Apesar do mal-estar provocado, o Massacre do Carandiru não colocou um ponto final nas intervenções de forças militares em revoltas prisionais. Ao contrário, impunidade dos responsáveis e a ausência de um debate político sobre os acontecimentos estimularam direta e indiretamente a militarização do sistema penitenciário
Por Fernando Salla e Marcos Alvarez
Em outubro de 2012, o Massacre do Carandiru completará vinte anos. Policiais militares do estado de São Paulo, em 1992, invadiram a Casa de Detenção, localizada na capital, no bairro do Carandiru, onde acontecia um motim de presos. O Carandiru, um dos maiores presídios do mundo naquela época, abrigava cerca de 7 mil presos em instalações com capacidade aproximada para 3.200. A intervenção foi sangrenta, e o saldo, de 111 presos mortos.
Esse lamentável episódio, que até hoje não tem nenhum responsável punido, abriu momentaneamente o debate público e político sobre o papel das forças policiais militares nos presídios. Por força de lei, como responsáveis pelo policiamento preventivo e repressivo nas ruas, as forças policiais militares sempre participaram das rotinas prisionais, tanto na segurança externa (muralhas) como na escolta, no momento da remoção de um preso de um local para outro. Excepcionalmente, elas atuam na contenção de tumultos e rebeliões.
Apesar do mal-estar provocado, esse massacre não colocou um ponto final nas intervenções desastrosas de forças militares em revoltas prisionais. Pelo contrário, a impunidade dos responsáveis e a ausência de um debate político sobre esses acontecimentos estimularam direta e indiretamente a militarização do sistema penitenciário, ou seja, a tendência de tratar as questões prisionais sobretudo como problemas de segurança e de contenção, inclusive com o fortalecimento da corporação policial-militar e de seus membros na definição e aplicação de rumos para a política punitiva e para a gestão do próprio sistema penitenciário.
Explosão de encarcerados
O Brasil teve um ritmo de encarceramento alucinante. Em 1993, eram 126.152 presos (taxa de 83,2 por 100 mil habitantes) e, em junho de 2011, chegou-se a 513.802 presos (taxa de 269,3 por 100 mil habitantes). O impacto desse crescimento sobre os sistemas prisionais dos estados foi considerável, uma vez que os investimentos em construção e aparelhagem dos estabelecimentos prisionais nunca seguiram esse ritmo, da mesma forma que a contratação de pessoal sempre esteve abaixo das necessidades.
O resultado desse descompasso é que o sistema prisional brasileiro tem sido marcado pelas angustiantes e rotineiras condições de encarceramento (como celas abarrotadas e insalubres). E impacta o noticiário internacional, ao exibir cenários de horror: no Presídio Urso Branco, em Porto Velho, em 2002, 27 presos foram mortos, muitos esquartejados; em 2007, na Cadeia Pública de Ponte Nova, em Minas Gerais, brigas entre presos provocaram a morte de 25, que foram também carbonizados.
Ainda que praticamente todas essas mortes tenham sido provocadas pelos próprios presos, e não por intervenção de forças policiais militares, não há como ignorar a omissão das autoridades ou sua conivência com essas barbáries em território sob sua jurisdição.
Aspectos da militarização
O intenso processo de crescimento da população encarcerada no Brasil e a correspondente degradação das condições de habitabilidade das prisões criam um campo propício para o aumento das tensões entre os presos, e entre estes e as autoridades. Algumas ações voltadas para garantir a ordem e a disciplina no interior das prisões têm sido merecedoras de atenção pelo grau de militarização que representam.
Embora não se possa afirmar que todos os estados brasileiros estejam seguindo essa tendência, em muitos deles há uma presença de policiais militares (e, em muito menor escala, de alguns membros do Exército) em vários setores e atividades. Para a segurança interna das prisões, são contratados policiais militares da ativa ou já aposentados, que atuam armados, contra todas as recomendações dos organismos internacionais de direitos humanos. Eles vigiam os presos, acompanham a distribuição da alimentação e seguem os encarcerados nos deslocamentos dentro do próprio presídio.
Além dessa presença militar direta no cotidiano das prisões, observa-se a contratação de muitos policiais militares para os cargos de diretoria das unidades prisionais. Postos relevantes na hierarquia das secretarias de estado (Secretaria da Justiça, da Administração Penitenciária...) são também ocupados por policiais militares.
Com muita frequência, as escolas penitenciárias recorrem aos policiais militares para a formação dos agentes em condicionamento físico e defesa pessoal. É mais expressiva essa participação quando os estados criam grupos especiais de intervenção em situações de motim, formados por agentes penitenciários que exibem fortes características das forças policiais militares, que podem ser observadas nos uniformes, nas viaturas e no modus operandi da contenção de rebeliões.
Por fim, em 2004, foi criada a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), no âmbito do governo federal, formada com representantes das polícias dos estados e destinada a servir como força especial em casos de necessidade de manutenção da ordem pública. Ela vem sendo acionada para manter a ordem nos presídios, ao lado das polícias Civil e Militar e dos agentes penitenciários, mas limitando-se ao perímetro externo das unidades prisionais.
Rumos preocupantes
Infelizmente, não existem dados produzidos regularmente sobre a militarização da segurança prisional, mas em 2003 a socióloga Julita Lemgruber conseguiu identificar que 45,8% dos estados brasileiros tinham policiais militares trabalhando na segurança interna de prisões e em postos de direção do sistema penitenciário. Já a presença de militares na direção de unidades prisionais foi constatada em 66,7% dos estados brasileiros. Nada indica que essa situação tenha se alterado nos dias de hoje, nem as autoridades parecem dispostas a abrir a discussão em torno de tal presença.
Essa militarização do sistema penitenciário brasileiro sugere muitas reflexões. Ela aponta para a incapacidade da sociedade brasileira de organizar um sistema penitenciário capaz de oferecer condições adequadas de encarceramento para os cidadãos que devem sofrer punição.
A ordem prisional interna é mantida não por atividades de trabalho, de formação escolar etc., mas pela força das armas ou, pior ainda, por ações coordenadas por grupos criminosos no interior dos presídios, o que representa o abandono dos princípios ressocializadores da pena privativa de liberdade e uma negação das diretrizes legais estabelecidas.
A expressiva presença de representantes das polícias militares nesse setor conta com a simpatia de parte da assim chamada opinião pública, uma vez que tem o apelo de um componente simbólico de disciplina, de capacidade de imposição de ordem nos presídios (embora nada disso efetivamente ocorra).
Não devem ser subestimados os problemas de segurança que envolvem qualquer sistema prisional e, de forma mais geral, a aplicação de punições legais numa sociedade democrática, mas tal presença tem também o significado do abandono dos princípios humanistas no âmbito da punição contemporânea.
Fernando Salla
Sociólogo, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV - USP)
Marcos Alvarez
Professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador do NEV-USP
FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil
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