"O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada." - George B. Shaw
Por Aluizio Moreira
É evidente que o ensino superior deve se voltar para a formação daquele que irá, ao concluir a graduação, se dedicar a uma atividade profissional. No entanto há alguns problemas que surgem desta prática do professor em sala de aula, que se preocupa unicamente com a formação do profissional, do especialista. A questão se complica, quando o professor, sendo ele mesmo um especialista, não percebe, não entende, não conhece nada para além da sua limitada especialidade.
O trabalho científico que o profissional irá exercer, está na razão direta não só das necessidades condicionadas pelo grau de desenvolvimento da sociedade, como na expectativa da criação de novas condições econômicas e sociais que destruam os obstáculos impostos à satisfação das necessidades coletivas. Só que geralmente nos cursos de graduação, o aluno não é levado a refletir sobre sua área de conhecimento, nem sobre os condicionantes sociais e políticos de sua atuação como profissional. Não existe a preocupação, por parte dos professores, com algumas exceções, de provocar uma reflexão teórica, crítica, sobre a atividade que o educando irá futuramente exercer na sociedade. O que existe é uma grande dissociação entre o que se ensina e a realidade objetiva. Esta é ignorada, ou quando muito, apresentada sem problemas a discutir, nem interrogações à espera de respostas.
Embora exista entre os docentes até quem defenda que é de fundamental importância formarmos não apenas especialistas, mas ao mesmo tempo profissionais portadores de uma cultura geral, de um conhecimento mais amplo, e que as diretrizes curriculares elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação apontem na mesma direção, na prática isso não acontece sempre ou é desvirtuado.
Não se trata de dar uma “pincelada” de cultura geral, incluindo na grade curricular algumas poucas disciplinas como antropologia, filosofia, sociologia, num universo em que a grande maioria das disciplinas continua sendo disciplinas específicas, profissionalizantes. Ou seja, no fundo, continuamos tentando formar apenas especialistas, que perdem a noção, a dimensão do todo. Ou então, no caso inverso do especialista, mas de igual modo um despropósito, considera-se o professor polivalente, com condições de assumir em qualquer semestre letivo, por qualquer motivo, disciplinas tão diferentes como Ciência Politica, Economia, História, Estrutura Empresarial e Metodologia da Pesquisa. E o pior é que algumas diretorias de Faculdades consideram esta pratica, erroneamente, como inter-transdisciplinaridade. Para infelicidade dos futuros profissionais.
Não raramente, pesquisadores, homens de ciência, aplicam com maestria e competência, os últimos resultados alcançados pela Matemática, pela Biologia, pela Física, pela Sociologia, pelo Direito, pela Administração, etc. e pelas suas mais minuciosas e atomizadas especialidades, mas ignoram as circunstâncias em que o conhecimento científico as produziu, a teoria que as fundamentou, e muito menos a serviço de quem esses avanços se constituíram, e quais as classes sociais que serão por elas beneficiadas. Ou não.
Nas palavras de Botinha (2011), Diretor do Grupo Selpe Recursos Humanos, no artigo “O valor de um profissional bem qualificado”,
. . .essa qualificação exigida não é apenas ter no diploma cursos reconhecidos por renomadas instituições, inglês fluente e ampla experiência. Além dessa capacitação necessária, manter-se atualizado também é essencial para um bom profissional. E é preciso considerar que o mercado de trabalho está em busca de profissionais multidisciplinares, com visão ampla do mundo e bagagem cultura.
No mesmo sentido comenta Chiavenato (1), um dos mais repeitados autores na área de Administração de Empresas e Recursos Humanos, no pronunciamento sobre “Estrategistas versus Especialistas”, quando afirma, com outras palavras, que “não se precisa mais de especialistas precisa-se de estrategistas, pessoas que saibam pensar.[. . .] A diferença entre estrategista e especialista, é que o estrategista não vê as ruas somente, vê as cidades com as ruas junto, não vê apenas as árvores, vê a floresta inteira”.
Para nós, o ensino superior não deve orientar/formar o futuro profissional nas limitações do aprender fazer, mas fundamentalmente aprender a pensar, criar condições para que o futuro profissional não seja um mero repetidor dos pensamentos dos outros, nem tampouco um simples executor, que mecanicamente seja capaz de montar uma engrenagem qualquer.
Se a ciência não avança pela espontaneidade, nem pela inspiração, o homem não existe no vazio, desvinculado da natureza e da sociedade. A ausência de uma reflexão crítica que implique necessariamente no não entendimento do mundo, impede-o de ultrapassar os particularismos para atingir o universal. Torna-se prisioneiro do reducionismo, perde a visão da totalidade e de si mesmo como parte dessa totalidade.
O homem como “um ser no mundo e com o mundo”, deve saber refletir criticamente sobre a realidade histórica na qual está inserido e na qual deverá exercer sua profissão, o que implica em praticar o conhecimento como compreensão do mundo, pressuposto para sua transformação (Cf. LUCKESI et al. 1991, p. 47-59).
Na verdade o que prepondera no ensino superior é uma visão compartimentada das coisas. Tudo colabora para que se perca a visão da totalidade do mundo e da sociedade, como se fosse possível não estar no mundo nem na sociedade, ou seja, em nenhum lugar. É como se nem um nem outro existisse. Procura-se a todo custo mostrar que a totalidade é uma criação da mente, que a única coisa real é a parte. Mas as partes não existem sem o todo. Ou seja, uma das condições da existência das partes, é ser parte de um todo. Senão não seriam partes.
Essa questão de ver as coisas compartimentadas, atomizadas, é fruto de toda uma concepção do mundo que herdamos culturalmente e que a escola reforçará. Não somos conduzidos/despertados para ver as coisas de forma sistêmica, interativa, numa multiplicidade de ações recíprocas e em constante movimento e transformação. Não fomos orientados no sentido de entendermos os objetos e fenômenos nas suas diversidades e contradições, que formam uma unidade apesar das diversidades e contradições.
Edgar Morin, no livro “A cabeça-feita”, já na sua 18ª edição brasileira, analisando a situação da educação na França, comenta que na escola, na universidade é comum docentes e discentes tratarem as disciplinas como campos estanques, sem muita ou nenhuma ligação uma com as outras. Para ele, no entanto, o caráter multidimensional, nos permite hoje admitir que, sem desconhecermos as suas particularidades, há uma convergência de objetos do conhecimento que os aproximam, constituindo um todo articulado: Geografia, História, Economia, Sociologia, Direito, Ecologia, Antropologia, Cosmologia, Psicologia. (MORIN, 2010, passim).
Considera, não muito diferentemente do que constatamos, que os maiores problemas que se enfrenta no ensino é a hiperespecialização e o acúmulo meramente quantitativo de informações.
A “hiperespecialização” é considerada como um verdadeiro obstáculo ao claro entendimento dos fatos e fenômenos, pois não permite que se tenha uma visão global das coisas, na medida em que prevalece os particularismos, a fragmentação das realidades e dos problemas.
Essa forma compartimentada de tratar os fatos e fenômenos
atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiência para tratar nossos problemas mais graves constitui um do mais graves problemas que enfrentamos. (MORIN, 2010,14)
Decorrente dessa “hiperespecialização”, e como parte dela, privilegia-se a mentalidade reducionista em que o saber se limita ao saber especializado, contraponto do saber globalizante, tornando o individuo incapaz de relacionar a parte ao todo, ou de apenas considerar as partes. Citando Pascal:
Sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes. (PASCAL apud MORIN, 2010, p. 25).
Outro comportamento muito vulgarizado nas escolas e nos cursos superiores, e igualmente criticado por Morin, é a prática da acumulação de informações, do conhecer, ou seja, “a cabeça cheia”, sem qualquer método que organize, que sistematize o pensamento, sem quaisquer reflexões críticas.
Evidente que a função da educação, do ensino, não é transformar o estudante num depositário de dados e informações dispostos para serem utilizados a qualquer momento como arquivo à espera de ser acionado.
É fundamental que a construção do saber se constitua na resolução de problemas, no desenvolvimento da reflexão crítica, na reorganização do pensamento, diante das ideias, das teorias, da critica, dos discursos já elaborados por terceiros.
Para Severino no que refere à educação universitária, há outro aspecto que raramente é enfrentado pela comunidade acadêmica. Diz o autor:
A educação universitária tem um outro objetivo, tão relevante quanto o da formação cientifica: é o objetivo da formação política da juventude. Com efeito cabe a ela desenvolver a formação política, mediante uma conscientização crítica dos aspectos políticos, econômicos e sociais da realidade histórica em que ela se encontra inserida. A educação superior brasileira enfrenta esta questão fundamental: formar politicamente uma juventude pela criação de uma nova consciência social capaz de mobilizá-la, não só para uma atuação concreta e uma participação política no processo histórico real, mas também para um compromisso mais radical de se construir um novo modelo de civilização humana para o Brasil. (SEVERINO, 1996, p. 17)
Com certeza algum leitor paladino da neutralidade do cientista, irá se contrapor a essa afirmativa, alegando que não temos que “misturar” conhecimento científico com política (2). Mas o cientista é também cidadão. E como tal, deve ter uma consciência clara dos problemas enfrentados pela sociedade, que o atinge não só como cidadão, mas como homem de ciência e como trabalhador.
Não é outra a conclusão de Pinto (1985, p. 535):
A consciência do pesquisador científico alcança o mais alto nível da sua percepção de si ao fazer-se deliberadamente uma consciência política. Para essa finalidade não lhe basta contribuir com as descobertas que arranca do seio da natureza, e que irão beneficiar o homem; é preciso que contribua igualmente, pelos meios políticos que estejam ao seu dispor ou que invente, para humanizar a sociedade, participando da luta pela solução dos seus problemas, pela supressão das contradições sanáveis, as que opõem os homens uns contra os outros.
Como cidadão, o homem de ciência “não pode nem prescindir ou desinteressar-se da sociedade nem aceitá-la passivamente tal qual existe ao seu redor, com os conflitos, imperfeições e injustiças que nela se encontram [pois] “dado o papel mediador representado pela sociedade, e a função de que está incumbido pela comunidade, tem por objetivo mediato a transformação da sociedade e a humanização da existência” (ibid., p. 534).
Para os autores de “Fazer universidade: uma proposta metodológica”,
A universidade que não toma a si esta tarefa de refletir criticamente e de maneira continuada sobre o momento histórico em que ela vive, sobre o projeto de sua comunidade, não está realizando sua essência, sua característica que a especifica como tal crítica. Isto nos quer dizer que a universidade é, por excelência, razão concretizada, inteligência institucionalizada, daí ser, por natureza, crítica, porque a razão é eminentemente crítica.” (LUCKESI et al. 1991, p.41)
Mas o que fazemos nós, professores universitários, para colaborarmos com o desenvolvimento da consciência crítica dos nossos educandos, futuros profissionais?
Com algumas exceções, na medida em que nos limitamos a apenas transmitir conhecimentos como se isso fosse o essencial no processo ensino-aprendizagem, falhamos enquanto educadores, sobretudo porque não contribuímos para desenvolver nos nossos alunos, a capacidade de pensar. Na verdade transmitimos
um mundo já pensado, já interpretado, pronto para uso e consumo: história interpretada, sociedade organizada, normas estabelecidas de moral, leis de direitos codificados, religiões estruturadas, classificação e virtudes dos alimentos especificados para cada idade, regulamentos para dirigir carro, programas escolares, tudo pronto. Mas a geração de hoje não pode resignar-se a um conhecer o mundo de segunda mão, não pode julgar-se dispensada de pensar naquilo que já pensaram por ela e definiram sem consultá-la. (RUIZ, 2006, p. 90-91)
Ou seja, não abrimos espaços para que nossos estudantes rediscutam a história, repensem a sociedade, reinterpretem a moral, reavaliem as leis. . . apenas lhes reincorporamos nossos saberes como verdades eternas e indiscutíveis.
Notas:
1)Trecho da entrevista de Idalberto Chiavenato à TVBV, Santa Catarina, afiliada da Rede Bandeirantes de Televisão. Com o titulo “Estrategistas versus Especialistas”, o trecho foi disponibilizado pelo You Tube no vídeo http://youtu.be/jxI0jideGBs
2)Para reforçar a importância da política, mesmo para o homem comum, é aconselhável, para quem ainda não conhece, ler “O analfabeto político” do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, forçado a exilar-se em diversos países para livrar-se da perseguição nazista.
REFERENCIAS
BOTINHA, Hegel. O valor de um profissional bem qualificado. Publicado em 23 de agosto de 2011 no site da Revista eletrônica Administradores. com. Disponível em <http://www.administradores.com.br/informe-se/carreira-e-rh/o-valor-de-um-profissional-bem-qualificado/47380> Acesso em 18 jun. 2012.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6.ed., São Paulo: Cortez, 1991.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.Tradução: Eloá Jacobina, 18.ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
RUIZ, João Álvaro. Metodologia cientifica: guia para eficiência nos estudos. 6.ed., São Paulo: Atlas, 2006.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 20.ed., São Paulo: Cortez, 1996.
Leia "O especialista diante da complexidade do mundo 2
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