sábado, 30 de maio de 2015

Para reabrir debate sobre o papel da Universidade


Roberto Leher, reitor recém-eleito d UFRJ, dispara: sistemas de avaliação atuais
desestimulam criatividade e reflexão; educação superior precisa buscar novo
padrão civilizatório

Entrevista a Pedro Almeida Ferreira e Raquel Varela, na Revista Rubra

Com um extenso trabalho de pesquisa em políticas públicas na educação, Roberto Leher falou-nos do ensino universitário e da produção acadêmica, da investigação científica e da ideologia neoliberal aplicada à educação. 


O que é que pensa do processo de avaliações externas e da medição da produtividade do trabalho universitário por número de publicações em revistas científicas?

No Brasil, a avaliação externa de toda a pós-graduação é feita pela CAPES (Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior ). Esta determina prazos para mestrado e doutoramento, estabelece a quantidade mínima de publicações por docente em revistas por ela qualificadas e, conforme a pontuação do programa de pós, atribui uma nota que pode ir de 1 a 7. Entretanto, nem todos programas podem obter a nota 7, a despeito de sua qualidade, pois este conceito é restrito a 3 ou 5 programas por área em todo país. É um campeonato em que a maioria, apesar da febre produtivista, ficará para trás. Programas com índice igual ou inferior a 3 podem ser fechados. A coerção econômica dá-se pela associação entre a nota obtida e o número de bolsas para os estudantes, bem como o apoio a projetos de pesquisa, etc. É uma forma de submeter o trabalho acadêmico às diretrizes gerais do Estado e do mercado, em total desconsideração com a prerrogativa da autonomia universitária constitucionalmente assegurada em 1988.

Não se verifica o mesmo rigor da aferição do desempenho nos novos campi universitários públicos e nos Institutos Federais de Educação Tecnológica. Nestes, os cursos são muito semelhantes aos que, na Europa, seguem o Protocolo de Bolonha — cursos de 2 ou 3 anos. Os professores que atuam nestes cursos dificilmente conseguirão seguir para a pós-graduação e terão de se conformar com a docência em cursos massificados, em geral, com turmas com enorme número de estudantes. Nas instituições privadas, responsáveis por 75% das matrículas, a situação é muito mais grave. É uma educação aligeirada, um genocídio intelectual.

A obsessão de que a única produção acadêmica relevante é a veiculada pelas revistas qualificadas pela CAPES relaciona-se com o que podemos chamar de “rotas de excelência” e com o que é dado a pensar na universidade. As pequenas recompensas materiais que o Estado assegura a alguns pesquisadores — bolsas, recursos para os projetos, viagens, etc. — não são para todos. É preciso criar bloqueios. As revistas são a forma aparentemente “neutra” e “legítima” de segregação, de seleção, de estabelecer os temas desejáveis. O espaço das revistas pertence sobretudo aos “excelentes” que fazem pesquisas “pertinentes”. No entanto, mesmo estes estão presos, em sua maioria, aos interesses das corporações, desenvolvendo “inovação tecnológica”, e de programas de governo, especialmente relacionados com a gestão tecno-científica da pobreza e do controle social. O poder simbólico destes pesquisadores no campo científico decorre em grande parte da capacidade de captação de recursos. Existem exceções, grupos de pesquisa que, apesar de não estarem inseridos na lógica imediata do capital, sobrevivem nesse sistema, mas com alto custo pessoal.

De que forma é que essa captura da universidade pelo capital empobrece a investigação científica e a liberdade do docente?

Eis a grande questão! O Estado, que estruturou o capitalismo monopolista durante a ditadura-militar do Brasil, apropriou e incorporou conhecimento em vários domínios — energia, telecomunicações, engenharias etc. — com as empresas estatais. À medida que estas foram privatizadas, os seus departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento foram fechados. Hoje, as universidades prestam esses serviços e muitos professores viraram funcionários de corporações. Em Berkeley, o Instituto de Biociências e Energia e, na Universidade de São Paulo, a Escola Luiz de Queiroz, recebem recursos da coalizão liderada pela British Petroleum para monopolizar o conhecimento, e a produção, da agro-energia mundial, o etanol. Cabe indagar: como estes grupos financiados pela corporação poderão avaliar de modo isento os impactos sócio-ambientais desta forma de produção de energia?

A situação paradoxal é que grande parte dos recursos de pesquisa é destinada a inovação tecnológica; contudo, a inovação, nos Estados Unidos e nos países do G7, ocorre fundamentalmente dentro das empresas e não na universidade. No Brasil, como realidade geral, a inovação tecnológica, no sentido próprio do termo, não existe. Somos um país capitalista dependente, inserido em circuitos produtivos em que o grosso da produção industrial já recebe tecnologia pronta. Então, o que a universidade está fazendo é simplesmente prestar serviços para corporações que nem sequer necessitam investir em laboratórios e em pessoal qualificado e, ao adquirir um serviço, desembolsar seus próprios recursos, pois os referidos serviços contam com recursos públicos do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa, atualmente chamado Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econêmico e Social) …

Há, assim, um novo ethos acadêmico: o do professor-empreendedor, em que a universidade é uma peça na engrenagem do capital. A minha hipótese é que uma das novas funções da universidade é aumentar o exército industrial de reserva.

Explique-nos melhor essa hipótese

O grande desafio da última década foi a socialização do que os pós-modernos chamam de “excluídos”, os que estão afastados do controle estatal ou de uma socialização que os integre como força de trabalho.

Nos anos 90, o desemprego cresceu muito no Brasil — chegou a 45 ou 50% entre a população jovem mais explorada, tal como hoje em países europeus. A força de trabalho desempregada ou em rotação de trabalhos já mantinha os salários muito baixos, por isso, os jovens das favelas, por exemplo, não se viam como potenciais assalariados e procuravam formas alternativas de vida, trabalhos informais, etc.

Com o ciclo expansivo 2003-2008, foi necessário fazer com que essa juventude das periferias das grandes cidades se percebesse como força de trabalho potencial. Existem “programas focalizados” para cada fracção da classe trabalhadora até então fora do mercado de trabalho: programas de educação para jovens negros e para mulheres jovens da favela – mas, se examinarmos as condições em que acontecem, percebemos que são cursos que asseguram tão somente rudimentos de conhecimentos, em geral, mais ligados à socialização condizente com o “espírito do capitalismo”.…

E a educação joga esse papel com o ensino profissional…

Sim. O ensino profissional é estratégico. Para uma grande parte da população, começa a abrir-se a possibilidade de educação superior e de formação profissional pós-ensino médio, pois a taxa bruta de matrículas na educação superior ainda é muito baixa, 28%. Mas, no Brasil, 75% das matrículas na educação superior – e na formação profissional é ainda maior – são privadas e mercantis. A educação superior está sendo ocupada pelos setores com fins lucrativos, e já não são, como até 2005, empresas familiares, agora são setores financeiros, vinculados a bancos que organizam fundos de investimento…

Uma das grandes conquistas da revolução em Portugal foi o ensino unificado, que vem sendo destruído. Nos anos 90, com as medidas chamadas neoliberais, criou-se a via de ensino e a via científica na formação universitária. Observa isto no Brasil?

No processo de redemocratização, lutamos, como vocês, para ter universidades capazes de assegurar uma formação geral, culturalmente ampla e científica, para que todos tivessem uma visão integrada, inventiva e crítica do seu labor. Mas isso vem sendo duramente combatido há muitos anos. Em meados da década de 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso promoveu uma disjunção entre a formação profissional em nível médio e a formação propedêutica, científica, impondo um sistema de educação profissional que não formava os jovens, mas os treinava para o trabalho simples. E é esse o modelo dos atuais Institutos Federais e, sobretudo, do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), um vasto programa de formação utilitarista, voltado para o adestramento dos jovens, ofertado principalmente por organizações de ensino privadas, vinculadas aos sindicatos patronais, mas mantidos com verbas públicas. Quando as entidades patronais reclamam da falta de mão de obra qualificada, em rigor estão reclamando da baixa escolaridade dos jovens que os afasta do exército industrial de reserva, situação que preocupa o patronato, pois o modelo econômico brasileiro tem como fundamento a superexploração do trabalho.

A preocupação com a chamada sociedade do conhecimento é puramente proclamatória. No Brasil foi criado um programa, que seria financiado com verbas do Estado e das empresas, chamado “Ciência sem Fronteiras”, para que jovens fizessem parte da graduação em universidades na Europa e Estados Unidos. O programa foi criado, mas as empresas não cumpriram sua parte, colocando recursos para ampliá-lo!

Por que?

Não está na estratégia empresarial organizar um setor de pesquisa e desenvolvimento próprio. A associação com o imperialismo permite que as frações burguesas locais tenham lucros exorbitantes. O Brasil, hoje, regride na sua base produtiva. Tem uma industrialização importante, mas de menor sofisticação tecnológica. Mesmo a agricultura possuiu hoje uma base tecnológica muito mais subordinada do que a dos anos 70. A chamada revolução verde exigia domínio da genética e de estudos sobre evolução e ecologia, pois as sementes híbridas tinham de estar adaptadas aos ecossistemas brasileiros. Mas hoje, o padrão dos transgênicos da Monsanto não exige isso! A simplificação da formação universitária não é um problema geral para o setor produtivo.

O aumento do exército industrial de reserva com formação precária é estratégico para a organização do capital ou é consequência de uma educação mercantilizada? Pergunto isto porque, em Portugal, vemos empresas a pedir engenheiros pré-Bolonha…

Aqui, a Petrobras também não aceita candidatos para as engenharias vindos desses cursos aligeirados. É uma contradição que não deixa de ser irônica. O sistema de pós-graduação existente nas áreas consideradas prioritárias cumpre esse papel de fornecimento de força de trabalho com maior sofisticação em áreas muito específicas.

Em relação ao grosso da força de trabalho, a formação é precária e brutal mas funcional ao capital. No Brasil, mais de 1 milhão de jovens – 16% das matrículas no ensino superior, sendo 84% em organizações privadas – são feitas em cursos a distância, sem presença em laboratório. Teremos químicos que nunca viram uma pipeta, biólogos que nunca viram um microscópio!

Mais do que o interesse pragmático de formação da mão-de-obra para postos de trabalho x, y ou z, a preocupação parece ser a governabilidade. A preparação da força de trabalho é construída a partir de uma plataforma de socialização para o ethos capitalista. A partir daí, constroem-se competências mais específicas para padronizar a força de trabalho e facilitar a mobilização do capital.

O que acha dessa palavra, “competências”?

À medida que foram feitas algumas teses de doutoramento e estudos mais sistemáticos sobre esta questão, tornou-se claro que a noção não tem origem na educação. Ela surge nos processos de reestruturação produtiva, na Europa e Estados Unidos, a partir dos anos 70 e, mais nitidamente, nos 80. Surge vinculada à fragmentação do trabalho e da identidade do trabalhador, para destruir o conceito de carreira, de categoria profissional, que sustentava a organização sindical..

Mas a mente humana não opera por meio de “competências”! Isto não tem suporte científico! É ideológico. Diz-se que o manejo do conhecimento se dá por via de “competências” que devem ser aferíveis e quantificadas por testes como o PISA ou, aqui no Brasil, o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). O objectivo é definir mundialmente por meio do Projecto Tunning o que os organismos internacionais desejam de um curso universitário, quais as “competências” básicas que deve garantir.

Não é também uma forma de criar mão-de-obra flexível?

Sim, o salário do trabalhador já não depende do contrato, varia de acordo com o desempenho. E como se afere desempenho? Em alguns setores, se um trabalhador produziu 20 mercadorias e outro 25, então, este merece gratificação. Mas noutros é mais difícil. No setor de serviços, e mesmo na área das indústrias que não pertence à parte final da produção, foi necessário criar descritores aferíveis. Aí surgem as “competências”. É o mesmo movimento que o capital vem fazendo com os professores, o de passar de uma subordinação formal a uma subordinação real do Trabalho ao capital, de alcançar uma expropriação sem precedentes.

Na educação básica, isso é feito com o uso de cartilhas, livros aligeirados, materiais pedagógicos que o professor repete. Nesta situação, o docente não é protagonista das suas aulas: só aplica cartilhas. E quem as produz são as corporações. Aqui, no Brasil, é um grupo chamado Grupo Pearson, dono das maiores editoras do mundo, do Financial Times e The Economist.

Hoje, o que fazemos na universidade?

É uma pergunta constrangedora. Há muitas formas de fazer universidade. E acho que há uma forma dominante, hegemênica, que está socializando a juventude para o capitalismo. A universidade está sendo direcionada para a formação da força de trabalho que o capital precisa. Existem contradições, com mediações específicas, mas é essa a tendência geral, e parece-me que foi naturalizada, legitimada.

Que papel devia cumprir a universidade numa sociedade desejável?

Historicamente, a função social da universidade foi constituída num processo de lutas em defesa de uma universidade que produzisse ciência e tecnologia, não que prestasse serviços. A maior preocupação, hoje, é a mudança dessa função social em prol da pesquisa e desenvolvimento, da inovação, algo que deveria ser realizado nas empresas.

Numa sociedade socialista, a universidade deveria ser espaço de convergências de movimentos sociais e pesquisadores. Se queremos uma agricultura agro-ecológica, temos de produzir e socializar conhecimento científico rigoroso sobre ecologia, sobre os solos, o uso cuidadoso das reservas aquíferas, trabalhar em prol da soberania alimentar, conhecer as sementes crioulas (nativas), e isso exige conhecimentos produzidos em conjunto com os camponeses, os povos originários. São desafios epistemológicos e epistêmicos.

A pesquisa sistemática, livre e em prol do bem viver dos povos é indispensável em todos os domínios. A humanidade está desafiada a produzir um outro horizonte civilizatório que não o da barbárie do capital. A universidade deveria ser uma instituição para isso!

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Seja professor! [resposta a um artigo realista-desencorajador]

    

Com base no artigo “Não seja professor”, publicado pelo filósofo Vladimir Safatle na Folha de S. Paulo, professor da Universidade de Brasília (UnB) questiona os argumentos apresentados e defende o incentivo à carreira dos docentes, apesar das dificuldades da profissão: “O momento não é de desencorajamento, mas de estímulo à mudança prática e ao embate de diálogo aberto com aqueles que deveriam nos representar”


Por Everaldo Batista da Costa*


Na manhã de 5 de maio de 2015, um artigo publicado no caderno Opinião da Folha de S. Paulo deixou-me perplexo. O professor e filósofo Vladimir Safatle – da Universidade de São Paulo – emitiu, de forma clara e direta, alguns breves apontamentos para que seus alunos não sejam professores neste país. Ao ler seu texto, me vi na obrigação, enquanto professor e geógrafo formador de outros professores-cidadãos, de fazer alguns contrapontos diretos a suas ideias. Faço isso de forma respeitosa à opinião do aludido docente; a ideia aqui é a de uma franca reflexão conjunta ou de deixar outro viés para o pensamento coletivo.

No contexto do atual descalabro de conflito e agressão do estado do Paraná para com seus docentes, Safatle diz que “diante das circunstâncias, gostaria de aproveitar o espaço para escrever diretamente a meus alunos e pedir a eles que não sejam professores, não cometam esse equívoco. Esta ‘pátria educadora’ não merece ter professores”. Pois bem, defendo que os alunos de Safatle – que se formarão em Filosofia e professores pela prestigiosa USP -, bem como meus alunos, que se formarão geógrafos e também professores pela Universidade de Brasília, assumam a docência nas escolas, sim!

Uma nação democrática ou um bairro digno não se fazem sem conhecimentos da realidade. Não estaríamos em nossas universidades a contribuir na formação de professores-cidadãos se não fosse pelos mestres que tivemos desde a pré-escola e, certamente, não lecionaríamos nestas importantes instituições de ensino superior do Brasil não fosse o empenho e a qualidade desses mestres ou o esforço financeiro de cada contribuinte brasileiro em nos manter docentes, da forma que nos mantém e continuamos [alguns preferem ser tratados por pesquisadores, a ideia de professor parece aos mesmos minimizar o status do ofício]. A devolutiva deve ser dada nas escolas, aos filhos desses contribuintes – é nosso dever moral e ético, mas não a qualquer preço, certamente.

Safatle escreve que “um professor, principalmente aquele que se dedicou ao ensino fundamental e médio, será cotidianamente desprezado. Seu salário será, em média, 51% do salário médio daqueles que terão a mesma formação”. O professor e filósofo com quem dialogo cordialmente está correto no que afirma. Contudo, cabe ao próprio professor [a quem respondo, a mim e a todos os que lerem este artigo – ou não lerem] não desestimular, mas, ao contrário, apontar algum caminho para a mudança do quadro atual de ensino no Brasil, que realmente é trágico.

Logo, afirmo que é o momento para uma efetiva prática de mobilização nacional dos professores em todos os níveis, em pressão aos governos de estados e à União, para a melhoria de um quadro que não se restringe ao salarial, mas que atinge a dignidade física e psicológica dos docentes, que encaram uma sociedade calamitosa face a face, de violência material e simbólica no cotidiano escolar. Desestimular um futuro professor é remar contra a ideia da construção de um país menos desigual e potencializar os problemas já existentes. Uma boa saída seria o fechamento dos cursos de licenciatura ou uma mobilização nacional consciente e articulada em prol de um ensino mais digno, em todos os níveis, a envolver professores, pais e alunos?

No contexto da indiferença com a qual são tratados nossos professores no país, Safatle considera que “depois de voltar para casa sangrando por ter levado uma bala de borracha da nossa simpática PM, você poderá ter o prazer de ligar a televisão e ouvir alguma celebridade deplorando o fato de o país ‘ter pouca educação’ ou algum candidato a governador dizer que educação será sempre a prioridade das prioridades”. Também não se equivoca Safatle. Entretanto, esses fatos não justificam desencorajar os egressos de nossas universidades à docência.

O cenário da educação no país mudou, em certo grau, nas últimas décadas [notadamente, na última]; há dados sobre tais mudanças, que se fazem de maneira extremamente pontuais e ainda insuficientes, sobretudo quando vislumbramos o país em sua totalidade. Por mais que os noticiários denunciem, diariamente, a precariedade do ensino nas regiões mais pobres e a violência com a qual a educação é tratada no país, os incontáveis problemas ainda persistentes devem servir de estímulo para pensarmos no valor educativo, uma nova escola para um novo professor mais propositivo, mais otimista e mais engajado na formação de nossas crianças, para um real país “pátria educadora”.

Porém, a ação ou a mobilização coletiva se faz mais que urgente, para a alteração do quadro geral que criticamos, o qual reflete o descaso efetivo com a educação brasileira em todos os níveis, especialmente no fundamental e no médio. O professor universitário em geral não deve afugentar ou apartar as escolas ou os professores das escolas; seu papel é aproximar dos mesmos, potencializar o debate e as ações pela mudança educacional no país, trazer os professores e as escolas à universidade, sair de seu gabinete favorável à manutenção de bolsas individuais de pesquisas que o faz imóvel ou letárgico diante dos problemas concretos de nosso país.

Por fim, assegura Safatle que “diante de tamanho cinismo, você não terá nada a fazer a não ser alimentar uma incompreensão profunda por ter sido professor, em vez de ter aberto um restaurante. Por isso o melhor a fazer é recusar-se a ser professor de ensino médio e fundamental. Assim, acordaremos um dia em um país que não poderá mais mentir para si mesmo, pois as escolas estarão fechadas pela recusa de nossos jovens a serem humilhados como professores e a perpetuarem a farsa”. Como sugerir a abertura de um restaurante ao invés de ser professor, após a finalização de um curso superior bancado por indivíduos adultos que sonham em ter seus filhos em boas escolas? A saída para nossa educação é indicar a recusa a ser professor do ensino médio e fundamental? Sugere-se ser professor no ensino superior apenas, cuja realidade fora dos grandes centros não se diferencia das piores escolas nacionais? Como será acordar em um país sem escolas? Na verdade, dormiremos em sono profundo, com poucos clientes para muitos restaurantes.

Penso que seja dever do professor de nossas universidades públicas estimular os jovens futuros docentes a assumirem o lugar de uma crítica propositiva, de uma crítica emancipatória para a ação em prol de uma real “pátria educadora”, na qual o ensino-aprendizagem se faça prioridade na vida de cada indivíduo. A ação em massa, junto aos sindicados dos professores, pais e alunos, com a tomada dos espaços públicos de nossas cidades, faz-se urgente. Não há um único professor universitário, advogado, médico, engenheiro, geógrafo ou historiador que não tenham passado por algum engajado professor do pré-escolar, do ensino fundamental ou médio. O momento não é de desencorajamento, mas de estímulo à mudança prática e ao embate de diálogo aberto com aqueles que deveriam nos representar. Não há armamento que segure a coletividade [no caso, toda a classe de professores – sem elitismo] realmente unida e consciente de seus direitos e deveres. Nossas crianças, os adultos do futuro, merecem e precisam desse empenho atual.

Por um lado, a sociedade espera empenho dos estudantes dos cursos de licenciatura e de bacharelado lotados nas universidades públicas brasileiras, após anos de tributação e de investimento. Por outro, o Estado Absoluto parece esperar que a massa se revolte, mais tantas vezes forem necessárias, para respostas a demandas reais e urgentes nas instituições de ensino. Sejamos todos professores engajados na busca de outra educação, para um novo país. O mundo em metamorfose se faz pela sociedade em trânsitos ininterruptos. O estímulo deve continuar a ser dado, pelas bases do ensino. Sejamos professores, neste país, pelo entendimento dessa metamorfose.


* Everaldo Batista da Costa é professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB)

Foto de capa: Arquivo/Agência Brasil


Para ler o artigo "Não seja  Professor", de Vladimir Safatle,  clique aqui 


sexta-feira, 15 de maio de 2015

ADI 1923: legitimação e ampliação da terceirização no setor público


Por Jorge Luiz Souto Maior 



Sem alarde

No último dia 15 de abril, algumas organizações estudantis da Universidade de São Paulo, antes de se encaminharem para a manifestação no Largo da Batata, realizaram um ato público contra o PL 4.330/04 no rol de entrada da Faculdade de Direito (USP), tendo sido me concedida a oportunidade da fala. Na ocasião, pedi para que ficasse ali consignado um “registro histórico”, no sentido da advertência de que, depois da grande difusão dada na mídia de que teria havido um recuo do Congresso sobre o teor do PL 4.330/04 - levando, inclusive, os movimentos sociais e sindicais a considerarem que já tinham obtido uma grande vitória com a aprovação da Emenda supressiva, encaminhada pelo PSDB, com apoio do PT, que retirou a menção da aplicação do PL “às empresas públicas, às sociedades de economia mistas e suas subsidiárias e controladas, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” - e da retirada da pauta, pelo PR, da Emenda 72, que visava explicitar a aplicação do PL à administração pública direta, deveríamos ficar muito atentos, pois aquela situação dava a entender que algo estava sendo gestado no âmbito da terceirização no setor público.

O destaque à notícia da aprovação da Emenda supressiva parecia-me uma estratégia para retirar a discussão da terceirização no setor público do âmbito do calor das manifestações contrárias ao PL, o que permitiria uma facilidade maior para passar o PL, ao mesmo tempo em que conduzia, sem alarde, a questão da terceirização no setor público para outra esfera de regulação.

O anúncio midiático conferia, também, o argumento para que se dissesse que negociações foram feitas sobre o conteúdo do PL e que, com mais um ou outro “ajuste”, como, por exemplo, a fixação da responsabilidade solidária do tomador de serviços no que tange a certos direitos dos terceirizados (talvez, “verbas rescisórias”, em condições inaplicáveis, de todo modo), se chegaria a um grande acordo no qual o segmento empresarial veria atingido o seu objetivo e os políticos preservados os seus interesses eleitorais, dizendo que ouviram a voz das ruas, e que todos nós, que estávamos ali saindo para a manifestação, poderíamos estar sendo feitos de “massa de manobra” para esse ajuste, que teria como efeito gravíssimo a aprovação menos ampla do PL, mas que, no fundo, legitimaria a terceirização e todas as suas perversidades que estão aí há décadas solapando a vida de milhões de trabalhadoras e trabalhadores terceirizados, sem enfrentar, ainda, o problema concreto da terceirização no setor público.

Em texto publicado em janeiro deste ano, tentei chamar atenção para o fato de que o plano estratégico de atuação imposto ao Judiciário, em conformidade com as diretrizes do Banco Mundial, seguindo o padrão teórico consignado no conhecido Documento n. 319, elaborado na década de 90, teria o objetivo de moldar os juízes para reproduzirem a (ir)racionalidade de mercado e assim fazer com que as reformas neoliberais, de retirada de direitos, não se submetessem ao calor das resistências populares, advindo, isto sim, da própria atuação jurisdicional, sendo que o maior condutor dessa “obra”, já que a Justiça do Trabalho, institucionalmente, se “recusou” a fazê-lo, submetida que está aos princípios do Direito do Trabalho, que muitos teóricos, durante muito tempo, tentaram destruir mas não conseguiram, poderia ser o Supremo Tribunal Federal nos julgamentos das ADIs e na utilização do mecanismo da repercussão geral, ainda mais depois que, estrategicamente, fizeram-se ataques públicos ao Supremo, acusando-o de estar se curvando ao “bolivarianismo”.

No texto, fazia menção à derrota experimentada pela classe trabalhadora no julgamento, havido em 13/11/14, tratando da prescrição do FGTS, no recurso de um processo (ARE 709212), ao qual se deu, sem qualquer explicação razoável, repercussão geral. Destacava o risco que os trabalhadores corriam em julgamentos futuros, sobretudo por conta dos argumentos utilizados naquele julgamento, que incorporaram os argumentos abstratos e retóricos da (ir)racionalidade econômica, conforme expresso no voto do ministro Fux: “Novos tempos, novos direitos”.

A ADI 1923, julgada na surdina

Pois não é que naquele mesmo dia, do evento na Faculdade e da manifestação popular contra o PL 4.330/04, dia 15 de abril de 2015, estava sendo julgada no Supremo Tribunal Federal a ADI 1923, que trata exatamente da possibilidade de transpasse pelo Administrador de serviços públicos ao setor privado...

A ação, proposta em 1º./12/98, estava paralisada desde 21/10/13, quando o ministro Marco Aurélio pediu vista. Com a devolução, em 10/02/15, o processo foi posto imediatamente em pauta e julgado, sem alarde, no dia 15/04/15, impedindo, assim, qualquer tipo de manifestação pública a respeito, ainda mais porque o voto condutor do Acórdão, proferido pelo ministro Fux, no sentido da constitucionalidade da lei que autoriza os convênios com as Organizações Sociais, conforme abaixo explicado, já era conhecido, vez que proferido em 19/05/11.

Oportuno o registro de que as partes do processo, que certamente tiveram ciência prévia de que o feito estava em pauta para julgamento, eram, dentre outras, o PT, o PDT, a Presidência da República e o Congresso Nacional, que, portanto, não demonstraram possuir o menor interesse em divulgar o advento do julgamento. Isso reforça a suposição de que de fato havia – e ainda há – um grande ajuste de interesses para a ampliação da terceirização no setor público, que se pretende seja implementada sem qualquer debate com a opinião pública a respeito.

Aliás, do ponto de vista da posição do Supremo frente aos interesses da classe trabalhadora, é interessante notar que o julgamento da ADI 1625, que trata da inconstitucionalidade da denúncia, feita pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, da Convenção 158, da OIT, que inibe a dispensa arbitrária de empregados, notadamente as dispensas coletivas, proposta em proposta em 19/06/97, até hoje não foi concluído, embora já tenha votos expressos pela inconstitucionalidade. Ou seja, não se verificou a mesma eficiência que se viu na ADI 1923 para julgar a ADI 1625, ainda mais porque, no mérito, é bastante difícil afastar a inconstitucionalidade da denúncia. De todo modo, há que se estar bastante atento, pois, segundo informação constante do site do SFT, o processo da ADI 1626 foi devolvido a julgamento, em 10/04/15.

O tamanho do estrago da ADI 1923

Fato é que as pessoas e entidades em geral, que estão nas ruas lutando contra a terceirização, ainda não se deram conta do tamanho do estrago provocado pela decisão da ADI 1923.

Resumidamente, conferindo uma interpretação conforme a Constituição da Lei n. 9.637/98, seguindo a redação que lhe fora dada pela Lei n. 9.648/98, ambas editadas no governo FHC, para implementação da ideia neoliberal de Estado mínimo, incorporada na compreensão econômica de Bresser-Pereira (desde a criação do MARE, em 1995), o que o Supremo disse, agora, em 2015, é que a atuação do Estado na saúde, na educação, na cultura, no desporto e lazer, na ciência e tecnologia e no meio ambiente pode se realizar mediante uma gestão compartilhada com o setor privado, por intermédio da formalização de “instrumentos de colaboração público/privada”, pelos quais se reserva a participação do Estado como entidade de “fomento”, não apenas com transferência de recursos financeiros, mas também pela cessão de bens públicos e até de servidores públicos, sendo que esses instrumentos, que são, de fato e de direito, convênios, serão feitos com ONGs, alçadas ao “status” (“título jurídico”) de Organização Social por meio de deliberação do próprio ente público.

Nesse aspecto, aliás, a preocupação do voto vencedor no Supremo foi muito mais com o interesse das ONGs do que com o interesse público, ao explicitar que: “É de se ter por vedada, assim, qualquer forma de arbitrariedade, de modo que o indeferimento do requerimento de qualificação, além de pautado pela publicidade, transparência e motivação, deve observar critérios objetivos fixados em ato regulamentar expedido em obediência ao art. 20 da Lei nº 9.637/98, concretizando de forma homogênea as diretrizes contidas nos inc. I a III do dispositivo.”

Ora, trata-se de critério objetivo para impedir a arbitrariedade na entrega do “título”, enquanto que o problema concreto, na órbita do interesse público, não é este e sim o da escolha da administração para formalizar o convênio, sendo que neste aspecto o julgamento estabeleceu que NÃO HÁ LICITAÇÃO para a contratação, admitindo, pois, a respeito, a atuação discriminatória do administrador, ainda que sob a retórica de que a contratação deva obedecer a “um procedimento público impessoal e pautado por critérios objetivos, por força da incidência direta dos princípios constitucionais da impessoalidade, da publicidade e da eficiência na Administração Pública (CF, art. 37, caput)”.

A decisão do Supremo, reproduzindo o espírito da lei em julgamento, prevê, ainda, a possibilidade de que as OSs formalizem, elas próprias, contratos com terceiros para a execução dos serviços, sem licitação, e, pior, que possa contratar trabalhadores sem concurso público, negando-lhe, por consequência, as garantias jurídicas dos estatutários. Prevê, ainda, que servidores estatutários prestem serviços às OSs e recebam destas uma remuneração fora dos padrões da “legalidade”.

Importantíssimo, ademais, destacar alguns dos argumentos utilizados no voto vencedor, do ministro Fux, que dão bem o tom neoliberal da decisão: “A atuação da Corte Constitucional não pode traduzir forma de engessamento e de cristalização de um determinado modelo pré-concebido de Estado, impedindo que, nos limites constitucionalmente assegurados, as maiorias políticas prevalecentes no jogo democrático pluralista possam pôr em prática seus projetos de governo, moldando o perfil e o instrumental do poder público conforme a vontade coletiva”.

Constituição virou letra morta

O resultado dessa (ir)racionalidade neoliberal foi fazer letra morta da Constituição, pois quando a Constituição preconiza que os serviços na saúde (CF, art. 199, caput), na educação (CF, art. 209, caput), na cultura (CF, art. 215), no desporto e lazer (CF, art. 217), na ciência e tecnologia (CF, art. 218) e no meio ambiente (CF, art. 225) são serviços públicos e que “são deveres do Estado e da Sociedade”, estando “livres à iniciativa privada”, o que pretendeu foi deixar claro que as entidades privadas que se ativarem nesses setores não poderão visar apenas o lucro, estando obrigadas a respeitarem as finalidades próprias da prestação de um serviço público, buscando, em primeiro plano, a satisfação dos interesses da sociedade, cumprindo ao Estado, isto sim, a obrigação de impedir a mera mercantilização desses serviços, ao mesmo tempo em que lhe compete programar e efetivar políticas públicas para a execução desses serviços, e não simplesmente transferir sua responsabilidade para o setor privado, entregando a este dinheiro e bens públicos, ainda mais sem licitação, de modo, inclusive, a afastar a garantia constitucional do acesso democrático ao serviço público pela via do concurso, tudo em nome de uma suposta eficiência, que estaria garantida pelo controle do resultado, conforme, aliás, está sugerido no voto vencedor: “A finalidade de fomento, in casu, é posta em prática pela cessão de recursos, bens e pessoal da Administração Pública para as entidades privadas, após a celebração de contrato de gestão, o que viabilizará o direcionamento, pelo Poder Público, da atuação do particular em consonância com o interesse público, através da inserção de metas e de resultados a serem alcançados, sem que isso configure qualquer forma de renúncia aos deveres constitucionais de atuação.”

Ora, como bem destacou o ministro Marco Aurélio, em seu voto que restou vencido (acompanhado que foi apenas pela Min. Rosa Weber):

A modelagem estabelecida pelo Texto Constitucional para a execução de serviços públicos sociais, como saúde, ensino, pesquisa, cultura e preservação do meio ambiente, não prescinde de atuação direta do Estado, de maneira que são incompatíveis com a Carta da República leis e programas de governo que emprestem ao Estado papel meramente indutor nessas áreas, consideradas de grande relevância social pelo constituinte.

A extinção sistemática de órgãos e entidades públicos que prestam serviços públicos de realce social, com a absorção da respectiva estrutura pela iniciativa privada – característica central do chamado “Programa Nacional de Publicização”, de acordo com o artigo 20 da Lei nº 9.637/98 –, configura privatização que ultrapassa as fronteiras permitidas pela Carta de 1988.

O Estado não pode simplesmente se eximir da execução direta de atividades relacionadas à saúde, educação, pesquisa, cultura, proteção e defesa do meio ambiente por meio da celebração de “parcerias” com o setor privado.

Além disso, mesmo que não houvesse uma grave inversão axiológica das normas constitucionais, não se pode, razoavelmente, prever uma melhoria da prestação desses serviços com a sua “privatização”, vez que, nesse modo de execução, tendem a ser mercantilizados e submetidos a lógicas meramente econômicas, voltadas ao lucro, sem falar, é claro, da maior facilitação de desvios indevidos do erário e da maior promiscuidade de interesses entre o público e o privado, inclusive com objetivos eleitorais, cumprindo lembrar que o permissivo dos convênios vale para todos os municípios e estados do país, bem como para o governo federal, evidentemente.

Conforme observa com bastante propriedade Gustavo Alexandre Magalhães:

...após alguns anos de experiência no desenvolvimento do terceiro setor, a opinião pública observa a transferência de quantias vultosas para entidades não governamentais ligadas a partidos políticos e pessoas com grande influência junto às autoridades públicas, ou mesmo para desviar dinheiro público em benefício de interesses exclusivamente privados.

A lógica privatista do Estado, que permite uma enorme promiscuidade com o setor privado, no entanto, foi acatada pelo Supremo, segundo explicitado no voto: “Na essência, preside a execução deste programa de ação institucional a lógica, que prevaleceu no jogo democrático, de que a atuação privada pode ser mais eficiente do que a pública em determinados domínios, dada a agilidade e a flexibilidade que marcam o regime de direito privado”. – grifou-se.

Aliás, na ânsia de afirmar a (ir)racionalidade neoliberal, o voto do relator extrapola todos os limites jurídicos e simplesmente desconsidera a existência do aparato jurídico trabalhista, legal, constitucional e historicamente concebido, para sugerir, sem qualquer base teórica e com certa dose de irresponsabilidade, que “Os empregados das Organizações Sociais não são servidores públicos, mas sim empregados privados, por isso que sua remuneração não deve ter base em lei (CF, art. 37, X), mas nos contratos de trabalho firmados consensualmente”.

Ora, nas relações de emprego, mesmo privadas, a base remuneratória é legal e constitucionalmente fixada, e não consensualmente estabelecida, a não ser no aspecto da superação, favorável ao trabalhador, do parâmetro legal.

Em suma, mesmo tentando conferir um verniz de respeito ao interesse público, mediante a permissão de “percentual de representantes do poder público no Conselho de Administração das organizações sociais” e a previsão de que: “(i) o procedimento de qualificação seja conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e de acordo com parâmetros fixados em abstrato segundo o que prega o art. 20 da Lei nº 9.637/98; (ii) a celebração do contrato de gestão seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iii) as hipóteses de dispensa de licitação para contratações (Lei nº 8.666/93, art. 24, XXIV) e outorga de permissão de uso de bem público (Lei nº 9.637/98, art. 12, §3º) sejam conduzidas de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF; (iv) os contratos a serem celebrados pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; (v) a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; e (vi) para afastar qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas”, o que resulta, em concreto, do julgamento é que os governos poderão conferir um título jurídico de Organização Social a quem atenda, por meio de requisitos fixados em regimentos internos, e poderá, também, firmar convênios com a Organização Social que quiserem, transferindo-lhes dinheiro e bens públicos, além de servidores públicos, para administrarem serviços públicos em diversas áreas, sendo que essas organizações, ainda que controladas pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas, farão suas gestões sob a esfera da ordem jurídica de direito privado, inclusive e principalmente, no que se refere à contratação de trabalhadores, atingindo a execução de serviços que se integram ao conceito de atividade-fim do serviço público, com relação aos quais a mera terceirização (direta) não pode atingir.

A terceirização de fato da atividade-fim no setor público

Pelo artifício jurídico legitimado pela decisão do Supremo permitiu-se, enfim, a terceirização da atividade-fim no setor público, mediante a “terceirização” da própria administração, indo bem além (e sem limites) das hipóteses já previstas no art. 175 da Constituição (concessão e permissão de serviços públicos). Assim, um ente público poderá, por exemplo, transferir para uma OS, na forma acima narrada, uma atividade escolar ou de saúde. A organização Social responsável, recebendo dinheiro público e bens públicos, poderá prestar esses serviços por intermédio de professores e médicos contratados sem concurso público, sendo que a estes não se garantirá, por consequência, a estabilidade no emprego, que é atinente aos servidores, dentre outros direitos específicos.

Cumpre verificar que, se estamos falando de serviços públicos, prestados no contexto da administração pública, ainda que por meio das OSs, estes não poderão ser cobrados da população e, por consequência, o lucro das organizações sociais – e o benefício dos governos – só se concretizará com a precarização das condições de trabalho desses profissionais, estando a reação coletiva destes extremamente dificultada pela perda da representação sindical e, mais ainda, se, em complemento, vier a ser aprovada o PL 4.330/04, vez que isto permitiria às OSs terceirizarem os serviços, valendo a observação de que, se tudo isso deteriora a condição de trabalho dos professores e médicos, interferindo na própria liberdade didática ou clínica, que dirá, então, dos trabalhadores na limpeza e vigilância.

A sensação que fica é que todos que lutam contra a terceirização foram induzidos a um grande erro, envolvidos em um “jogo de cena” de muitos atores, que serviu, propositalmente, para impedir a formulação de uma compreensão e, consequentemente, a organização de uma resistência popular a respeito dos propósitos privatizantes e precarizantes inseridos no objeto do julgamento da ADI 1923.

A luta contra o PL 4.330/04 precisa continuar, por certo, mas há de se reconhecer que a desarticulação e um envolvimento mais consistente contra a terceirização em si, em todos os níveis, já deixaram essa grande baixa, que foi o julgamento da ADI 1923. Para que se vislumbre uma reversão da situação ou se evitem danos maiores, é preciso que essa questão seja inserida nas reações de todas as pessoas e entidades que se ponham em defesa da ordem constitucional e dos direitos sociais. Sobretudo precisam tomar ciência da situação aqueles que serão diretamente atingidos por ela, quais sejam, os servidores públicos e os consumidores desses serviços.

Um dos grandes problemas da terceirização, que é o da sua inserção na administração pública, que afronta a Constituição e que favorece à corrupção e ao desvio de verba pública, sem perder, por certo, a sua característica básica que é a precarização, está correndo, de forma livre, ao largo das mobilizações, legitimando-se e até ampliando-se.

Certo que, se esses dispositivos de lei foram declarados constitucionais, também podem ser revogados por lei posterior. É certo também que essa lei específica, para ter vida concreta, precisa da efetivação de convênios e estes podem vir a existir, ou não. Mas, em concreto, é essencial que este tema seja inserido, com urgência, na pauta de discussões em torno do PL 4.330/04, para que se tenha um alcance real da problemática que envolve a terceirização e para que se possa implementar uma resistência consistente à precarização do trabalho e à destruição plena do projeto constitucional de Estado Social.


Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr.

Originalmente publicado no site Carta Maior  - www.cartamaior.com.br


sexta-feira, 8 de maio de 2015

Transgênicos: deputados atropelam direito à informação


Por Sandro Ari Andrade de Miranda*

A irresponsabilidade do arranjo conservador formado no Congresso Nacional parece sem limites, sem nenhuma preocupação com a estabilidade democrática ou com os direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs. Todos os dias somos bombardeados por alguma ação absurda nos nobres parlamentares na defesa dos interesses do poder econômico e em detrimento da maioria da população.

A chegada de Eduardo Cunha ao comando da Câmara abriu as porteiras para um passeio de preconceitos e ressentimentos sociais, além de interesses de grupos econômicos, por meio de projetos de lei absurdos, e por uma onda golpista que ultrapassa o ataque ao governo, elegendo os eleitores, de forma indiscriminada, como alvos.

A nova obra irresponsável da Câmara foi a aprovação de Projeto de Lei nº 4048/2088, de autoria do deputado Luiz Carlos Heinze (PP/RS), um dos vários membros do Partido Progressista na Operação Lava Jato, e que acaba com a rotulagem dos transgênicos comercializados no mercado, atendendo a pleito antigo de multinacionais, como a norte-americana Monsanto, e aos anseios da bancada ruralista que objetivam impor a sua vontade ao conjunto da sociedade.

Tal proposta de lei, além de carecer de constitucionalidade, pois ofende ao princípio da precaução, coloca em risco o meio ambiente, a saúde, e o próprio direito de escolha dos consumidores, na medida em que estas não podem mais optar por um produto contaminado por modificações genéticas ou por outro livre deste tipo de contaminação.

Produtos transgênicos, são aqueles que sofrem modificação do seu código genético pela introdução de material obtido em outra espécie. Diferem, portanto, dos produtos híbridos, que são manipulações genéticas realizadas entre indivíduos da mesma espécie, mas de tipologias diferentes.

Como exemplo de produto híbrido, podemos utilizar a velha experiência do pai da genética moderna, Mendel, que misturou ervilhas de casca lisa com as de casca rugosa, obtendo uma nova variedade de ervilha, com características próprias.

No caso dos transgênicos, o exemplo clássico é a soja resistente ao agrotóxico "glifosato”, produzido pela multinacional Monsanto sob nome de Roundup”. A variedade teve o seu código genético misturado com o de uma bactéria que sobrevive à ação química do produto. Como todos sabem, soja e bactérias não são da mesma espécie, portanto, estamos diante da criação de um produto geneticamente diferente e que, neste caso, atende aos interesses comerciais monopolistas da empresa.

Estudos realizados em 2001 por equipe de cientistas independentes demonstram que a soja transgênica Roundup Ready (RR) [pronta para o Roundup], desenvolvida pela Monsanto, produz proteínas desconhecidas e, desta foram, com efeitos também desconhecidos sobre os demais organismos vivos.

Além da Monsanto (EUA), apenas mais cinco grupos de multinacionais dominam o mercado de transgênicos no mundo agrícola: a Syngenta (Suíça), Dupont (EUA), Basf (Alemanha), Bayer (Alemanha) e Dow (EUA). Desta forma, o projeto do deputado Heinze (PP/RS), aprovado por 320 Deputados na Câmara dos Deputados, defende o interesse de uma ínfima elite empresarial internacional, e coloca em risco tanto a soberania da economia nacional, como a nossa soberania ambiental e alimentar.

O grande risco do comércio indiscriminado de produtos transgênicos sem rotulagem, na contramão da política adotada no resto do mundo que privilegiou o princípio da precaução, é o de colocar os consumidores no mercado da incerteza, tendo em vista que não temos o menor conhecimento sobre os riscos e ameaças destes produtos transgênicos à saúde humana, das demais espécies animais, dos vegetais e ao ambiente.

Para os ruralistas e para as multinacionais de sementes e de agrotóxicos, ao contrário, há a plena certeza de lucros crescentes, ao custo do comprometimento da vida e do patrimônio ambiental e da nossa soberania alimentar, independentemente do que for descoberto adiante.

Enquanto a sociedade se mantiver omissa à onda conservadora e guiada pelos interesses da mídia golpista, o risco do crescimento das ameaças a direitos fundamentais é crescente, e o preço pode ser muito grande, incluindo danos à nossa saúde, ao ambiente, à Democracia, e à própria soberania nacional.


*Advogado e mestre em ciências sociais, mantém o blog Sustentabilidade e Democracia

Outras Palavras

FONTE: Adital

domingo, 3 de maio de 2015

Por quem os índios lutam



Valdenir Munduruku, importante liderança do povo que lhe dá o nome

Encerrado ontem, Abril Indígena de 2015 não defendeu apenas povos originários. Lançou chamado: é hora de proteger direitos conquistados na Constituição de 1988 — e ameaçados pela ofensiva conservadora 


Por João Mitia Antunha Barbosa | Imagem: Jornalistas Livres


A Constituição Federal de 88 já completou 26 anos, e é tempo de fazer uma breve reflexão para interrogar se a alcunha “Constituição Cidadã” ainda se sustenta.

O processo constituinte abriu espaço para significativas inovações em relação às Constituições Federais anteriores – notadamente no campo social, cultural e ambiental –, sedimentando ou inserindo no ordenamento jurídico brasileiro o que certos juristas passaram a chamar de “novos direitos”. Como bem apontou recentemente a professora Manuela Carneiro da Cunha, a CF de 88 teve o mérito de, pela primeira vez, celebrar “a diversidade como um valor a ser preservado”, (….) “indicando que o país queria novos rumos. O Brasil aspirava a ser fraterno e justo.”

Análises recentes sobre os 25 anos de Carta avaliam, no entanto, que a “Constituição Cidadã” apresenta resultados bastante modestos no que se refere à garantia de fato dos direitos de diversos “grupos minoritários”. Isso se torna evidente quando apontamos o foco para os povos indígenas.

De acordo com diversas associações indígenas e indigenistas, dos mais de mil territórios indígenas (TIs) existentes no país apenas cerca de um terço encontra-se regularizado. Os outros dois terços estão em alguma fase do processo de demarcação ou sequer tiveram seu procedimento demarcatório iniciado. Destaquemos ainda que, das TIs demarcadas, mais de 98% encontram-se na Amazônia brasileira. O restante, isto é, menos de 2%, dividem-se pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e porção sul do Centro-Oeste (estado do Mato Grosso do Sul).

Vale notar que da população indígena brasileira – que, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010, soma 896.917 pessoas –, cerca de 433.363 pessoas vivem nos estados da Amazônia Legal e 463.554 nos demais estados. Trocando em miúdos, a justaposição desses dados nos indica que a população indígena que vive nos estados do Sul, Sudeste, Nordeste e Mato Grosso do Sul representa mais da metade da população indígena brasileira total, ocupando, porém, menos de 2% das Terras Indígenas atualmente demarcadas.

Essa desproporção manifesta um contraste flagrante no que se refere à situação fundiária dos Povos Indígenas e revela o drama humanitário ao qual estão submetidos diversos deles (dentre os quais os Guaranis e os Terenas do Estado do Mato Grosso do Sul), perpetuando injustiças, preconceitos, violência e a falta de direitos fundamentais e de cidadania, acumulados ao longo de todo o processo de colonização do Brasil. Onde estaria, nesta medida, a valorização da diversidade e a justiça social preconizadas pela constituição cidadã?

Não bastasse um quadro político e legal tradicionalmente já bastante inquietante para os direitos indígenas, assistimos agora a uma nova e feroz investida de grupos extremamente conservadores de nossa fauna política, muitos deles ideologicamente apegados à estrutura fundiária arcaica do país e economicamente vinculados ao agronegócio. A dita bancada ruralista, composta por mais de 200 deputados e senadores, é responsável por inúmeros projetos que tramitam atualmente no Congresso Nacional Brasileiro. Citemos apenas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, que tem o intuito de alterar a constituição para restringir ou aniquilar direitos – sobretudo territoriais – conquistados pelos povos indígenas e reconhecidos pelo Estado brasileiro após séculos de intensas batalhas em diversos planos. Reconhecidos, pois se tratam de direitos preexistentes à formação do próprio Estado. Estamos falando de direitos territoriais de povos e nações que, anteriormente à criação do estado nacional brasileiro, já possuíam elos com esta terra que hoje habitamos. Esse direito, juridicamente denominado de “indigenato”, foi reconhecido, e não criado pela CF 88.

Para deixar claro: o direito de ocupação das terras indígenas, assegurado em nossa Constituição, é um direito originário e, neste sentido, as demarcações são apenas o reconhecimento, a garantia fática, de um direito pré-existente sobre tais territórios. O Professor Dalmo Dallari é taxativo neste sentido, dirimindo qualquer dúvida que pudesse existir sobre a pertinência da PEC 215. Ele afirma categoricamente que a proposta é flagrantemente inconstitucional, uma vez que demarcações e homologações de Terras Indígenas são atribuições exclusivas do Poder Executivo, pois se tratam de procedimentos de natureza administrativa.

Em entrevista à Carta Capital, o antropólogo e fundador do Instituto Socioambiental, Beto Ricardo, afirma que “ao transferir uma competência executiva para o legislativo, a bancada ruralista pretende paralisar os processos ou retalhar territórios com base em critérios políticos, o que é flagrantemente inconstitucional”, e acrescenta que “os índios entendem que o texto constitucional vigente constitui um pacto entre o Estado brasileiro e os seus povos. Mudar esse texto, de forma expedita, nebulosa e unilateral, representaria o rompimento desse pacto. É algo inaceitável”.

Neste mesmo sentido, na avaliação de diversas organizações indígenas essas reformas legais constituem um verdadeiro atentado, pois, na prática, implicarão no fim de novas demarcações. O risco não está apenas em situações futuras, ele é absolutamente atual! Como já foi dito, muitos territórios indígenas, por diversos fatores, encontram-se ainda em alguma fase do processo de demarcação ou aguardam na fila para ter seu processo iniciado e ficariam com sua homologação na dependência do Congresso Nacional. As lideranças indígenas mobilizadas esse mês de abril no Acampamento TerraLivre – ATL são unânimes ao afirmar: “como contamos nos dedos quantos congressistas defendem a causa indígena, com certeza nenhuma terra será demarcada”.

Como justificar, portanto, esse tipo de investida, considerando que a sociedade brasileira – com o intuito de enfrentar passivos históricos inadiáveis, como os direitos culturais e territoriais dos povos indígenas ou daqueles traficados desde a África – determinou soberanamente a elevação e o assentamento de determinados valores político-sociais à categoria constitucional?

Vale destacar,no entanto, que o movimento indígena (com seus aliados) representa um tipo de movimento social bastante singular. Além da aguerrida resistência que lhe é particular, é capaz de se organizar com imenso dinamismo tanto no universo digital quanto pelos meios (digamos) analógicos. Iniciativas  pulverizadas nas mídias digitais, assim como ações diretas de enfrentamento e resistência face aos desafios legais e políticos atualmente impostos são prova da enorme capacidade de resistência e resiliência dos povos indígenas no Brasil. Além disso, possuem capilaridade por toda a extensão do território brasileiro. Isso demonstra a posição estratégica em que se encontram e a condição estratégica que deveria ser reconhecida. Estes povos são atores de sua história, são donos de seus territórios, nunca foram e nunca serão presa fácil! Engana-se quem imagina que esse país poderá existir sem eles…

Retornando à nossa indagação inicial. Fica patente que a energia despendida pela bancada ruralista – configuração política contemporânea de uma elite secularmente encarregada do massacre a indígenas, negros e camponeses – na tentativa inconstitucional de transferir ao poder legislativo a atribuição de demarcar as Terras Indígenas ou de transformar em regra as exceções ao direito de usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios representa, em última análise, não apenas um ataque às populações diretamente afetadas, mas à sociedade como um todo. Contando com uma suposta ingenuidade política do povo brasileiro, setores econômicos e bancadas políticas insistem em tentar arrogar poder e competência que, constitucionalmente, não lhes foram atribuídos pela sociedade brasileira.

A nosso ver, essa tentativa coloca em xeque não apenas os direitos específicos de “populações minoritárias”, mas um projeto de sociedade. E este projeto de sociedade foi o que impulsionou a redemocratização do país, o que gerou a Constituinte e deu vida à nossa atual Constituição. Ou seja, existem direitos – e os direitos indígenas estão entre eles – sobre os quais não se pode admitir retrocesso, pois são a essência e o motivo de ser da nossa democracia.



Sobre o Abril Indígena acesse aqui

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Primeiro de maio: relembrando o massacre de Chicago

Por Aluizio Moreira
Trabalhadores, despertai! - Serov


O dia que deu origem às comemorações internacionais do 1º. de maio, não foi um dia qualquer. Não foi decorrente de qualquer tipo de acontecimento que justificasse qualquer tipo de festividade, recheado por discursos de parlamentares e atos presidenciais estabelecendo um novo salário mínimo. Aquela manhã de maio de 1886, foi mais um dia de luta da classe operária pela conquista das 8 horas de trabalho. A limitação da jornada de trabalho, remonta a 1817 quando Roberto Owen, industrial  e socialista utópico inglês, na sua proposta de criação de comunidade igualitária, fixava a jornada de trabalhos em 8 horas diárias.

A luta pela jornada de 8 horas ganhou novos impulsos com o surgimento de organizações dos operários, a nível nacional e internacional. Desde os primeiros Congressos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), fundada em Londres em 1864 por iniciativa dos operários franceses e ingleses, a reivindicação da redução da jornada de trabalho, fazia sempre parte das suas pautas em Congressos e Conferências dos trabalhadores. No seu 2º. Congresso ocorrido em 1866 na cidade de Genebra, a Primeira Internacional discutiu em plenário a questão das 8 horas, considerada tão importante que era vista como "o primeiro passo para a emancipação do trabalhador". Nos Congressos seguintes o tema sempre fez parte das discussões nos encontros internacionais como era Bandeira de luta nas mobilizações empreendidas pelos trabalhadores industriais.
  
Naquela época, que marcou o início da organização operária a nível internacional, além das aviltantes condições de trabalho, dos salários insuficientes até mesmo para a reprodução da própria força de trabalho, da exploração da mão-de-obra das mulheres e crianças, o regime de trabalho nas indústrias dos países capitalistas chegava a 12, 14, 16 horas diárias, com no máximo uma hora para refeições, como denunciou Friedrich Engels em "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra"

Fora da Europa, até então centro industrial do mundo, nos países que adotaram o modo capitalista de produção, os mesmos problemas eram vivenciados pelos trabalhadores, como conseqüência da própria lógica do capital: desemprego, baixos salários, condições desumanas de vida e de trabalho, exploração da mão-de-obra feminina e infantil, horas exaustivas de trabalho, péssimas condições de saúde e de moradia. 

No norte dos Estados Unidos a situação dos trabalhadores se identificava a dos trabalhadores europeus. E o movimento sindical norte-americano surgiu já em 1827, ano em que os operários realizaram a primeira greve, com a criação da União das Associações dos Trabalhadores da Filadélfia. Em 1866 num Congresso Operário realizado em Baltimore, uma das resoluções aprovadas em Assembléia dizia respeito à adoção da jornada de 8 horas de trabalho, que deveria, segundo o Congresso, estender-se a todos os trabalhadores do País. Evidente que os patrões não iriam acatar a decisão de uma Assembléia Operária. Como não iriam acatar a decisão do Senado americano que em 1868 determinou o regime de 8 horas para todos os empregados da União.

Em 1877, os ferroviários nos Estados Unidos entram em greve especificamente pela implantação da jornada de 8 horas: os trabalhadores perderam 30 companheiros mortos pelas forças policiais.

Na década de 1880, os Estados Unidos atravessavam uma  grande crise econômica de superprodução, provocando uma onda de desemprego que atingiu milhares de operários em vários centros industriais norte-americanos: Nova Iorque, Detroit, Chicago e Cincinnati. Mas não era só o desemprego que agravava a situação dos trabalhadores das indústrias naquele país. O crescimento da utilização da mão-de-obra de mulheres e de crianças (mais barata que a mão-de-obra masculina), o aumento do custo de vida, o aumento da jornada de trabalho, inclusive com o trabalho nos domingos e feriados,  eram os mecanismos utilizados pelos empresários para minorar o impacto da crise sobre seus lucros.

Em 1884 a Federação Americana do Trabalho (American Federation of Labor - AFL), fundada em 1881, promoveu um Congresso de Trabalhadores em Chicago, centro que congregava milhares de operários. Nessa ocasião o Secretário da AFL, Frank K. Foster, propõs a realização de uma greve geral nacional a fim de forçar os patrões a reduzirem o horário da jornada de trabalho. O operário Gabriel Edmonston ao endossar a proposta de Foster, foi mais longe: sugeriu que a partir de 1º. de maio de 1886 os trabalhadores deveriam considerar o dia de trabalho de 8 horas, paralisando suas atividades naquelas indústrias que não acolhessem a decisão daquele Congresso. A Assembléia se manifestou favoravelmente às palavras de Edmonston.

O movimento operário cresce em organização e intensidade, consequência da situação lastimável dos trabalhadores. Cresce o número de organizações da classe operária,sobretudo nos anos 1882-1885; surgem no país mais de trezentos jornais produzidos pelos próprios trabalhadores e por grupos socialistas e anarco-sindicalistas: “Laborer” (Massachusetts), “Craftsman” (Washington), “Labor Tribune” (Pittsburg), “New-Ypor”, “Volks-Zeitung”, “Der Sozialist”, “The Alarm”, “Arbeiter-Zeitung". Estes dois últimos dirigidos respectivamente por Albert Parsons e August Spies, duas vitimas do massacre de Chicago.

A crise se aprofunda e o movimento operário se amplia, tendo como principal reivindicação a redução da jornada de trabalho. Por volta de 1886, o número de participantes nas manifestações aumenta doze vezes. Cerca de 320 mil trabalhadores  saem às ruas em diversos estados, em cumprimento à resolução do Congresso de Trabalhadores acontecido em 1884, promovido pela Federação Americana do Trabalho (AFL).

Os principais centros industriais dos Estados Unidos paralizam suas atividades no dia 1º de maio de 1886, para o desespero dos empresários e políticos norte-americanos.

O massacre de Chicago

Repressão policial - Chicago 1886
Em Chicago, cidade considerada centro do anarco-sindicalismo nos Estados Unidos, ALBERT PARSONS e AUGUST SPIES lideraram uma passeata naquela manhã de sábado, após uma Assembleia realizada na praça Haymarket, reivindicando a redução da jornada de trabalho e melhoria das condições de trabalho.  As mobilizações continuaram no domingo e na segunda-feira. Neste dia, em frente à fábrica McCormick Harvester, a polícia disparou vários tiros contra uma multidão de operários desarmados, bombas foram lançadas contra a multidão, cujo saldo somou 6 mortos, 50 feridos e mais de cem trabalhadores presos. Entre os presos se encontravam os líderes sindicais ALBERT PARSONS, AUGUST SPIES, SAM FIELDEN, OSCAR NEEB, ADOLPH FISCHER, MICHEL SCHWAB, LOUIS LINGG e GEORG ENGEL.

Uma onda de repressão se abateu sobre o movimento operário: a imprensa conservadora intensificou uma campanha difamatória contra os operários; as organizações e os jornais operários  foram fechados; prisões em massa foram efetuadas sem qualquer formalização de culpa; os operários identificados como líderes do movimento foram levados a julgamento, acusados de incitar o povo à violência, como autores dos disparos  e das bombas e consequentemente pelas mortes decorrentes da manifestação.

No dia 21 de junho do mesmo ano teve inicio o julgamento dos operários. 

No dia 9 de outubro de 1886 foi proferida a sentença:ALBERT PARSONS, AUGUST SPIES, ADOLPH FISCHER, GEORGE ENGEL, e LOUIS LINGG, foram condenados à morte por enforcamento. SAMUEL FIELDEN e MICHAEL SCHWAB, à prisão perpétua. OSCAR NEEBE, a quinze anos de prisão.


À caminho da forca
Um ano depois, no dia 11 de novembro de 1887, os condenados á morte foram enforcados publicamente, exceto LOUIS LINGG que estranhamente  suicidou  na prisão acendendo com uma ponta de cigarro, o pavio de uma bomba de dinamite.(Atualmente a maioria dos historiadores admite que Lingg tenha sido assassinado).

Seis anos depois, pressões internacionais e nos Estados Unidos, fizeram com que o processo fosse revisto e a sentença fosse anulada, o que favoreceu SAM FIELDEN, MICHAEL SCHWAB e OSCAR NEEB.

Os acontecimentos de Chicago marcaram para sempre o Movimento Operário Internacional e passaram a ser lembrados em vários encontros da classe trabalhadora em vários países.

No Segundo Congresso da IIa. Internacional (fundada em Paris em 1889) realizado em Bruxelas no mês de setembro de 1891, foi aprovada a proposta que tornou permanente a celebração do 1º. de maio como marco da luta e da solidariedade internacional dos trabalhadores.

O movimento sindical e políticos liberais nos Estados Unidos e no mundo, não deixaram de protestar e se mobilizar internacionalmente contra as condenações dos operários.

Em 26 de julho de 1893, a justiça norte-americana concedeu o “perdão absoluto” aos sobreviventes Fielden, Neebe e Schwab.

A institucionalização do 1º. de maio porém não foi facilmente aceita pela classe dominante em   muitos países, ou quando aceita, procurou-se descaracterizar o seu significado, transformando a data num feriado a mais nos calendários nacionais. Mas apesar de toda tentativa de se esvaziar a importância dessa data, de se procurar ocultar o verdadeiro sentido do 1º. de maio, o movimento operário tem mantido vivo o espírito de luta de 1886.

Tinha razão August Spies, quando em sua defesa diante das autoridades que condenavam-no, se expressou com as seguintes palavras:

Monumento aos mártires de 1886
Praça Haymarket - Chicago
"Se com o nosso enforcamento vocês pensam em destruir o movimento operário - este  movimento do qual  milhões de seres humilhados que sofrem na pobreza e na miséria, esperam a redenção - se esta é sua opinião, enforquem-nos. Aqui terão apagado uma faísca, mas lá e acolá, atrás e na frente de vocês, em todas as partes, as chamas crescerão. É um fogo subterrâneo e vocês não podem apagá-lo". 

Já no local de execução, minutos antes do seu enforcamento, Spies pela última vez se dirige aos seus algozes:

"Adeus, o nosso silêncio será muito mais potente do que as vozes que vocês estrangulam". 

E mais uma vez Spies tinha razão.

O 1º de maio no Brasil

Quando o Segundo Congresso da IIª Internacional, reunido em Bruxelas no mês de setembro de 1891 estabeleceu a celebração permanente do 1º de maio, íamos completar dois anos de regime republicano.

As organizações dos trabalhadores eram associações de resistência, de auxilio mútuo, que congregavam artesãos de diversos ramos de atividades, preponderantemente manufatureiras e de serviços. 

A situação dos operários brasileiros, agrupados nas poucas indústrias que iam surgindo, era a mesma de seus companheiros de um capitalismo nascente na Europa um século antes: exploração do trabalho de mulheres e menores, baixos salários, precárias condições de vida, longas jornadas de trabalho.

Teixeira Mendes
Talvez por esses motivos, a primeira tentativa de se reduzir a jornada de trabalho, não tenha partido dos próprios trabalhadores, mas de representantes de uma elite intelectual e política: Teixeira Mendes e Miguel Lemos. Juristas, positivistas ortodoxos, elaboraram um anteprojeto encaminhado ao Ministro da Guerra, ainda durante o governo provisório, no qual propunham o estabelecimento de um salário mínimo, aposentadoria, 15 dias de férias anuais, seguro contra acidentes do trabalho e limite de 7 horas de trabalho diário, beneficiando as oficinas públicas, isto é, os trabalhadores dependentes do Estado. O anteprojeto simplesmente desapareceu entre uma sala e outra dos Ministérios.

No mesmo ano de 1890, meses depois das “preocupações” dos dois juristas, há noticias da primeira iniciativa operária de proposta da jornada de 8 horas de trabalho: em São Paulo, trabalhadores reunidos no salão do Teatro São José, para formação de um Partido Operário, encarregaram Francisco Cascão, Miguel Ribeiro e Carlos Hermida, de elaborarem um Programa para o Partido a ser criado. Fizeram constar no item 2º do referido Programa “promover a fixação de oito horas de trabalho”. O Partido muito cedo desapareceu, e com ele o seu Programa.

Telles Junior 
Em 1891, um projeto via legislativo, de autoria do deputado Teles Júnior, é encaminhado à Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, fixando em 8 horas o dia normal de trabalho. Para uns historiadores, o projeto não foi aprovado. Para outros foi aprovado com uma emenda de outro deputado que acrescentava ao art. 1º do referido projeto, “salvo em casos em que as partes resolvam o contrário”. Emenda que na verdade anulava a obrigatoriedade da jornada de 8 horas. 

No Rio de Janeiro, em 1892, no artigo 26 do Programa de um novo Partido Operário que se tentava criar naquela ocasião, constava a jornada de trabalho de 8 horas. Não se teve mais noticias, nem do Partido, nem do Programa.

No que se refere à comemoração do  1º de maio, tudo indica que a iniciativa só foi acontecer em 1894, oito anos após o Massacre de Chicago. Em São Paulo, no mês de abril daquele ano, socialistas e anarquistas aprovam em reunião, as Resoluções do Segundo Congresso de 1891 da IIª Internacional, e propuseram celebrar o 1º de maio a partir daquele mesmo ano (1894). A policia informada a respeito, invade o local da reunião e prende seus organizadores.

Em Santos, no entanto, a ideia se concretizou. Em lugar ignorado pela policia, um grupo de socialistas consegue promover uma reunião comemorativa da data.

Nos anos seguintes, outras comemorações registradas por militantes anarquistas e socialistas aconteceram em alguns Estados, com apresentação de peças teatrais, conferências e lançamentos de jornais operários e socialistas com títulos alusivos à data. Paralelamente às comemorações do 1º de maio, trabalhadores mobilizados para os eventos, voltaram a reivindicar, embora isoladamente por associação, pela conquista das 8 horas de trabalho.

1º Congresso Operário Brasileiro - 1906
Foi com a realização do Primeiro Congresso Operário Brasileiro em 1906, do qual  participaram delegados representando várias organizações operárias de todo país, que numa Assembleia bastante disputada, se discutiram e aprovaram resoluções que motivaram as lutas posteriores pela conquista das 8 horas e se programaram celebrações de maiores envergaduras do 1º de maio, não como uma “festa do trabalho” – dizia a resolução – mas “como protesto de oprimidos e explorados”.  Ficou deliberado naquele encontro, que no ano seguinte (1907) as organizações operárias ali representadas, se empenhariam em promover as comemorações daquela data, como marco histórico da luta dos trabalhadores em todo mundo.

As informações que temos dão conta das violências praticadas pelas forças policiais em todo país naquela manhã de 1907. Mas também dão conta da capacidade de luta e de organização do operariado brasileiro, que respondeu às arbitrariedades com greves que se sucederam em várias partes do território nacional, reivindicando a redução da jornada de trabalho. Tamanha foi a pressão dos trabalhadores, que alguns industriais, a fim de evitarem novos conflitos, portanto queda na produção fabril, chegaram a entrar em acordo com seus operários, aceitando a redução da jornada de trabalho. Mas as lutas continuaram. As campanhas pela limitação do horário de trabalho e pela celebração do 1º de maio, cada ano mobilizavam maior numero de organizações e ao mesmo tempo repressões cada vez mais violentas pelas autoridades no intuito de impedir que tais movimentos acontecessem.

Manifestação 1º de maio de 1915
Praça da Sé - São Paulo
Em 1914 a imprensa operária denunciava as manobras do governo e empresariado para esvaziarem o 1º de maio, transformando-o em feriado, o que aliás já vinha acontecendo com o enfraquecimento do chamado “sindicalismo revolucionário” e com a ascensão das alas moderadas do movimento operário.

Em 26 de setembro de 1924, um decreto presidencial determinava: “É considerado feriado nacional o dia 1º de maio consagrado à confraternização universal das classes operárias e às comemorações dos mártires do trabalho; revogadas as disposições em contrário”.  O objetivo da luta pela conquista das 8 horas de trabalho não tinha sido atingido. E as mobilizações continuaram.

Ano a ano, a celebração do  1º de maio que originalmente era organizada pelos diversos sindicatos, associações de trabalhadores, federações, centrais operárias, partidos socialistas,  marcada por passeatas, comícios, palestras alusivas à data, protestos, sempre com apresentação de reivindicações em beneficio dos trabalhadores, passou a ser promovida pelos governos (federal e estaduais) como uma festividade, recheada de discursos de parlamentares e premiações para o operário padrão do ano.  Despolitizou-se, desideologizou-se o 1º de maio.  Ou melhor, politizou-se, ideologizou-se em sentido oposto.

Atualmente o peleguismo, a política de compromisso, a esperança de setores do movimento operário pela solução  parlamentar para seus problemas e a paulatina tutela do sindicalismo pelo Estado, a partir de Getulio Vargas, selou até hoje o destino do sindicalismo brasileiro.



Obras consultadas:

BARRET, François. Historia del trabajo. Tradução: Alberto Pla, Buenos Aires: Editorial Universitaria, 1975.
BATALHA, Claudio Henrique de Moraes. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 
CARONE, Edgard. Classes sociais e movimento operário. São Paulo: Ática, 1989.
DOMMANGET, Maurice. Historia del primero de mayo. Barcelona: Laia, 1976.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução: Anália C. Torres, Porto: Afrontamento, 1975.
FERREIRA, Jorge Luiz. O movimento operário norte-americano. São Paulo: Ática, 1995.
HOBSBAWM, Eric J. Mundo do trabalho: novos estudos sobre história operária. Tradução: Waldea Barcellos e Sandra Bedran, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
LEFRANC, Georges. O sindicalismo no mundo. Mem Martins: Europa-America, 1974.
MORELLI, Leonardo (Org.) El sindicalismo revolucionário en el Brasil. São Paulo: Acadêmica, 1988.
RODRIGUES, Edgar. Os libertários: ideias e experiências anárquicas. Petrópolis: Vozes, 1988.
_____.Socialismo e sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969.
_____.Alvorada operária: os congressos operários no Brasil. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979.



Nota do Autor: 
Este artigo foi originalmente publicado no “Diário da Borborema”, Campina Grande (PB), em 1º de maio de 1992. Postamos a matéria nesta data (1º de maio de 2012), reproduzindo-a sem qualquer alteração no seu conteúdo e forma, com exceção das fotos incluídas nesta edição.

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