terça-feira, 1 de setembro de 2020

Povos indígenas e a escolha pela existência



Por Maria Augusta Assirati



Governo libera a prática de atividades econômicas ilegais, constitucionalmente vedadas, como o garimpo e a reativação de projetos que flexibilizam o licenciamento ambiental de empreendimentos que impactam os territórios indígenas


Povos indígenas cantam em bom som a sua resistência: O presidente vai passar. Nós permaneceremos
Midia Ninja/Facebook

Antes mesmo de eleito, o atual presidente já afirmava que em sua eventual gestão não haveria mais um centímetro de terra para indígena, e que a política de demarcar terras deixaria de existir. Política que jamais fora efetivamente implementada de forma séria, impondo aos povos indígenas a perpetuação da condição de guerra permanente pela garantia de seus territórios. Desde a promulgação da Constituição Federal, que garante expressamente aos povos indígenas o direito ao usufruto exclusivo de seus territórios, e impõe ao Estado o dever de demarcá-los, há processos administrativos e judiciais que submetem esses povos a uma espera que pode durar dez, vinte ou trinta anos até que se reconheça e se garanta seu direito.

Desde sua posse, o atual presidente segue proferindo violações que vão dando concretude a seu projeto antidemocrático e plenamente conflitante com a ordem vigente. Suas manifestações públicas passam por afirmações como “vamos desmarcar” terras já homologadas, “vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros”, “vamos integrá-los à sociedade. Como o Exército faz um trabalho maravilhoso tocante a isso, incorporando índios, tá certo, às Forças Armadas”.

A prioridade do governo hoje, em relação ao assunto, é a liberação da prática de atividades econômicas ilegais em territórios indígenas. Práticas constitucionalmente vedadas, como o garimpo em terras indígenas. Para tanto, seu plano envolve, por exemplo, a autorização da mineração em territórios indígenas e a reativação de projetos que flexibilizam o licenciamento ambiental de empreendimentos que impactam esses povos. Os temas já foram objeto de confronto em momentos anteriores. No caso da mineração, a maioria da população assume posição contrária à flexibilização da proibição constitucional; favorável, portanto, à manutenção da proteção das comunidades e terras indígenas. Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha em junho deste ano, a mineração em terras indígenas é reprovada por 86% dos brasileiros, e a rejeição à entrada de empresas de exploração nessas reservas é de, no mínimo, 80% da população de todas as diversas regiões do Brasil, escolaridades, idades, sexos, faixas de renda e ocupações.

O governo contesta, e o atual presidente diz que há uma incompreensão da população sobre o que é garimpo. “Quando se fala em garimpo, vem a imagem do cara com jato d’água, desbarrancando tudo. De vez em quando vem com escafandro no fundo do rio. Não é assim. Esse garimpo é industrial, geralmente”.

A taxa de desmatamento no Brasil sofreu um aumento de cerca de 88% em relação ao ano passado, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O aumento do desmatamento, conforme comprovam os números do Inpe, vem sendo sentido e anunciado pelas comunidades indígenas, que sofrem diretamente os impactos dessas atividades. As invasões madeireiras provocam mudanças e dificuldades, não só no desempenho de funções cotidianas básicas à sobrevivência das comunidades indígenas, tais como estabelecer locais de moradia, transitar por rotas de hábito, acessar alimentos e água, como também são comumente acompanhadas por conflitos e prática de uma série de violências que atentam contra suas vidas.

No Acre, estado vanguardista na implementação de ações de conservação ambiental e de gestão territorial em terras indígenas, o desmatamento aumentou mais de 400% no acumulado entre julho de 2018 e julho de 2019, segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Para o atual governo, contudo, as informações baseadas em pesquisas científicas não merecem consideração. Foi o recado dado pelo presidente que contestou a ação do Inpe, órgão público federal que, há mais de trinta anos, realiza mapeamentos por satélites de áreas desmatadas no Brasil. Ao negar a confiabilidade das informações geradas pelo instituto, o presidente provocou uma crise institucional de repercussão mundial, que levou à exoneração do diretor do órgão.

Não foi um caso isolado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também foi alvo das contestações do mesmo presidente, que colocou em dúvida dados divulgados sobre a fome e o desemprego. As universidades vêm passando por um processo de desqualificação, enfraquecimento e supressão de autonomia. Assim vai se concretizando a intenção previamente anunciada de impedir a produção e circulação de informações e de conhecimento científico, o compartilhamento de saberes e o exercício de epistemologias críticas e de debates sobre problemas fundamentais que atravessam nossa sociedade. Vão se estrangulando as já tímidas iniciativas de preservação e valorização da memória, sempre que qualquer dessas atividades contrarie a orientação ideológica desse governo.

Enquanto isso, sua política segue privilegiando o setor do agronegócio e favorecendo o atual modelo econômico, que exige a ampliação contínua da escala de propriedade de terras para viabilizar o pagamento do preço cobrado por bancos e empresas estrangeiras que o financiam e dele se beneficiam. Política baseada em medidas que radicalizam a concentração de renda, o desemprego, o esgotamento da biodiversidade e a intoxicação da população por ingestão de venenos químicos. Desde o início do atual governo, houve uma exponencial potencialização do uso de agrotóxicos, 290 substâncias desse tipo já foram liberadas para utilização pelo mercado do agronegócio no Brasil, levando ao topo o ritmo de liberação de pesticidas, classificado como o mais alto já registrado para o período.

As áreas protegidas, dentre as quais se inserem os territórios indígenas e as unidades de conservação, seguem como principal entrave à consolidação desse projeto. O governo, então, age rápido para desobstruir o trânsito para o agronegócio e para a exploração ilegal e predatória de quaisquer recursos naturais presentes nessas áreas.

As declarações do atual presidente, por si só, têm estimulado desde o início de 2019 um aumento no número de invasões de terras indígenas por grileiros, garimpeiros e madeireiros. Casos desse tipo foram constatados nas terras indígenas Munduruku, Apyterewa, Cachoeira Seca e Waiãpi, onde uma liderança foi assassinada em decorrência de conflitos com garimpeiros. O laudo da perícia realizada nesse último caso, no entanto, questionado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), aponta um afogamento como causa da morte, negando indícios de assassinato.

A Fundação Nacional do Índio (Funai), sucateada, paralisada e sob o comando de um delegado da Polícia Federal indicado e apoiado pela bancada ruralista do Congresso, nada tem a dizer a respeito.

Acirra-se a condição de guerra contra os povos indígenas. Condição agravada no contexto atual, em que os representantes das mais altas instâncias do poder do Estado incitam pública e deliberadamente a prática de ilícitos que atentam contra territórios e vidas desses grupos.

No Mato Grosso do Sul, esse tipo de situação não é novidade. Mas a orientação do atual presidente da República, na busca da legitimação da violência contra os povos indígenas, tem contribuído para intensificar esse quadro. No início de agosto, policiais militares promoveram uma violenta ação no território reivindicado pelo Povo Kinikinau, a fim de coibir uma retomada promovida pelos indígenas. Bombas de gás lacrimogênio foram lançadas enquanto pessoas velhas descansavam e crianças brincavam. A ação feriu gravemente diversas pessoas, deixando a comunidade em estado de pavor. Nas redes sociais, circulou um áudio atribuído ao prefeito de Aquidauana, Odilon Ribeiro (PSDB), no qual se afirmava haver ordem de Brasília para o uso de violência. A mensagem falava em ordem de Brasília e em tirar por bem ou por mal. O prefeito não nega a manifestação, mas esclarece que suas palavras foram mal interpretadas, gerando mal-estar junto à comunidade indígena a quem trata com respeito e admiração.

Estamos mergulhados em um novo tempo de guerra. E a face que nos querem decretar é de morte. O Estado brasileiro silencia. Mas essa guerra não é silenciosa. As mortes provocam estrondos ensurdecedores. As vítimas gritam cada vez mais alto. Povos indígenas cantam em bom som a sua resistência. O presidente vai passar. Nós permaneceremos. Bolsonaro são quatro anos, ou mais, ou menos. Nós estamos há 519 anos em luta. Sobrevivemos e vamos seguir assim, eles dizem. Os governos se alternam. Começam e terminam sem voltar muita atenção a esses povos e suas especificidades. Abraçam ou rejeitam as democracias, de modos mais ou menos explícitos. E os povos indígenas resistem. Resistem a todos os ciclos de barbáries desde o início da invasão europeia. Subsistem. Existem. Perpetuam sementes fincadas no solo dessa terra, que é regada com sangue indígena e com sangue negro.

Nossa sociedade, colonizada ainda hoje, não diz muito sobre o assunto. Talvez nem se lembre bem do início do processo de sua própria formação, originada a partir do estupro de mulheres indígenas. E depois de mulheres negras... Talvez nem se acredite afetada por essa violenta mutilação do nosso tecido sociocultural. Falta memória. E sem memória não há identidade. Nossa crise é civilizatória.

Na última semana, Sônia Guajajara, uma das lideranças da mobilização que reuniu mais de 2 mil mulheres indígenas que marcharam até o Congresso Nacional, falou sobre a importância da presença indígena em Brasília para ensinar como se faz democracia. A marcha, que viveu sua primeira edição nesse mês de agosto, foi antecedida por um fórum, no qual diversos direitos e respectivas estratégias de implementação foram discutidos em um acampamento que contou com a presença de mais de 100 povos. O evento teve a participação de lideranças e parlamentares indígenas de outros países latino-americanos, demonstrando uma enorme capacidade de mobilização e articulação em torno da defesa de pautas indígenas, que, em última análise, coincidem com a defesa da vida na Terra.

Juntas, essas mulheres exerceram a força dos povos presentes e dos ancestrais encantados que, de muitas maneiras, também estavam presentes. Elas manifestaram ao Brasil e ao mundo sua disposição para seguir existindo. Para seguir em permanente luta em defesa do Território: nosso corpo, nosso espírito. Reafirmaram a ocupação de espaços de participação política, institucionais ou não, em defesa de seus territórios e povos.

Essas mulheres evidenciaram seu papel na defesa do que há de fundamental à sobrevivência da espécie humana, como a terra, o ar, a água e as florestas. Essas mulheres nos chamaram ao resgate de nossa identidade, intimamente ligada à vida e à terra. E nos conclamaram a não aceitar a face de morte que nos querem decretar.

A resistência desses povos, trazidos ao mundo por mulheres como essas, é milenar. Seus saberes oferecem um subsídio fundamental para que possamos enfrentar a colonialidade violenta e opressora que nos aprisiona ainda hoje. Nossa crise é civilizatória, e o reencontro com nossa memória e identidade é o caminho para que possamos começar a superá-la.


Maria Augusta Assirati presidiu a Funai (2013, 2014). É advogada, mestre em políticas públicas, e atua como consultora indigenista, e nas áreas de políticas sociais, participação social e direitos humanos

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