Universidades públicas lideraram 2 mil iniciativas
contra a covid-19, mas governo quer cortes de 32%. Fundo de desenvolvimento
científico perderá 4,8 bilhões; CNPq cortará mais bolsas. Não basta exaltar
ciência, é preciso lutar por investimentos
Em
maio deste ano [2020] escrevi ao Nexo Jornal como o
subfinanciamento e o desmonte da Ciência, Tecnologia & Inovação limitavam o
enfrentamento da pandemia da COVID-19. Ainda assim, esperançamos e
nos mobilizamos enquanto sociedade pela valorização da Ciência para superarmos
o cenário pandêmico — chegando a afirmar que a pandemia nos ensina que sem Ciência não há futuro.
Evidente que a comunidade científica ocupou a linha de frente junto aos
profissionais da saúde em todo país, porém, ainda assim, os cortes de bolsas
seguem ocorrendo e diversas pesquisas estão sendo interrompidas. Será que
realmente estamos aprendendo algo enquanto sociedade?
Desvalorização
em números
Em
todo país, as Universidades Públicas brasileiras foram responsáveis por mais de 2.000 iniciativas contra os efeitos da pandemia
da COVID-19, resultando em milhões de vidas beneficiadas direta ou
indiretamente pela vasta produção de equipamentos de proteção individual,
respiradores, além de inovações tecnológicas, estudos e pesquisas que não se
intimidaram em dar suporte à sociedade (mapeamento das iniciativas contra COVID-19).
Apesar
de todo empenho, os cortes para 2021 no Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovações (MCTI) chegam a 32%, se comparado a 2020. A perda
maior é de R$ 4,8 bilhões para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FNDCT), além de cortes em bolsas do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – como aponta a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC).
Destacando
as bolsas do CNPq como exemplo, a redução de recursos chega a 64% no
próximo ano. Na prática, o orçamento de 2021 prevê garantir apenas 4 meses de
bolsas de pesquisa, pois 60,55% dos recursos dependeriam de eventual e incerta
aprovação de créditos suplementares pelo Congresso. Atualmente, a Capes concede
bolsas a 100 mil pesquisadores e o CNPq financia 80 mil bolsas de pesquisa (Agência Senado).
Em
alguns estados a realidade não é diferente. Segundo levantamento (Folha de São Paulo), mais de um
terço dos estudos e pesquisas publicados em todo o país sobre a COVID-19
(38,7%) tiveram a participação das universidades públicas estaduais paulistas.
Ainda assim, o Governo do Estado tentou aprovar o trecho do PL 529/2020 que previa confiscar mais de
um bilhão de reais do caixa das universidades públicas estaduais paulistas, com
o argumento de promover “ajuste fiscal e equilíbrio das contas públicas”.
Mesmo
após mobilização da sociedade contra a tentativa de confisco, uma manobra no
Orçamento de 2021 também proposta pelo Governo do Estado – via PL 627/2020 — busca reduzir em 30% o
financiamento da Fapesp e da pesquisa científica estadual, cortando R$ 454,7
milhões de projetos científicos, inclusive em andamento. Tal valor, no entanto,
poderia pagar um ano inteiro de 54.465 pesquisas de iniciação científica (R$
695,70 por mês) ou 18.547 bolsas anuais de mestres e doutores pesquisadores (R$
2.043 por mês).
Sobre
as bolsas, aliás, há quem insista em uma falsa ideia de que são um “privilégio”
pago com dinheiro público. Pelo contrário, um pesquisador
universitário, por exemplo, recebe uma bolsa de R$ 400,00 mensais; valor que há
anos não tem reajuste, que não conta com décimo terceiro, licença, seguro de
vida, férias ou quaisquer direitos trabalhistas (Nexo Jornal). Além, tal pesquisador não pode
ter qualquer vínculo empregatício, sendo obrigado a se dedicar exclusivamente
para a pesquisa em que é bolsista. Isto é, cortes e contingenciamentos
significam, muitas vezes, a suspensão de toda e qualquer fonte de renda de um
pesquisador — além da interrupção da pesquisa.
Porém,
se as universidades estão sempre a postos e tais pesquisadores se dedicam
exclusivamente para a produção científica brasileira, por que tal empenho não
se reflete na construção de um orçamento que fortaleça e valorize a Pesquisa,
Ciência, Tecnologia & Inovação?
Quem
tem medo da Ciência?
Ciência
não se faz do dia para a noite, apenas para atender à um imediatismo de
ocasião. Não é possível, também, interromper uma pesquisa por falta de
financiamento e depois retomá-la no mesmo ponto. Com Ciência, Tecnologia &
Inovação é necessário investimento programático, estratégico, ininterrupto, de
qualidade e progressivo para que conhecimentos diversos estejam mobilizados e a
postos para com a sociedade nos mais diversos cenários.
Não
é possível também existir um suposto apoio de ocasião. Além, não basta apenas
dizer apoiar a Ciência, é preciso defender seu financiamento. Pois, ou se
valoriza na prática a Ciência como elemento central para a superação de crises
e plataforma para construção de uma sociedade mais saudável, ou será apenas
discurso.
No
entanto, não faltaram figuras públicas que aproveitaram da onda em ascensão
para fazer da Ciência um slogan ao buscar legitimar decisões em meio à crise.
Tão grave quanto polarizar com a cloroquina e desmobilizar uma eventual
vacinação contra COVID-19, por exemplo, é fazer uso oportunista da Ciência para
surfar na narrativa em alta e, ao mesmo tempo, usar o “ajuste fiscal e
equilíbrio das contas públicas” como desculpa para desmontar o financiamento
público da Ciência.
Até
porque, ainda que se ignore todo potencial e transformação que o acesso a
conhecimentos científicos traz para a sociedade, é impossível chamar Ciência
apenas de gasto e negar que investimentos em Ciência, Tecnologia & Inovação
trazem ganhos futuros, impulsionando toda uma cadeia produtiva e agregando
valor econômico ao país.
Porém,
enquanto tentam uberizar a Ciência brasileira, é preciso estar
atento e forte enquanto sociedade, pois ainda que a comunidade científica entre
em campo para estar na linha de frente, tal protagonismo não garante
automaticamente um orçamento justo. Além, não se trata de uma batalha única,
pois a disputa por uma sociedade que use a Ciência como plataforma de promoção
de justiça social deve ser travada diariamente por todos nós.
Assim,
a provocação está em construir uma mobilização contínua de valorização da
Ciência, da divulgação e da popularização científica em nosso cotidiano,
envolvendo organizações, associações e principalmente a sociedade como um todo
na discussão dos rumos e desafios do que é público e comum da pólis.
Até porque, se mesmo em meio a pandemia nos deparamos com ainda mais cortes e
com tamanha desinformação negacionista circulando para legitimar tal desmonte,
o que restará se não nos colocarmos diariamente no papel de defesa da Ciência
brasileira?
Ergon Cugler é pequisador da USP (Universidde de São Paulo), associado ao OIPP (Obsevatorio Interdiciplinar de Politicas Públicas) e ao Getip (Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública) da Each (Escola de Artes, Ciêncis e Humanidades), e também Representante da Sociddade Civil na Comissão da Agenda 2030 da ONU para São Paulo.
FONTE: Outras Palavras
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