segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Pensar uma política que supere o fordismo

Jovem pensador político italiano sustenta: declínio da representação reflete mudanças sociológicas profundas. Estado e partidos perderão seu monopólio. Mas que virá depois?

Por Christophe Ventura

Desde 2011, diversos choques contestatórios percorrem o mundo em diferentes regiões: sul da Europa, mundo árabe, América do Norte – Canadá e Estados Unidos – Turquia, América do Sul e Ásia.

Além das especificidades de cada um, todos esses movimentos partilham de pontos comuns: eles se ampliam, rejeitam as políticas de austeridade, a corrupção e criticam os sistemas políticos e as ações (e até a falta delas) dos Estados.

Nesse contexto, os partidos políticos, principalmente os do governo (tanto os de direita como os de esquerda), são interpelados e vilipendiados – para não dizer jogados ao descrédito público. Esta “crise da política tradicional” ja foi largamente comentada e analisada.

É provavel que tenha atingido seu paroxismo na Itália, onde engendrou uma nova situação: aumento generalizado (sociológico e territorial) da abstenção eleitoral; desaparecimento, nesse contexto, da esquerda proveniente do movimento operário abaixo do limiar de credibilidade; erosão dos partidos do sistema; enrijecimento ideológico das direitas; escorregão neoliberal das forças social-democratas; emergência do movimento social/eleitoral anti-partidos tradicionais Movimento Cinco Estrelas – (M5S); multiplicação de movimentos sociais locais (contra projetos inúteis, por uma redefinição da democracia local, etc). [1]

Em uma obra não traduzida – Finale di partito [2] (Fim de Partido [3]) – o intelectual e cientista político italiano Marco Revelli se interroga a respeito destes fenômenos contemporâneos. Ele analisa, em particular, essa crise de confiança dos cidadãos nos partidos políticos.

Para ele, a forma partidária herdada da segunda revolução industrial casa harmoniosamente com a organização dos grandes sistemas de produção – as fábricas – “centralizados e burocratizados, mecanizados e padronizados, rígidos e rigorosamente territorializados, pensados pela programação e planejamento de um longo período”. Tratava-se então de operar na conscientização e na integração políticas de novas massas de trabalhadores recentemente passados do estado de multidões camponesas, linguísticas e culturais ao estado de classe operária. Essa tarefa necessitava, no contexto de emergência do capitalismo industrial, de uma referência de organização vertical, adaptada às estruturas econômicas e sociais e baseada no princípio de delegação e de representação. Tratava-se de organizar a luta no seio das unidades de produção que engendravam as relações de produção territorializadas. Assim, “o partido de massa era (..) o microcosmo no qual se refletia o microcosmo social paralelo (…). Ele era destinado a refletir, no espaço parlamentar, o jogo conflituoso (e de negociação) entre os grupos sociais unidos” e a oligarquia. Neste contexto, o “representante” beneficiava da confiança do “representado”, com quem ele partilhava a proximidade territorial e, por vezes, o espaço de trabalho. Assim, a “máquina política” respondia à máquina capitalista.

O partido inspirava-se igualmente, por sua organização, no modelo de Estado e de administração que ele ambicionava conquistar.

O fim do modelo fordista de produção, a internacionalização e a segmentação de cadeias produtivas, o “livre” comércio, a financeirização da economia capitalista, a emergência da economia desmaterializada e de serviços foram, segundo o autor, o início de uma desestruturação progressiva e irreversível dos modos de organização do trabalho e de modelos de classes.

A erosão da homogeneidade sociológica e da classe de trabalhadores e o aumento do nível educacional tinham gerado a aparição da “política líquida” [4], espelho e produto da diversificação de fluxos econômicos e sociais na esfera política. Nós assistimos assim à uma “liquefação do corpo eleitoral” vindo da fragmentação de “pertencimentos sociais estáveis”. Para Marco Revelli, “o partido político ‘clássico’ (…) era a forma mais adaptada para responder à uma demanda social tipicamente “materializada” (…) de eleitores mecanicamente agregados em grupos relativamente homogêneos de populações largamente definidas por seus papéis produtivos respectivos e caracterizados por um nível médio ou baixo de escolaridade. Tratava-se da forma própria de representação na modernidade industrial”.

Agora, a família de trabalhadores é múltipla e as novas gerações vindas dos anos 1970, 1980 e 1990 têm características sociopolíticas diferentes. Não são mais os trabalhadores manuais orientados pelas grandes organizações sindicais e políticas que pesam na dinâmica das relações sociais, mas os estudantes, os técnicos, trabalhadores intelectuais mobilizados na economia dos serviços (setor terciário), o telemarketing, etc. Esses formam os novos batalhões de classes média-baixas urbanas e precárias que têm acesso aos ganhos públicos e ao emprego, mas de maneira intermitente.

Mesmo que sociologicamente minoritários, muito mais fragmentados e heterogêneos que seus “descendentes”, “mais aculturados e zelosos por  sua própria independência, mais insubmissos à relação comando-obediência”, eles constituem os grupos mais ativos nas mobilizações sociais e os mais diretamente associados às novas formas sócio-econômicas desencadeadas pela mutação do capitalismo e de suas contradições. Ainda assim, neste contexto, “sua instrução elevada é correlacionada às formas de ações políticas não convencionais” [5], à rejeição dos quadros organizacionais e ideológicos das formas políticas existentes, à reivindicação de uma ação “apolítica” – uma vez que, na verdade, seus slogans e valores são hiper-políticos (probidade, respeito da vontade popular, reivindicação em favor dos serviços públicos e de bens comuns, limitação do poder monetário, demanda de uma nova ordem da sociedade, etc.). Seria uma forma “sub-política” da política ou da forma “política da segunda modernidade”. [6]

Qualquer que ela seja, para o autor, sabe-se que o “controle monopolístico do espaço público pelos partidos está terminado” . Assim como o Estado nacional, que imitaram na sua organização, os partidos exercerão uma “soberania limitada” na sociedade.

Nesta, vários poderes coabitam atualmente: o poder financeiro, o poder político (rebaixado e vítima de uma crise de confiança), o poder midiático (amplamente controlado pelo financeiro), o poder do corpo social (capaz de interferir esporadicamente com o poder político e de perturbar o consenso das oligarquias), o cyberpoder (que mobiliza o conjunto de atores de um campo inédito).

Na sua parte, os novos atores da contestação serão a questão de uma amarga e determinante batalha ideológica futura entre direita e esquerda.

Nesta sequência, uma nova dialética entre os partidos políticos da transformação e os novos movimentos da sociedade deve imperativamente se inventar.

NOTAS

[1] Sobre todos estes assuntos, ler o site www.democraziakmzero.org

[2] Marco Revelli, Finale de partito , Giuli Einaudi editore, Turin, 2013.

[3] Este título é um jogo de palavras construído a partir da expressão “Finale di partita”(Fim da partida) que é igualmente o título de uma peça do dramaturgo Samuel Beckett

[4] O conceito de “vida líquida” foi teorizado pelo sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman. Este último continua pouco conhecido na França ou em alguns países onde suas obras foram, apesar de tudo, trazidas. Nós citamos, entre outros: O custo humano da mundialização (Hachette, Paris, 1999), A vida em migalhas (Hachette , Paris, 2003), A Vida Líquida (Rouergue, Chambon, 2006) e A decadência dos intelectuais. Dos legisladores aos intérpretes (Actes Sud, Arles, 2007). Sobre seu pensamento, ler Ignacio Ramonet, “Para um outono quente na Espanha?”.

[5] Citação pelo autor do cientista político estadunidense Ronal Inglehart

[6] Segundo as expressões do sociólogo alemão Ulrich Beck retomados pelo autor.

Traduzido por Cristiana Martin


FONTE: ControVérsia

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