domingo, 26 de janeiro de 2020

Não é religião, é poder


Por Elaine Tavares




A ideologia produzida pelos meios de comunicação de massa vai fazendo seu trabalho de engano. Durante muito tempo produziu a ideia de que a luta na Palestina tinha a ver com a religião, contrapondo judeus a muçulmanos, ou judeus aos árabes. Uma grande bobagem. O que está em jogo na Palestina é território, riqueza, poder. O estado sionista, criado artificialmente depois da segunda grande guerra,  busca “limpar” a área que não é dele para expandir seu poder e garantir que aquele território siga sendo a porta de entrada ao oriente médio. Uma porta aberta aos interesses imperialistas dos Estados Unidos. Quem atrapalha? Os palestinos, donos das terras, e que não tem simpatias pelo império. Fossem os palestinos católicos, adventistas, presbiterianos, umbandistas, qualquer coisa, e os sionistas - que são judeus, mas representam só uma parte deles – os estariam matando.

É claro que o poder instituído se vale da religião, usa os preceitos, os dogmas, os pré/conceitos religiosos para aprofundar o conflito, para incendiar, para provocar o ódio. Mas, o que está em jogo ali não nada a ver com o “ser superior criador de todas as coisas”. O ser em questão é bem mais “baixo”, é o poder.

Agora, na América Latina temos visto o crescimento vertiginoso das chamadas igrejas neopentecostais, um fenômeno nascido nos Estados Unidos, com o estabelecimento das igrejas eletrônica (cultos via televisão) já nos anos 1980 do século passado. Uma jogada de mestre do imperialismo para derrubar a influência da igreja de libertação que se expandia por toda Abya Yala. Era preciso barrar o crescimento de uma igreja vermelha, que pregava que a vida boa, justa e plena devia ser vivida aqui na terra e não no céu.

As novas igrejas que foram nascendo, e se fortalecendo a partir dos meios de massa, tinham outra teologia: era preciso clamar ao espírito santo para que os demônios do mundo fossem expulsos. E eram os demônios os que impediam que toda a gente pudesse ser próspera. Assim, a receita é simples: os pastores expulsam os demônios e a pessoa pode, enfim, prosperar. Logo, a pobreza, a miséria, a fome, a dependência química, o sofrimento psicológico não são causados pela maneira como a sociedade se organiza, com uns poucos amealhando toda a riqueza enquanto a maioria chafurda na miséria e na exploração. Não, tudo isso é culpa do demônio. A saída, então, é exorcizar. E isso pode ser feito se a pessoa contribuir. É a versão moderna da venda das indulgências que levou ao grande cisma da igreja medieval. E o resultado parece estar funcionando. Os crentes encontram conforto e os pastores enriquecem.

Isso nos leva de novo ao tema. Não se trata de religião. Trata-se de poder. Os novos “pastores”, assim como os papas de antigamente, tudo o que querem é garantir o seu poder,  financeiro e de influência. Quem domina a massa, domina uma boa parte da realidade.

Agora, na América Latina temos visto as chamadas igrejas neopentecostais assumindo o controle da mente da maioria. E assim, em nome de deus e da bíblia, pessoas se arvoram em salvadores das pátrias, para o bem ou para o mal. No Haiti, a maior liderança da oposição é um religioso dessa cepa, no Brasil temos o “papa” ou “Salomão redivivo” que é Edir Macedo, controlando mentes e corações via igreja e televisão. E na Bolívia acabamos de ver um golpe de estado sendo dado com os assassinos carregando a bíblia e clamando por deus. Os Estados Unidos, desde sempre invade outros países no mundo em nome de deus.

Ora, isso é um blefe. Não tem nada a ver com religião. Tem a ver com o poder.

Os seres humanos, quando não conseguem compreender a realidade na sua totalidade, tendem a criar explicações para os seus dramas e sofrimentos. A religião nasce daí. E, ao longo dos tempos, vem servindo a todos os interesses escusos. Quem pode esquecer a igreja católica medieval queimando gente para não ver seu poder se esfumaçar?

Diante do medo, da desesperança, do não-sabido, as pessoas se agarram a qualquer tábua de salvação. E o fazem na boa fé. Tanto que muitos realmente se salvam. Portanto, o problema não está na religião em si, mas sim no uso que os que a dirigem fazem para garantir poder.

Então, há que se perguntar. Que interesses defendem os bispos das novas igrejas que surgem como gafanhotos famintos no seio das massas? Em que projetos seus representantes votam, para além das bobagens morais? Estão do lado dos trabalhadores ou dos empresários? A questão não é garantir que menino vista azul e menina vista rosa, mas quem vai se apossar dos minérios, do petróleo, das terras. Os bispos que estão aí disputando cadeiras no legislativo e no executivo não querem encher a terra com as graças de deus. Querem encher seus cofres e garantir que o capitalismo siga firme, com poucos vivendo à larga e a maioria penando sob intensa exploração. Quanto mais vale de lágrimas, mais fiéis para as igrejas.

A religião sempre foi um instrumento usado pelos poderosos na luta de classes. Manter o demônio como vilão é sempre muito mais seguro. Já desvelar o “diabólico” capitalismo predador, nem pensar.

Por isso, quando nos deparamos com esses “novos” líderes, que andam com a bíblia na mão, há que ter cuidado. Não são eles os sacerdotes da religiosidade que ampara, que liberta, que busca o amor universal, a solidariedade, a cooperação. Não. Eles são apenas negociantes da fé em busca de poder. E as igrejas que não estão comprometidas com a completa destruição do vale de lágrimas causado pelo capitalismo, não são igrejas, são empresas, negócios, bussines. Temos de chamá-las por seus verdadeiros nomes.

O Jesus, que, em tese, deveria ser o mestre de todos esses enganadores, já dizia: “eu vim pôr fogo ao mundo e hei de preservá-lo até que arda”. Ele queria destruir o modo de vida que causava tanta dor e sofrimento aos seres humanos naqueles dias de escravidão. E construir uma vida nova. Jesus sabia das coisas, pensava no coletivo. Já esses que falam em seu nome, só querem se dar bem. Nada sabem de Jesus ou de deus, só sabem de poder.


domingo, 19 de janeiro de 2020

2020 seria o começo do fim da educação básica?



O Fundeb, vital fundo para o ensino público, está em risco: com validade até o próximo ano, pode ser extinto pelo governo Bolsonaro. É preciso discutir (e entender) o financiamento da educação — ou milhares de escolas podem fechar as portas


Por Cleo Manhas




Com o sinal vermelho ligado no que diz respeito ao financiamento da Educação, é importante entender de onde vêm os recursos que mantém a política de ensino no país. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), por exemplo, é um dos mais importantes instrumentos de sustentação da educação básica. Aprovado em 2006, fruto da luta do movimento social, a validade do Fundeb é somente até dezembro de 2020, o que precisa ser revisto com urgência.

Neste momento, há propostas em tramitação no Congresso Nacional com a intenção de perenizar o Fundeb. São elas, a PEC 24/2017, PEC 65/2019 e PEC 15/2015, esta última já está sendo analisada pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados, as duas primeiras estão no Senado Federal. Caso não se aprove a sua ampliação ou perenização, a educação básica estará em sérios riscos, pois estados e municípios não têm autonomia financeira para arcar com os custos. Se a União não aportar o principal, a educação pública será uma mera lembrança, antes mesmo que consigamos a tão sonhada qualidade.

O que diz a Constituição

O financiamento da Educação, a partir da Constituição Federal (CF) de 1988, passou a sofrer menos intempéries, visto que o legislador garantiu o mínimo necessário, ou seja, 18% para a União e 25% para Estados e Municípios.

Além disso, no artigo 211, parágrafo primeiro, está dito que “A União organizará o sistema federal de ensino e financiará as instituições de ensino públicas, federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

O que significa isso de fato?  18% e 25% sobre o que?

A CF estabelece em seus artigos de 157 a 162, que o sistema tributário deve ser partilhado pelas esferas de governo, visto que no Brasil é o governo federal quem mais arrecada. Desta forma, parte da arrecadação da União é transferida para Estados e Municípios e parte da arrecadação dos Estados é transferida aos Municípios. Esses repasses são feitos para diminuir o impacto das grandes diferenças de arrecadação e para aumentar o poder de investimento de Estados e Municípios, levando em consideração que a União arrecada aproximadamente 70% dos tributos, os Estados perto de 25% e os Municípios em torno de 5%.

Sistema tributário e Educação

No Brasil há três categorias de tributos, impostos, taxas e contribuições. Os impostos são muito importantes, pois, por meio deles, o governo obtém recursos que custeiam quase todas as políticas públicas. As taxas são tarifas públicas cobradas para fornecimento de algum serviço, tal como documento, ou segunda via de certidões e passaportes, por exemplo. As contribuições de melhoria são cobradas do contribuinte que teve, por exemplo,  seu imóvel valorizado por alguma benfeitoria. E as contribuições sociais e econômicas, de competência da União. As sociais são para cobrir gastos da Seguridade Social e as econômicas para fomentos de certas atividades econômicas.

Para o cálculo dos 18% garantido para a União custear a educação, são computados apenas os impostos, conforme estabelecido pelo parágrafo 212 da CF, que diz que a União aplicará nunca menos de 18% e os Estados e Distrito Federal e os Municípios, nunca menos  que 25% da receita resultante dos impostos e transferências constitucionais. E, ainda neste mesmo artigo, está dito que o ensino fundamental terá o acréscimo da contribuição social do salário-educação, recolhidos pelas empresas (a emenda 53 de 2006 modificou isso, acrescentando as outras etapas de ensino).

A fórmula de cálculo é a seguinte: só após os repasses obrigatórios para os fundos de participação de Estados e Municípios (FPE e FPM), e depois, dos Estados para os Municípios, é que as porcentagens são retiradas do bolo restante. Isso ocorre para não haver dupla contabilização.

 Os recursos transferidos são destinados à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), conforme o disposto no artigo 212 da CF, regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). As atividades suplementares, tais como merenda, uniformes, dinheiro direto na escola são financiados com outros recursos administrados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com recursos provenientes, dentre outras fontes, do salário-educação, recolhido pela União, que repassa uma parte para Estados e Municípios.

 O que significa a Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE)? O que está dentro disso?

 Apesar de vaga, a expressão MDE diz respeito a ações específicas, que focam diretamente o ensino. Ações estas especificadas pela LDB, artigo 70. São elas:

· Remunerar e aperfeiçoar os profissionais da educação;

· Adquirir, manter, construir e conservar instalações e equipamentos necessários ao ensino (construção de escolas, por exemplo);

· Usar e manter serviços relacionados ao ensino tais como alugueis, luz, água, limpeza etc.

· Realizar estudos e pesquisas visando o aprimoramento da qualidade e expansão do ensino, planos e projetos educacionais.

· Realizar atividades meio necessárias ao funcionamento do ensino como vigilância, aquisição de materiais…

· Conceder bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas.

· Adquirir material didático escolar.

· Manter programas de transporte escolar.

Outras fontes de financiamento

Além dessas receitas, há outras fontes, tais como o salário-educação, que é recolhido das empresas, sobre o cálculo de suas folhas de pagamento. Essa receita é dividida entre União, Estados e Municípios. Quem arrecada a contribuição é o INSS, que fica com 1% a título de administração e repassa o restante para o FNDE, que desconta 10% e divide os 90% da seguinte forma:

A União fica com um terço dos recursos mais os 10% do FNDE. Os outros dois terços dos 90% ficam com Estados e Municípios, em razão direta ao número de matrículas de cada ente federado, de acordo com o censo escolar do ano anterior.

Além do salário-educação, o FNDE possui verbas oriundas de outras contribuições sociais. O Fundo desenvolve alguns projetos importantes, por exemplo: Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Brasil Alfabetizado, Apoio ao Atendimento à Educação de Jovens e Adultos (Fazendo escola/PEJA) e Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate).

Fundeb em risco

Os fundos — o Fundef, criado em 1996 para manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, e o Fundeb, substituindo o anterior a partir de 2007 e visando à educação básica como um todo — representam uma tentativa de racionalização do gasto educação. Podemos dizer que além da vinculação de recursos, conforme explicado acima, há a subvinculação.

A transição do Fundef para o Fundeb significou o aumento da complementação da União aos fundos estaduais, de R$ 492 milhões, em 2006, para cerca de R$ 14 bilhões, em 2019. Neste ano, estima-se um aporte total para o fundo de aproximadamente R$ 150 bilhões, sendo a principal fonte de recursos para a educação básica no Brasil.

Como sempre houve um subfinanciamento da educação, ao Fundeb foram acrescidos novos recursos, como os oriundos do IPVA, por exemplo, que ampliou o financiamento, mas ampliou também o número de alunos atendidos, não equacionando, ainda, a questão do sub-financiamento.

O cálculo do Fundeb também é feito de acordo com o número de matrícula na educação básica pública de acordo com os dados do último censo escolar, feito anualmente. Dividi-se o montante pelo número de matriculados para se obter o valor aluno e em seguida repassar aos Estados e municípios a parte que cabe a cada um. Aqueles que não atingirem o valor mínimo por aluno deverão ter complementação da União. Já se verificou que a União, em muitos momentos, subdimensiona o custo por aluno para não ter de efetuar a complementação para os diversos estados que não conseguiriam atingir o piso.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

A hegemonia pentecostal no Brasil



A chegada ao país, em regiões remotas. O contato com a cultura popular, inclusive as religiões africanas. A invenção da Teologia da Prosperidade. A conquista das mídias de massa. O poder político. História sintética de uma investida reversível



Por Magali do Nascimento Cunha, na Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras.


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Este texto inaugura a parceria editorial entre Outras Palavras Cult. Compõe a edição nº 252 da revista.Saiba mais sobre nossos planos comuns aqui. Conheça o Espaço Cult no OP.


Bispo Edir Macedo, missionário R. R. Soares, apóstolo Estevam Hernandes, pastor Silas Malafaia, bispo Valdemiro Santiago, pastora Damares Alves, apóstolo Rina, pastor Marco Feliciano, apóstola Valnice Milhomens, pastora Cassiane. O que essas lideranças religiosas, destacadas por mídias brasileiras, têm em comum? São pentecostais, o segmento religioso cristão que mais se expandiu, numérica e geograficamente, no Brasil nas últimas décadas. Hoje, compreender o pentecostalismo é imprescindível para quem se interessa pelas dinâmicas socioculturais e políticas que envolvem o país.

O pentecostalismo é uma das ramificações evangélicas formada por uma variedade de grupos, desde grandes igrejas, como a Assembleia de Deus (que também tem suas divisões), até pequenas denominações de uma única congregação, como a Igreja Evangélica Pentecostal Maná do Céu, em São Vicente (SP), e tantas outras vistas Brasil afora.

Evangélicos pentecostais e neopentecostais

O segmento evangélico é bastante diverso. Tem origem na Reforma Protestante do século 16 que abriu caminho para o surgimento de luteranos, congregacionais, presbiterianos, batistas, metodistas, anglicanos. No século 20, surgiram os pentecostais, expressão de um movimento de protesto contra o racismo e o classismo nas Igrejas, e de afirmação da população negra, migrante, feminina e pobre nos Estados Unidos.

Os primeiros evangélicos chegaram ao Brasil por meio de missionários estadunidenses, na primeira metade do século 19. A identidade “protestante” nunca foi bem afirmada por boa parte deles, que sempre optaram por se denominar “evangélicos”, reforçando disputas religiosas com o histórico catolicismo romano ao colocarem-se como detentores “do verdadeiro Evangelho”.

Atualmente, o grupo mais significativo desse mosaico religioso são os pentecostais. Representam a maior fatia numérica (são cerca de 60% dos evangélicos, segundo o Censo de 2010), com presença geográfica importante, ocupação de espaço nas mídias tradicionais (rádio e TV) e intensa atuação na política partidária.

O que diferencia evangélicos pentecostais dos históricos é a crença no segundo batismo, uma experiência mística atribuída à ação do Espírito Santo, que leva os fiéis a falarem línguas estranhas como sinal de sua presença. Essa ação do Espírito Santo também atribui dons especiais, como profecia e cura pela oração.

Missionários trouxeram o pentecostalismo ao Brasil na primeira década do século 20 e se estabeleceram no Pará (suecos, Assembleia de Deus) e em São Paulo (estadunidenses, Congregação Cristã do Brasil e Evangelho Quadrangular). A partir dos anos 1950, com os intensos movimentos migratórios do campo para as cidades e o processo de industrialização do país, surgiram as igrejas pentecostais fundadas por brasileiros, como a Casa da Bênção, a Brasil para Cristo, a Deus é Amor, entre outras. Várias delas tiveram em programas de rádio um importante apoio para disseminar sua fé.

A ação pentecostal no país é historicamente marcada por presença mais voltada à população empobrecida e às periferias das cidades. Essa prática tornou possível maior enraizamento nas culturas populares, com lugar garantido para a emoção e expressões corporal e musical, ainda que marcada por um puritanismo de restrições morais e culturais. Isso deu aos grupos pentecostais condições de consolidação nos espaços religiosos e crescimento numérico mais expressivo.

Mas o boom pentecostal, de fato, ocorreu a partir da década de 1980 e transformou significativamente o perfil do segmento evangélico brasileiro. Essa expansão tão marcante tem alicerces nas transformações do mundo naquele período. Foi o momento dos processos de derrocada do socialismo, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, e a consolidação do capitalismo globalizado e da cultura do mercado, baseados na lógica da plena realização do ser humano pela posse de produtos e serviços e pelo acesso à tecnologia da informática.

Grupos cristãos estadunidenses adequaram seu discurso à nova ordem mundial e criaram a Teologia da Prosperidade. Ela foi abraçada por uma parcela de pentecostais brasileiros que passou a pregar que as bênçãos de Deus, na forma de prosperidade material (posse de finanças, saúde e felicidade na família), são concedidas aos fiéis que se empenham nas práticas de devoção aliadas às ofertas em dinheiro às igrejas. A elas também é destinada a prosperidade, por meio de amplo número de fiéis, ocupação geográfica, aquisição de patrimônio e influência no espaço público. Os estudiosos da religião dizem que se trata de uma relação de troca com Deus, bem própria do clima social estabelecido pelo mercado neoliberal.

Como essa noção de prosperidade também tem a dimensão da saúde plena, as propostas de cura se amplificaram, bem como se intensificaram as práticas de exorcismo contra os males (demônios) que impedem a felicidade. Isso representou um reprocessamento de elementos da matriz religiosa brasileira com a farta (re)utilização de símbolos e representações do catolicismo e de religiões de terreiros.

Cura, exorcismo e prosperidade tornaram-se marcas de uma nova forma de pentecostalismo, que deixava de enfatizar a necessidade de restrições de cunho moral e cultural para que se alcançasse a bênção divina.

Esse pentecostalismo se expandiu no Brasil pelos anos 1990 e 2000, com a formação de um sem-número de igrejas. Estudiosos da religião denominam essa expressão religiosa de neopentecostalismo, ao qual estão vinculadas as Igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Mundial do Poder de Deus, Sara Nossa Terra, Bola de Neve, entre as maiores, somadas a inúmeras igrejas autônomas.

O crescimento pentecostal passou a exercer influência decisiva sobre o modo de ser das demais igrejas cristãs. A influência se concretizou de maneira especial no reforço aos grupos chamados “avivalistas” ou “de renovação carismática”, que têm similaridade de propostas e posturas com o pentecostalismo e que, em busca de crescimento numérico, passaram a conquistar espaços importantes na prática religiosa das igrejas chamadas históricas, incluindo a católica.

Mídias, política e mercado

O neopentecostalismo não significa a superação do pentecostalismo clássico do início do século 20. Pelo contrário, a Assembleia de Deus consolidou-se como a maior denominação pentecostal, e é também a maior igreja evangélica do Brasil, em termos numéricos e geográficos, com suas grandes e pequenas divisões em “ministérios”. A Congregação Cristã do Brasil, a Evangelho Quadrangular, a Deus é Amor e a Brasil para Cristo continuam a ter presença significativa em todas as regiões do país.

Entretanto, os grupos neopentecostais ganharam intensa visibilidade por conta da ocupação das mídias tradicionais, como rádio e TV, e dos projetos de participação política.

Na virada para o século 21, pastores e líderes neopentecostais tornaram-se empresários de mídia e detentores do que se poderia chamar “verdadeiros impérios” no campo da comunicação, buscando competir até mesmo com empresas não religiosas historicamente consolidadas (caso das Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo e Internacional da Graça de Deus). Chegou ao ponto de alguns desses grupos religiosos já nascerem midiáticos, isto é, a interação com as mídias passou a fazer parte de sua própria razão de ser.

Ao mesmo tempo, as grandes mídias (seculares) assimilam essa atmosfera e passam a produzir programas, ou parcelas deles, para disputar a audiência evangélica: espaço para a música cristã contemporânea (“gospel”) e seus artistas; patrocínio de festivais e megaeventos de rua; veiculação de programas de entretenimento com temática religiosa (inclusive com a concepção de personagens para telenovelas e criação das próprias telenovelas bíblicas).

A tudo isso se conecta o crescimento de um mercado da religião. Os cristãos tornam-se um segmento de mercado com produtos e serviços especialmente desenhados para atender às suas necessidades religiosas, sejam de consumo de bens, sejam de lazer e entretenimento. Passou a ser possível encontrar produtos os mais variados, como roupas, cosméticos, doces, viagens, filmes e jogos com marcas formadas por slogans de apelo religioso, versículos bíblicos ou, simplesmente, o nome de Jesus. A igreja católica passou a seguir a mesma trilha.

A maior presença dos evangélicos no campo da política partidária é parte desse contexto. Desde o Congresso Constituinte de 1986 e a formação da primeira bancada evangélica e seus desdobramentos, a máxima “crente não se mete em política” foi sepultada. A máxima passou a ser “irmão vota em irmão”.

A atuação daquela primeira bancada no Congresso Constituinte (1986-1989) foi marcada por fisiologismo e pela histórica farta distribuição de estações de rádio e canais de TV aos deputados evangélicos (determinante para a ampliação da presença de pentecostais nas mídias).

Depois de altos e baixos numéricos, decorrentes de casos de corrupção e fisiologismo nas legislaturas pós-Congresso Constituinte, a bancada evangélica consolidou-se como força a partir dos anos 2000, chegando a alcançar 92 parlamentares (88 deputados e 4 senadores) em 2014, e nas eleições de 2018, 94 (85 deputados e 9 senadores), sendo os pentecostais uma força hegemônica.

Essa potência solidificou-se na última década e meia, muito especialmente por conta da força de duas igrejas evangélicas que concretizaram, desde 1986, projetos de ocupação da política institucional do país: as Assembleias de Deus (AD) e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Ambas passaram a ocupar, depois de 2003, espaços plenos de poder em partidos (respectivamente o Partido Social Cristão, PSC, e o Partido Republicano Brasileiro, PRB), maior quantidade de deputados e senadores no Congresso, conquistas de cargos públicos, como as nomeações de ministros de Estado de Dilma Rousseff (dois da IURD) e de Michel Temer (dois da IURD), e lançaram dois candidatos à Presidência da República (Marina Silva e pastor Everaldo, ambos da AD). A IURD conseguiu ainda eleger o bispo, ex-senador e ex-ministro Marcelo Crivella como prefeito da cidade do Rio de Janeiro (2016).

Além disso, dois fatos impulsionaram o poder pentecostal na política. Um deles foi a inusitada nomeação do deputado Marco Feliciano (hoje, Podemos-SP) como presidente da comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, em 2013. Ela culminou no revigoramento de campanhas por legislação pautada pela moralidade sexual religiosa, sob o rótulo “Defesa da Família Tradicional”, contra movimentos feministas e LGBTI, em aliança com a bancada católica. Essas pautas encontraram eco na população conservadora não religiosa e reforçaram movimentos reacionários às conquistas de direitos alcançadas nas últimas duas décadas.

Outro fato foi a eleição do deputado federal pentecostal Eduardo Cunha (MDB-RJ) à presidência da Câmara dos Deputados, em 2015. Representou um poder sem precedentes para a bancada evangélica e facilitou tanto a defesa das pautas descritas aqui como a abertura à concessão de privilégios a igrejas no espaço público. A prisão e a cassação do deputado, em 2016, não afetou significativamente as conquistas políticas da bancada.

Tanto a IURD como a AD ofereceram amplo apoio à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018, acompanhadas por outras denominações pentecostais, no rastro das propostas conservadoras apresentadas por ele. Bolsonaro candidatou-se à Presidência com um discurso identificado como cristão, marcadamente evangélico conservador, embora declarando-se católico. Nesse contexto, a bancada evangélica se fortaleceu como interlocutora do novo governo e ganhou representantes nos ministérios da Casa Civil (Onyx Lorenzoni) e da Mulher, Família e Direitos Humanos (pastora Damares Alves), com fiéis alocados em cargos estratégicos no ministério da Educação.

Para refletir

Esse quadro retrata a ampliação da visibilidade pública alcançada pelos evangélicos no Brasil nas últimas décadas, por conta da hegemonia (neo)pentecostal.

É um fenômeno que marca o momento sociopolítico e cultural do país, em que os evangélicos se colocam na arena como bloco organicamente articulado. Eles não são mais “os crentes” ou os grupos fechados de outrora; desenvolvem uma cultura “da vida normal” que combina a religião com presença nas mídias, no mercado, no entretenimento e na política. Um segmento religioso que se vê fortalecido como parcela social que tem suas próprias reivindicações e pode eleger seus próprios representantes para os espaços de poder público.


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