Daniel Buarque – Centenas de milhares de pessoas são esperadas em protestos contra a corrupção e o governo Dilma por todo o país neste domingo. Dois dias antes, milhares de manifestantes foram às ruas de várias cidades defender o governo democraticamente eleito. Entre defensores da situação e da oposição há uma disputa pelo poder, e o país parece enfrentar um teste de estresse político inédito, como avaliou o cientista político André Singer. Para o filósofo Vladimir Safatle, entretanto, o momento é muito pior de que as pessoas querem admitir, mas não estamos passando por uma simples disputa entre PT e PSDB, pois o problema é mais amplo e atinge todo o sistema político nacional. “Nesse momento da história, é necessário ter claro o fato de que a Nova República acabou, morreu”, disse, em entrevista ao UOL Notícias.
Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo) e colunista da “Folha de S.Paulo”. Segundo ele, nem mesmo durante a ditadura houve uma depressão sociocultural como a atual, e as manifestações populares são um sinal do esgotamento nunca antes visto do modelo político – um problema que vai além da corrupção e a crise de representatividade. “Trocar o PT por outro partido não muda nada. É como trazer Dunga de volta à seleção brasileira após a derrota na Copa. Continuamos aprisionados ao processo”, disse. “Se é verdade que os partidos políticos fazem parte dos protestos, é piada achar que as passeatas podem fazer diferença.”
Safatle acredita que o governo Dilma já naufragou. Segundo ele, entretanto, a solução passa não por impeachment, mas por uma reforma ampla do modelo democrático que aumente a participação da sociedade nas decisões políticas. “O país está em ebulição, procurando novas formas desesperadamente”, disse.
Leia abaixo a entrevista completa.
UOL - Há setores da sociedade falando em impeachment atualmente, e há quem acuse esses setores de serem golpistas. O que o senhor acha das atuais manifestações?
Vladimir Safatle – O estranho das manifestações atuais é saber o que elas querem. Vão afastar o governo para quê? Não se fala em estabelecimento de uma nova ideia de política no país. Se é verdade que os partidos políticos fazem parte dos protestos, é piada achar que as passeatas podem fazer diferença.
Mesmo assim, essa manifestação é só a primeira. O país não vai ficar quatro anos paralisado. O governo Dilma cometeu dois erros mortais. Primeiro ele desmobilizou o próprio campo numa situação de tensão, e mesmo as pessoas que circulavam em torno do núcleo ideológico do governo foram desmobilizadas quando ela mudou o encaminhamento econômico e parou de governar. Segundo, ela transformou o medo no aspecto político central da sua campanha. O governo já naufragou. A questão é saber se a esquerda vai naufragar junto com ele.
UOL – Vivemos atualmente uma instabilidade política em meio a comemorações de 30 anos da redemocratização. A democracia brasileira está consolidada? Pode-se dizer que o Brasil é uma democracia de fato?
Safatle – O Brasil é uma neodemocracia. Precisamos de mais conceitos para compreender situações como a brasileira. Não há só dois conceitos em oposição, não é uma questão apenas de democracia ou regime autoritário. A situação do Brasil é um tipo de experiência política em que se tem uma série de garantias democráticas, mas também se tem uma permeabilidade a forças de fora do espectro político que interferem de maneira tal na aplicação da lei e que fazem com que não possamos falar em democracia no sentido completo do termo.
Apesar disso, é falso chamar de “democracia incompleta”. O certo é dizer que é uma neodemocracia que gira em torno dos seus impasses há 30 anos. Do final dos anos 1980 até hoje a democracia não se aperfeiçoou, e os seus problemas ficaram mais evidentes, como a baixa participação popular, um sistema parlamentar que produz distorções no sistema representativo e perpetuação de castas que interferem no sistema, interferências econômicas inacreditavelmente altas nos processos eleitorais.
Nesse momento da história, é necessário ter claro o fato de que a Nova República acabou, morreu.
UOL – O que isso quer dizer? Quais são os impactos disso para o sistema democrático e para o país?
Safatle - A Nova República foi, entre outras coisas, um modelo de construção pós-ditadura na qual a governabilidade era compreendida através da cooptação de uma parte da classe política que se desenvolveu na própria ditadura, e da gestão de toda essa massa fisiológica da política brasileira vinculada a interesses locais. Foi assim no governo de Fernando Henrique Cardoso, com apoio de Antonio Carlos Magalhães e do PFL, e foi assim no governo Lula, com Sarney. Nos dois casos, o PMDB era o grande gestor da fisiologia política.
Esse modelo se esgotou completamente. A produção de grandes atores políticos, do PT e do PSDB, se desmontou. Esses dois núcleos se esgotaram por completo. Ninguém mais espera que o processo de modernização nacional possa ser feito a partir de propostas desses dois grupos. Os dois já foram testados e demonstraram limites muito evidentes. Ninguém vai conseguir fazer nada continuando este modelo.
O trágico é que quando uma coisa termina, ela não acaba necessariamente logo, e pode continuar como zumbi, como morto-vivo, e o país fica paralisado por muito tempo. Nada está acontecendo, apesar de todos os embates atuais. O fim do modelo é trágico, e leva consigo os atores políticos, intelectuais e formadores de opinião.
UOL – E como fica a democracia nesse processo de esgotamento do modelo?
Safatle - As experiências de democracia liberal, este modelo esgotado, negligenciaram a inteligência prática das pessoas que são afetadas pelas decisões políticas. Existe o problema de pensar que só há política sob o império da representação. Isso é um absurdo e limita a capacidade de pensamento. A filosofia já abandonou essa questão da representação como elemento decisivo. A ideia de representação é equivocada, e as pessoas têm medo de discutir formas alternativas pensando que isso é um convite ao autoritarismo. Não é. Podemos abandonar a ideia de representação sem implicar em unidade totalitária.
O problema da representação é que quando ela se organiza, ela diz quais são as condições para a pessoa ser representável. Quem organiza o espaço de representação define quem ocupa o poder. Criam-se limitações para a participação política e excluem-se uma quantidade enorme de pessoas.
O Brasil vive um processo em que cada vez menos pessoas votam. Isso se repete em muitos outros países, e não é uma questão de confiança no sistema político, mas de descontentamento mesmo em democracias ditas consolidadas, como Inglaterra, Alemanha, França e Itália. Mesmo esses países vivem uma degradação de modelo de democracia representativa.
UOL – Qual a alternativa ao sistema de representação, então?
Safatle – Dentro do contexto atual, é importante ter mais ousadia de pensamento. Acredito na fragmentação da democracia direta, e isso não é discutido mais nem em universidades.
Temos condições técnicas para implementar uma democracia digital, se utilizando da facilidade tecnológica para ter alta participação popular. Não precisamos criar um sistema de representação por impossibilidade de participação. Isso acabou. Podemos, sim, passar gradativamente atribuições de todos os poderes para a participação popular, com capacidade de deliberação. E os poderes se transformam em poderes de implementação de decisões que não são tomadas por eles, mas pela participação popular.
Claro que ninguém é ingênuo de achar que isso é implementado de repente e por mera vontade política. O que é imperdoável é não se tente, não se teste isso, nem que seja em pequena escala. Isso permitira que toda a população tivesse consciência das possibilidades de outras formas de poder e organização do Estado, e sua relação com a sociedade civil, organizada ou não.
O país está em ebulição, procurando novas formas desesperadamente. O país tem consciência de que chegou ao esgotamento e que não quer continuar nesse modelo esgotado.
UOL – O senhor mencionou problemas em democracias da Europa, que costumam ser vistas como modelos mais consolidados. Existe um modelo ideal a ser seguido para fortalecer a democracia?
Safatle - Ninguém nunca esperou a democracia perfeita. A democracia está em processo constante de construção e desconstrução. Uma democracia forte não tem medo de desconstruir suas instituições. O fundamental é a presença contínua do poder constituinte.
Várias democracias consolidadas tiveram mudanças institucionais drásticas, como a França no final dos anos 1960, refundando a república. Precisamos de uma república nova no Brasil hoje. Não precisamos defender as instituições, mas desconstruir as instituições que funcionam mal. Eu não vou defender o Congresso, pois suas estruturas estão equivocadas. Precisamos de uma discussão profunda sobre o modelo de instituições que queremos. O problema é que a discussão acontece com pessoas que se aproveitam do sistema atual.
UOL – Mesmo com toda a instabilidade, há quem diga que este é o momento mais democrático pelo qual o Brasil já passou, olhando sob a perspectiva histórica. O que o senhor acha?
Safatle - De fato, do ponto de vista do funcionamento democrático, pode parecer que já passamos por situações piores. Claro que não podemos comparar o momento atual com a ditadura, que é a antipolítica por excelência.
Dentro da experiência democrática brasileira, comparando com o período entre 1945 e 1964, entretanto, esta é a primeira vez que a população brasileira olha para o futuro e não vê algo possivelmente diferente do que ela viu até agora. Entre 45 e 64 havia um processo em massa, apesar dos conflitos brutais e tentativas de golpe. Havia a expectativa de uma tomada democrática do poder, de uma implementação de reformas. Havia um projeto que pensava no futuro. De 1985 para cá, houve algo parecido, em dois projetos de modernização nacional. O problema é que esses dois projetos acabaram. Pela primeira vez na política brasileira temos mais de que uma crise de representação, mas o vazio de atores políticos. Ninguém consegue mobilizar a população brasileira. Nesse contexto, a situação atual brasileira é de fato a pior possível.
Esse tipo de situação, em que países dão menos de que podem dar, cria uma depressão política, econômica e social, e os países ficam menores de que eles são. Não tem nada pior. Nem mesmo durante a ditadura havia uma depressão sociocultural como temos hoje, pois existia uma força de contraposição, que aumentava gradativamente.
UOL – O que poderia ser mudado? Como melhorar o sistema que está em crise?
Safatle - A primeira coisa que é preciso fazer é admitir que estamos nessa situação. Acabou. É preciso que todo mundo fale isso em voz alta para podermos produzir uma nova situação.
Trocar o PT por outro partido não muda nada. É como trazer Dunga de volta à seleção brasileira após a derrota na Copa. Continuamos aprisionados ao processo. Precisamos de uma consciência clara de que esse é um modelo singular, de esgotamento nunca antes visto. Enquanto não percebermos que acabou, nada vai acontecer.
Vivemos agora a lógica dos pequenos problemas, da corrupção, do estado inchado, quando na verdade o problema é muito maior. Todos os escândalos de corrupção dos últimos 13 anos envolveram todos os partidos relevantes do Brasil. Isso significa que trocar de partidos no interior do modelo de governabilidade é continuar uma piada. O modelo de governabilidade é o grande problema
UOL – O que o senhor acha do debate a respeito de uma possível reforma política?
Safatle - Todo mundo sabe que não haverá reforma política. A reforma política que se propõe é pior de que a situação atual. O Brasil hoje é uma partidocracia. Os partidos vão tentar instituir o monopólio da representação política brasileira. Não é crível esperar que uma reforma política seja feita dessa maneira. Existe uma baixa densidade de participação popular em processos decisórios de estado. A população só é convocada para eleições a cada quatro anos. A população não tem poder de deliberação.
O que tem que ser posto é de uma Constituinte exclusiva para a reforma política. Isso tem que ocorrer fora do parlamento e do processo de escolha determinado pelo parlamento. A Europa pensou sobre isso depois de 2008, e o caso da Islândia é paradigmático. Eles fizeram uma Constituição fora do Parlamento. É preciso fazer um processo em que não são os políticos que são eleitos. Em crise de representação vai-se ao grau zero de representação, aproximando o máximo possível da presença popular, reconstruindo a estrutura institucional a partir disso. A Assembleia tem que ter pessoas simples participando, professores, enfermeiros, pessoas comuns, e não só políticos.
Precisamos de criatividade política. Os países que conseguem mobilizar a população são os que saem da crise. Ter medo, pensar em riscos para a democracia, vai nos deixar num processo infinito de degradação.
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