sábado, 7 de dezembro de 2019

Por uma outra história das mulheres


Por Bárbara Castro 


Os Direitos das Mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937)
Autor: Glaucia Fraccaro
Ano: 2018
Editora: FGV Editora
Páginas: 236



Elizabeth Souza Lobo nos deixou uma rica herança teórica, metodológica e política. Em seu último texto, publicado postumamente em outubro de 1991 pela Revista Brasileira de Ciências Sociais, ela oferecia uma chave de análise preciosa para ampliar nossa compreensão do feminismo brasileiro e sofisticar a maneira como contamos sua história1. Para compreender sua emergência e formação seria preciso olhar para a participação das mulheres na vida política e em movimentos sociais que não são voltados às temáticas marcadas como “femininas” ou como pertencentes à “esfera da reprodução”. Afinal, as mulheres sempre estiveram presentes nas lutas sociais as mais diversas. Elas só não foram visibilizadas por aqueles e aquelas que contam nossa história.

O que a autora defendeu em seu artigo foi que ao participar e protagonizar lutas trabalhistas, ocupações de terrenos urbanos e rurais, movimentos de saúde, contra a carestia ou pela abertura democrática, as mulheres se construíram como agentes políticas. Elas se reconheceram e se produziram no coletivo, formulando demandas e reivindicações que passavam pela construção da ideia de direitos. Glaucia Fraccaro demonstra, em seu recém-publicado livro Os Direitos das Mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937), como esse processo histórico de produção de uma agenda de direitos das mulheres se constituiu entre os anos de 1917 e 1937.

Aprendi recentemente lendo Angela Alonso2 que o Brasil do início do século 20 já herdava uma tradição de participação política das mulheres que atuaram no movimento abolicionista e que se autonomizaram, nesse período, em associações voltadas apenas para mulheres, a despeito das interdições que existiam para o pleno exercício de sua cidadania política. Essa história nos permite elaborar como hipótese, em homologia ao que nos conta Angela Davis em Mulheres, Raça e Classe3, que o trânsito do privado para o público pode ter aberto uma fresta para as mulheres das elites disputarem um engajamento político mais direto, se desdobrando na luta pela cidadania política que ficou conhecida pelo direito ao voto e à educação. Como agenda de pesquisa, seria interessante reconstruir os percursos dessas mulheres.

Mas essa agenda, sozinha, é estreita. Se escolhermos olhar apenas para a participação política das mulheres de elite, invisibilizamos uma parte preciosa da história da luta das mulheres no Brasil. A inserção delas na arena pública, via trabalho livre, como já sabemos e é ponto de partida de Glaucia Fraccaro, já era a realidade de muitas mulheres na virada do século 19 para o 20, seja no trabalho doméstico, seja no trabalho industrial. Esses foram ricos espaços para sua participação política. É a história das mulheres trabalhadoras, articulada à história das mulheres de elite que transitavam na esfera político-parlamentar, o que Glaucia Fraccaro nos conta. Fruto de sua tese de doutorado em História Social, o livro reconstitui a história da luta das mulheres no intervalo de duas décadas, colaborando para reenquadrarmos a história do feminismo brasileiro. A autora apresenta como o processo histórico de produção das mulheres como agentes políticas se constituiu em uma intrincada trama que envolveu classe trabalhadora, mulheres de elite, Estado e instituições internacionais (como a OIT e organizações feministas internacionais).

A autora abre o livro nos convidando a revisitar as greves de 1917, destacando a participação das mulheres no movimento político da classe trabalhadora. Elas não apenas compunham a maioria dos trabalhadores das fábricas têxteis que pararam o país em 1917. Elas se organizaram fora dos sindicatos, fundando e atuando em ligas e associações operárias de bairros, articulando-se politicamente por meio de redes da família e vizinhança. Elas também tiravam proveito da percepção social sobre elas construída. Ser mulher possibilitava uma agência política diferenciada. Os encontros das ligas eram proibidos pela polícia. No entanto, alguns desses encontros eram autorizados desde que houvesse a participação apenas de mulheres. Elas exigiram, de 1917 até meados dos anos 19304, melhorias nas suas condições de trabalho, defendendo “salário igual para trabalho igual”, licença pós-parto com vencimentos, proibição do trabalho noturno para mulheres, e articulavam denúncias de assédio e abuso sexual dos patrões (na época, nomeados como processos por desonra). As greves resultaram, em um primeiro momento, em legislações estaduais de proteção do trabalho das mulheres e na adoção, pelo patronato, de uma gestão privada dos direitos sociais dentro das indústrias. Para reduzir os conflitos, o patronato buscava construir uma regulação trabalhista privadamente, sem interferência da fiscalização do Estado5.

Na segunda parte de seu livro, a autora articula a luta das mulheres trabalhadoras àquela empreendida pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), fundada em 1923 por Bertha Lutz. A FBPF é tratada pela bibliografia especializada como instituição que inaugura o feminismo brasileiro, largamente orientada pela luta pelo direito ao voto e pela educação das mulheres. O horizonte da instituição tem sido tratado, pois, como um horizonte de luta pela cidadania política. Ao destacar as diferentes pressões políticas sofridas por Bertha Lutz e pela FBPF entre os anos 1920 e meados da década de 1930, a autora nos oferece uma nova leitura do período e do movimento feminista em emergência. Ela joga luz no peso que teve a atuação das mulheres trabalhadoras e seu ativismo político para a construção da agenda da FPBF. O repertório de demandas e reivindicações das mulheres que atuavam nas greves do período vai reverberar na atuação da FBPF. Elas construíram ideias de direitos e de justiça social que se tornaram incontornáveis na luta feminista. Se a FBPF nos foi apresentada, até o momento, como um movimento voltado apenas à luta pela cidadania, Glaucia Fraccaro demonstra como o acúmulo das greves lideradas por mulheres e dos direitos por elas adquiridos influenciaram na atuação de Bertha Lutz junto ao Estado brasileiro e na mudança da agenda política que ela costurava junto às organizações feministas internacionais. A questão de classe articulada ao gênero vai se constituindo, aos poucos, como central à agenda da FBPF, especialmente nos anos 1930.

A terceira parte do livro nos traz uma nota sombria e atual. Após apresentar como o repertório de direitos das mulheres se cristalizou na Constituição de 1934 e na legislação do trabalho de Vargas, demonstrando a participação ativa de Lutz nesses dois processos, Fraccaro encerra o livro no golpe de 1937. Ela nos relembra de como a transição da agenda liberal para a conservadora fez água no acúmulo do debate que havia sido construído sobre os direitos das mulheres. As comissões parlamentares das quais Bertha Lutz fez parte e que subsidiavam o inovador Estatuto da Mulher foram substituídas por debates em torno do Estatuto da Família. Sob forte influência da bancada católica, a agenda política se deslocou da busca pela autonomia política e econômica das mulheres para a preservação do casamento e proteção das crianças. Tal deslocamento na compreensão de como os direitos das mulheres devem ser entendidos tem orientado os debates políticos do Brasil pós-golpe de 2016, em especial tem composto a agenda do presidente conservador recentemente eleito. Lembrar do golpe de 1937 e seus efeitos para a luta das mulheres nos relembra a fragilidade que essa agenda de direitos tem em nossa história. Mas ler o livro de Glaucia Fraccaro também nos dá a dimensão da potência que existe nas lutas sociais. Ao historicizar como a diferença é construída, nos ajuda a compreender os discursos e práticas que traduzem essa diferença em desigualdade. Seu livro chega em boa hora. Nos dá a dimensão de que a produção de alianças políticas entre as mulheres, articulando as demandas e reivindicações produzidas nas experiências de classe e raça, está por trás da construção e manutenção de nossos direitos. Que nos sirva, a todas, como um convite à luta política. E nos ensine que é a partir dela que nos produzimos enquanto portadoras de direitos. Mãos à obra, pois.


Bárbara Castro é professora do Departamento de Sociologia da Unicamp. E-mail: bgcastro@unicamp.br

Notas
1. LOBO, Elisabeth Souza. “O gênero da representação: movimento de mulheres e representação política no Brasil (1980-1990)”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 17, p. 7-14, out. 1991.

2. Refiro-me aos seguintes artigos: ALONSO, Angela. “Associativismo avant la lettre: as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista”. Sociologias, v.13, n. 28, p.166-199, dez. 2011. ALONSO, A. “A teatralização da política: a propaganda abolicionista”. Tempo Social, v. 24, n. 2, p. 101-122, 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-20702012000200006

3. DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

4. Há registros, por exemplo, de uma greve em uma tecelagem organizada por mulheres em 1935 (Fraccaro, 2018, p. 56).

5. “Para além do sistema de identificação de trabalhadores e trabalhadoras que causavam instabilidades na vida das fábricas, os empresários também impulsionavam a garantia de benefícios por eles patrocinados, como no caso das creches. A Companhia Nacional Estamparia de Sorocaba era uma referência nesse tipo de gestão empresarial por ter instituído um programa de aposentadorias, um seguro-saúde e auxílio por doenças, assistência dentária e material escolar para as crianças das operárias e um complemento salarial de 10% para aquelas que se tornavam viúvas e se mantinham ‘honestas’. As condições de acesso aos benefícios eram de não fazer greve e trabalhar na fábrica por certo período mínimo, que variava de acordo com a vantagem oferecida” (Fraccaro, 2018, p.108-109).


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