França e 17% de Cingapura, para citar dois casos.

A rede pública abriga o maior número de estudantes. Em Ontário, 94% dos alunos estão matriculados em unidades públicas. De maneira geral, o sistema repele a lógica “academicista”, de fixação de conteúdos, e estimula a autonomia. Aos 14 anos, os canadenses podem escolher as disciplinas que mais interessam e montar a própria grade curricular. A educação obrigatória vai até os 16 anos.

Alemanha
Depois de um contingenciamento na última década causado pela crise econômica de 2008, a Alemanha anunciou a retomada dos investimentos públicos. Serão 160 bilhões de euros a mais entre 2021 e 2030 para universidades e centros de pesquisa científica independentes. “Com isso, estaremos garantindo a prosperidade do nosso país no longo prazo”, afirmou Anja Karliczek, ministra da Educação, durante o anúncio dos novos investimentos.

A Alemanha acaba de anunciar um incremento de 160 bilhões de euros no orçamento de universidades e centros de pesquisa

Além de mais dinheiro para a contratação de professores, as universidades terão acesso a um fundo de 150 milhões de euros destinado a projetos especiais.


Para "garantir a prosperidade no longo prazo", como afirmou a
Ministra da Educação, a ALEMANHA aposta no Ensino Superior

Estônia
Na última edição do Pisa, o ranking da OCDE, a Estônia apareceu em terceiro lugar, atrás apenas de Cingapura e Japão. O sucesso educacional recente do pequeno país báltico sustenta-se em um tripé: acesso universal e gratuito em todas as etapas do ensino, autonomia garantida a professores e escolas e valorização da educação pela sociedade.

O governo investe atualmente 6% do PIB em educação. Enquanto o Brasil gasta 6,6 mil reais com estudantes do Ensino Fundamental, a Estônia aplica o equivalente a 28 mil reais. Boa parte do dinheiro garantiu o aumento de renda dos professores, que cresceu 80% nos últimos dez anos. O piso salarial é de 1,2 mil euros, cerca de 5 mil reais.

Um currículo nacional orienta os ciclos de aprendizagem, mas as escolas têm autonomia para aplicá-lo da maneira que acharem melhor. Como na Finlândia, as disciplinas são integradas e não respeitam limites burocráticos. Ética e educação digital estão entre os temas mais explorados. Exige-se no mínimo mestrado dos professores.



Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...