Por Marcelo Badaró Mattos
Desde 1994, as eleições presidenciais no Brasil são polarizadas por disputas entre os candidatos do PSDB e do PT. Após doze anos à frente do governo federal, o PT chega novamente a um segundo turno contra uma candidatura do PSDB. Nada de novo no ar?
Há uma inegável continuidade de um quadro partidário que multiplica legendas, mas tende a uma polarização bipartidária, determinada pelas características de um regime democrático que restringe a participação às eleições e transforma o processo eleitoral em uma disputa pautada pelos “investimentos” em marketing, cuja eficácia depende da “generosidade” das empresas que “doam” recursos à campanha.
Há, no entanto, algo de diferente nessas eleições. Guilherme Boulos, em instigante artigo publicado na Folha de São Paulo, identifica uma “onda conservadora”, que associa ao fato de os campeões de voto para a Câmara Federal serem figuras nefastas da vida política brasileira: defensores da pena de morte, da redução da maioridade penal, viúvas da ditadura, que se esmeram em representar o conservadorismo homofóbico, racista e elitista.
É com base no mesmo vento à direita que se pode explicar o crescimento, na reta final do primeiro turno, da candidatura de Aécio Neves, do PSDB, que de fato representa hoje o perfil eleitoralmente viável das tendências mais reacionárias da classe dominante brasileira. Eleitoralmente tão viável que conquista votos entre setores da classe trabalhadora urbana, apresentando-se como representação dos anseios por “mudança”.
Boulos é particularmente feliz em apontar como tais anseios por mudança podem ser associados ao clamor das ruas nas jornadas de junho de 2013. Não se trata de fazer uma associação apressada e dizer que, em meio às disputas políticas que atravessaram aquelas manifestações, o reacionarismo das classes dominantes tenha predominado claramente. Pelo contrário, as jornadas acabaram por impulsionar movimentos grevistas, ocupações urbanas e outras formas de luta que podem ter um efeito multiplicador de médio prazo na correlação de forças sociais, tão desfavorável à classe trabalhadora nas duas últimas décadas. Mas, justamente porque as jornadas abriram um novo horizonte na luta de classes, as forças da reação se rearmaram e puseram-se em posições mais abertamente agressivas.
A ideia do ‘mal menor’ se desgastou
Nesse quadro, a proposta de conciliação de classes do discurso petista parece não dar conta de simular atender ao clamor de mudanças expresso nas ruas e, ao mesmo tempo, manter a confiança dos setores do capital que objetivamente representa no governo, em torno de sua eficácia na contenção das lutas sociais. Aí pode estar uma chave para compreendermos o inegável avanço conservador no quadro eleitoral.
É frente a essa realidade desafiadora que a esquerda socialista necessita se posicionar. Os posicionamentos mais simples passam por recomendar o voto (contra Aécio; em Dilma, com ou sem crítica; nulo; ou qualquer outra recomendação). Acredito, porém, que, para que o debate em torno a esse ponto possa ser mais interessante e pedagógico, para o setor mais organizado da classe e o eleitorado dos partidos de esquerda, a simples recomendação de voto é insuficiente como política de esquerda.
De fato, há razões objetivas muito fortes para se combater a candidatura de Aécio Neves. Os(as) militantes que viveram ativamente a década de 1990 recordam vivamente a amplitude da política privatista, a submissão ao setor financeiro e às diretrizes do FMI/Banco Mundial, o avanço do desemprego, a retirada de direitos sociais, os ataques aos sindicatos, o desmanche dos serviços públicos, em particular na saúde e educação, a conivência com os assassinatos de trabalhadores rurais sem terra, os avanços na militarização e criminalização no trato com os setores mais organizados, assim como os mais precarizados da classe trabalhadora, entre muitas outras faces da caixa de Pandora neoliberal dos dois mandatos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso. Como este artigo é escrito para leitores de esquerda, acredito que não é necessário ir além para caracterizar o caráter reacionário da candidatura tucana.
Mas isso não pode bastar para taparmos o nariz e recomendarmos o voto no “menos pior”, representado pelo PT de Dilma. Fazer isso, assim sem mais, é simplesmente passar uma borracha sobre tudo aquilo que a esquerda criticou nos governos do PT nos últimos anos.
Afinal, se a maior parte do serviço já havia sido cumprida pela privataria tucana, o PT continuou privatizando (vide aeroportos, leilões de petróleo, PPPs variadas etc.), assim como continuou governando para o grande capital, com a manutenção de metas elevadas de superávit primário, juros altos, privilégios e subsídios ao setor industrial de bens duráveis (com presença predominante do capital estrangeiro) e ao agronegócio dirigido pelas multinacionais do agrotóxico e dos organismos geneticamente modificados. No plano dos direitos sociais, é preciso sempre lembrar que o primeiro mandato petista à frente do governo federal se iniciou com Lula utilizando-se do “lubrificante monetário” para garantir uma base aliada no Congresso disposta a aprovar a toque de caixa a sua (contra)reforma da previdência.
Ao que se seguiu uma (contra)reforma trabalhista fatiada, que continua em curso. Foi com a supervisão geral, ou a participação direta (com envio de tropas militares treinadas no Haiti), do governo federal petista que o processo de criminalização e militarização da gestão da questão social nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras avançou para o modelo consagrado no Rio de Janeiro com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). E quando duas senhoras à minha frente apontam para uma manchete de jornal sobre a corrupção na Petrobrás e balançam a cabeça, como que a dizer “no PT não voto”, posso avaliar criticamente o uso eleitoral dessas denúncias, mas nunca poderia negar que os governos petistas foram atravessados pela corrupção. E governar exatamente como os partidos da ordem sempre fizeram no país tem um custo enorme do ponto de vista da consciência social.
Afinal, como confiar nos partidos de esquerda se quando aquele que representava as lutas da classe trabalhadora brasileira (ao menos na década de 1980), quando chegou ao poder, fez “tudo igual”? Daí porque sejam ridículas as tabelas e quadros que vejo circular nas redes sociais fazendo um ranking da corrupção no Brasil recente, medida em bilhões de reais, para tentar convencer de que a corrupção nos governos petistas foi menor que nos governos do PSDB. A que ponto chegamos...
O que poderia levar a um voto no segundo turno?
Resta, para a defesa do voto em Dilma, o “reformismo quase sem reformas” (para usar a expressão de Valério Arcary): as políticas sociais compensatórias e focalizadas, mas de massas, como o Bolsa Família; o acesso ao mercado pelos setores mais pauperizados da classe, via essas políticas, pequenos reajustes reais do salário mínimo e expansão do crédito; a expansão do sistema federal de ensino (escolas técnicas e universidades) e a manutenção de patamares menores de desemprego e maiores de formalização. Também esses argumentos pró-voto no “menos pior” precisam ser problematizados.
Após duas décadas de retirada de direitos e desemprego amplo, o custo da força de trabalho caiu a ponto de compensar para o capital empregar formalmente novos contingentes de trabalhadores, ainda assim precarizados, pelos mecanismos da terceirização ou pelo simples fato de que a grande maioria dos novos empregos gerados paga até 1,5 salário mínimo. Algo que dificilmente se sustentará indefinidamente com o agravamento da crise capitalista que se desenha para o próximo período.
Por outro lado, não há razões objetivas para que um eventual governo tucano recue nas políticas sociais compensatórias, afinal o PT demonstrou que o Banco Mundial tinha razão e é muito barato conter os efeitos sociais mais perversos das políticas neoliberais com programas como o Bolsa Família. A ampliação do poder de consumo via crédito representou mais uma enorme fatia de mercado para o sistema financeiro e contribuiu (subsidiariamente à política de juros elevados, alimentando uma dívida pública que remunera o capital portador de juros em escala astronômica) para os maiores lucros da história dos bancos atuantes no Brasil.
E, vindo do meio universitário, bastante suscetível ao apelo corporativo, lembro que a expansão (muito precária no que diz respeito às condições de trabalho/estudo) das instituições federais de ensino se fez após a garantia de subsídio milionário ao setor privado (via bolsas do PROUNI e empréstimos para pagamento das mensalidades do FIES), que se ampliou até o limite do “mercado educacional”, continua a ter um crescimento das matrículas maior que o setor público e hoje abriga quase 75% dos estudantes do nível superior.
Aliás, para os que se preocupam com os concursos públicos – congelados à época dos governos do PSDB e de fato reabertos nos governos petistas -, foi o presidente da CAPES do governo Dilma quem anunciou a intenção de precarizar a contratação de docentes para as federais, através de Organizações Sociais (OS), eufemismo para terceirização com gestão privada da força de trabalho, em modelo semelhante ao já executado por esse governo nos hospitais federais, via Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
Ainda que a velha fórmula da “farinha do mesmo saco” seja simplista demais para avaliar as diferenças entre as gestões tucanas e petistas, o fato é que uma análise política baseada em critérios de classe, como bem recomenda Valério Arcary em artigo publicado no Correiro da Cidadania , deve destacar que ambos os partidos governam de acordo com os interesses das classes dominantes.
Resta saber se a opção das principais frações da classe dominante, para conduzir os “ajustes” já anunciados por ambas as candidaturas, será pelo PT, com sua capacidade (abalada) de amortecer conflitos, ou pelo “estilo” mais truculento dos tucanos. Teremos instrumentos precisos de medição desse dilema no balanço final do financiamento das campanhas. No primeiro turno, com três candidaturas com chance, Dilma ganhou nesse quesito. Temos então argumentos mais que suficientes para recomendar o voto nulo?
Estabelecer pautas mínimas
Para o leitor que chegou até aqui, peço um pouco de calma e desculpas pela dimensão deste texto, mas lembro que fugir às saídas mais simples exige argumentar com mais elementos. Sim, há argumentos mais que objetivos para a indicação do voto nulo. Mas, se a recomendação for a única proposta nessas semanas finais da campanha eleitoral, como as organizações da esquerda socialista vão manter o diálogo com aqueles (e por onde ando são muitos) que, até o fim do primeiro turno, circulavam com adesivos e material de campanha do PSOL, PSTU e PCB e hoje vestem a camisa da candidatura Dilma, ainda que sob a sintomática simbologia das imagens de uma jovem guerrilheira (simulacro do desejo irrealizável de um voto à esquerda)? E como responderão aos setores bem mais amplos da classe trabalhadora que, na ausência da mudança de fato, acabarão votando em um Aécio disposto a vestir a fantasia de Marina e sua “nova política”?
Neste ponto, temos que reconhecer: a apropriação do discurso da “mudança” pela direita mais reacionária é resultado, principalmente, de uma demonstração inequívoca por parte do PT de que continua a governar para a manutenção da ordem, mas a esquerda socialista também tem sua parcela de responsabilidade. Ao não efetivarem, no plano nacional, desde as “jornadas de junho”, uma Frente de Esquerda reunindo PSOL, PCB, PSTU, como também os movimentos sociais mais combativos da classe trabalhadora, essas organizações perderam a oportunidade de aproveitar o momento eleitoral para apresentar uma alternativa de mudanças pela esquerda que pudesse ter uma audiência mais ampla, disputando de fato a consciência social. Não que o resultado eleitoral pudesse ser muito diferente, mas por certo que, atuando unitariamente, nossa capacidade de intervenção se potencializaria.
Oportunidade perdida. Mas, ainda não totalmente. Com uma boa dose de disposição para a unidade, pode ser possível para a esquerda socialista fazer política neste momento, indo além da simples indicação de voto. Em artigo para a Revista Espaço Acadêmico, Lúcio Flávio Almeida propõe um movimento pela esquerda de indicar o voto em Dilma, desde que atendida uma pauta mínima. É um excelente ponto de partida para discussão. Valério Arcary, em sua defesa do voto nulo, apresenta uma lista semelhante de propostas que o PT não se dispõe a discutir e que poderiam levar a justificativas mais consistentes para um apoio da esquerda a Dilma. Reproduzo, como referência, os exemplos de pauta apresentados por Arcary, que afirma que a situação seria diferente se:
“Dilma estivesse disposta a fazer uma reforma fiscal com impostos rigorosos sobre as grandes fortunas, manifestasse a intenção de romper com as chantagens do rentismo e, apoiada na mobilização dos trabalhadores, realizar uma auditoria e suspensão do pagamento da dívida pública. Se estivesse comprometida em garantir um aumento de verdade no salário mínimo, ou uma política de combate à privatização da educação, da saúde, do transporte urbano e da segurança. Se houvesse uma mínima possibilidade de que Dilma tomasse a iniciativa pela legalização do aborto, pela criminalização da homofobia, pela legalização do consumo de psicotrópicos. Se Dilma anunciasse a retirada das tropas do Haiti”.
Como Arcary e como Guilherme Boulos, no artigo já citado, também não acredito que o PT vá “apontar o rumo de transformações populares para o próximo mandato, o que não fez nos últimos doze anos”. No entanto, entendo que teria um efeito pedagógico exemplar, se os partidos de esquerda e as organizações mais combativas do movimento social se reunissem nos próximos dias e apontassem uma pauta de compromissos mínimos que viabilizaria o voto em Dilma no segundo turno das eleições. Para o processo eleitoral, tal procedimento teria um efeito limitado, sinalizando o que seria uma resposta realmente pela esquerda para o anseio por mudanças.
Ainda assim, diante da (falta de) resposta petista a tal pauta, os que apontam o voto em Dilma poderiam ir além do voto “útil”, em direção de fato a um voto “crítico”, assim como os defensores do voto nulo teriam ainda mais elementos para reforçar sua posição. De qualquer forma, um movimento nessa direção poderia ter uma importância muito mais ampla, contribuindo para construir a necessária frente de forças políticas e sociais que possa dar suporte para as lutas da classe trabalhadora no próximo período, no qual os “ajustes” já anunciados indicam tempos ainda mais difíceis, qualquer que seja o resultado das urnas.
Marcelo Badaró Mattos é historiador
FONTE: Correio da Cidadania
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