Roberto Leher, reitor recém-eleito d UFRJ, dispara: sistemas de avaliação atuais desestimulam criatividade e reflexão; educação superior precisa buscar novo padrão civilizatório |
Entrevista a Pedro Almeida Ferreira e Raquel Varela, na Revista Rubra
Com um extenso trabalho de pesquisa em políticas públicas na educação, Roberto Leher falou-nos do ensino universitário e da produção acadêmica, da investigação científica e da ideologia neoliberal aplicada à educação.
O que é que pensa do processo de avaliações externas e da medição da produtividade do trabalho universitário por número de publicações em revistas científicas?
No Brasil, a avaliação externa de toda a pós-graduação é feita pela CAPES (Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior ). Esta determina prazos para mestrado e doutoramento, estabelece a quantidade mínima de publicações por docente em revistas por ela qualificadas e, conforme a pontuação do programa de pós, atribui uma nota que pode ir de 1 a 7. Entretanto, nem todos programas podem obter a nota 7, a despeito de sua qualidade, pois este conceito é restrito a 3 ou 5 programas por área em todo país. É um campeonato em que a maioria, apesar da febre produtivista, ficará para trás. Programas com índice igual ou inferior a 3 podem ser fechados. A coerção econômica dá-se pela associação entre a nota obtida e o número de bolsas para os estudantes, bem como o apoio a projetos de pesquisa, etc. É uma forma de submeter o trabalho acadêmico às diretrizes gerais do Estado e do mercado, em total desconsideração com a prerrogativa da autonomia universitária constitucionalmente assegurada em 1988.
Não se verifica o mesmo rigor da aferição do desempenho nos novos campi universitários públicos e nos Institutos Federais de Educação Tecnológica. Nestes, os cursos são muito semelhantes aos que, na Europa, seguem o Protocolo de Bolonha — cursos de 2 ou 3 anos. Os professores que atuam nestes cursos dificilmente conseguirão seguir para a pós-graduação e terão de se conformar com a docência em cursos massificados, em geral, com turmas com enorme número de estudantes. Nas instituições privadas, responsáveis por 75% das matrículas, a situação é muito mais grave. É uma educação aligeirada, um genocídio intelectual.
A obsessão de que a única produção acadêmica relevante é a veiculada pelas revistas qualificadas pela CAPES relaciona-se com o que podemos chamar de “rotas de excelência” e com o que é dado a pensar na universidade. As pequenas recompensas materiais que o Estado assegura a alguns pesquisadores — bolsas, recursos para os projetos, viagens, etc. — não são para todos. É preciso criar bloqueios. As revistas são a forma aparentemente “neutra” e “legítima” de segregação, de seleção, de estabelecer os temas desejáveis. O espaço das revistas pertence sobretudo aos “excelentes” que fazem pesquisas “pertinentes”. No entanto, mesmo estes estão presos, em sua maioria, aos interesses das corporações, desenvolvendo “inovação tecnológica”, e de programas de governo, especialmente relacionados com a gestão tecno-científica da pobreza e do controle social. O poder simbólico destes pesquisadores no campo científico decorre em grande parte da capacidade de captação de recursos. Existem exceções, grupos de pesquisa que, apesar de não estarem inseridos na lógica imediata do capital, sobrevivem nesse sistema, mas com alto custo pessoal.
De que forma é que essa captura da universidade pelo capital empobrece a investigação científica e a liberdade do docente?
Eis a grande questão! O Estado, que estruturou o capitalismo monopolista durante a ditadura-militar do Brasil, apropriou e incorporou conhecimento em vários domínios — energia, telecomunicações, engenharias etc. — com as empresas estatais. À medida que estas foram privatizadas, os seus departamentos de Pesquisa e Desenvolvimento foram fechados. Hoje, as universidades prestam esses serviços e muitos professores viraram funcionários de corporações. Em Berkeley, o Instituto de Biociências e Energia e, na Universidade de São Paulo, a Escola Luiz de Queiroz, recebem recursos da coalizão liderada pela British Petroleum para monopolizar o conhecimento, e a produção, da agro-energia mundial, o etanol. Cabe indagar: como estes grupos financiados pela corporação poderão avaliar de modo isento os impactos sócio-ambientais desta forma de produção de energia?
A situação paradoxal é que grande parte dos recursos de pesquisa é destinada a inovação tecnológica; contudo, a inovação, nos Estados Unidos e nos países do G7, ocorre fundamentalmente dentro das empresas e não na universidade. No Brasil, como realidade geral, a inovação tecnológica, no sentido próprio do termo, não existe. Somos um país capitalista dependente, inserido em circuitos produtivos em que o grosso da produção industrial já recebe tecnologia pronta. Então, o que a universidade está fazendo é simplesmente prestar serviços para corporações que nem sequer necessitam investir em laboratórios e em pessoal qualificado e, ao adquirir um serviço, desembolsar seus próprios recursos, pois os referidos serviços contam com recursos públicos do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa, atualmente chamado Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econêmico e Social) …
Há, assim, um novo ethos acadêmico: o do professor-empreendedor, em que a universidade é uma peça na engrenagem do capital. A minha hipótese é que uma das novas funções da universidade é aumentar o exército industrial de reserva.
Explique-nos melhor essa hipótese
O grande desafio da última década foi a socialização do que os pós-modernos chamam de “excluídos”, os que estão afastados do controle estatal ou de uma socialização que os integre como força de trabalho.
Nos anos 90, o desemprego cresceu muito no Brasil — chegou a 45 ou 50% entre a população jovem mais explorada, tal como hoje em países europeus. A força de trabalho desempregada ou em rotação de trabalhos já mantinha os salários muito baixos, por isso, os jovens das favelas, por exemplo, não se viam como potenciais assalariados e procuravam formas alternativas de vida, trabalhos informais, etc.
Com o ciclo expansivo 2003-2008, foi necessário fazer com que essa juventude das periferias das grandes cidades se percebesse como força de trabalho potencial. Existem “programas focalizados” para cada fracção da classe trabalhadora até então fora do mercado de trabalho: programas de educação para jovens negros e para mulheres jovens da favela – mas, se examinarmos as condições em que acontecem, percebemos que são cursos que asseguram tão somente rudimentos de conhecimentos, em geral, mais ligados à socialização condizente com o “espírito do capitalismo”.…
E a educação joga esse papel com o ensino profissional…
Sim. O ensino profissional é estratégico. Para uma grande parte da população, começa a abrir-se a possibilidade de educação superior e de formação profissional pós-ensino médio, pois a taxa bruta de matrículas na educação superior ainda é muito baixa, 28%. Mas, no Brasil, 75% das matrículas na educação superior – e na formação profissional é ainda maior – são privadas e mercantis. A educação superior está sendo ocupada pelos setores com fins lucrativos, e já não são, como até 2005, empresas familiares, agora são setores financeiros, vinculados a bancos que organizam fundos de investimento…
Uma das grandes conquistas da revolução em Portugal foi o ensino unificado, que vem sendo destruído. Nos anos 90, com as medidas chamadas neoliberais, criou-se a via de ensino e a via científica na formação universitária. Observa isto no Brasil?
No processo de redemocratização, lutamos, como vocês, para ter universidades capazes de assegurar uma formação geral, culturalmente ampla e científica, para que todos tivessem uma visão integrada, inventiva e crítica do seu labor. Mas isso vem sendo duramente combatido há muitos anos. Em meados da década de 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso promoveu uma disjunção entre a formação profissional em nível médio e a formação propedêutica, científica, impondo um sistema de educação profissional que não formava os jovens, mas os treinava para o trabalho simples. E é esse o modelo dos atuais Institutos Federais e, sobretudo, do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), um vasto programa de formação utilitarista, voltado para o adestramento dos jovens, ofertado principalmente por organizações de ensino privadas, vinculadas aos sindicatos patronais, mas mantidos com verbas públicas. Quando as entidades patronais reclamam da falta de mão de obra qualificada, em rigor estão reclamando da baixa escolaridade dos jovens que os afasta do exército industrial de reserva, situação que preocupa o patronato, pois o modelo econômico brasileiro tem como fundamento a superexploração do trabalho.
A preocupação com a chamada sociedade do conhecimento é puramente proclamatória. No Brasil foi criado um programa, que seria financiado com verbas do Estado e das empresas, chamado “Ciência sem Fronteiras”, para que jovens fizessem parte da graduação em universidades na Europa e Estados Unidos. O programa foi criado, mas as empresas não cumpriram sua parte, colocando recursos para ampliá-lo!
Por que?
Não está na estratégia empresarial organizar um setor de pesquisa e desenvolvimento próprio. A associação com o imperialismo permite que as frações burguesas locais tenham lucros exorbitantes. O Brasil, hoje, regride na sua base produtiva. Tem uma industrialização importante, mas de menor sofisticação tecnológica. Mesmo a agricultura possuiu hoje uma base tecnológica muito mais subordinada do que a dos anos 70. A chamada revolução verde exigia domínio da genética e de estudos sobre evolução e ecologia, pois as sementes híbridas tinham de estar adaptadas aos ecossistemas brasileiros. Mas hoje, o padrão dos transgênicos da Monsanto não exige isso! A simplificação da formação universitária não é um problema geral para o setor produtivo.
O aumento do exército industrial de reserva com formação precária é estratégico para a organização do capital ou é consequência de uma educação mercantilizada? Pergunto isto porque, em Portugal, vemos empresas a pedir engenheiros pré-Bolonha…
Aqui, a Petrobras também não aceita candidatos para as engenharias vindos desses cursos aligeirados. É uma contradição que não deixa de ser irônica. O sistema de pós-graduação existente nas áreas consideradas prioritárias cumpre esse papel de fornecimento de força de trabalho com maior sofisticação em áreas muito específicas.
Em relação ao grosso da força de trabalho, a formação é precária e brutal mas funcional ao capital. No Brasil, mais de 1 milhão de jovens – 16% das matrículas no ensino superior, sendo 84% em organizações privadas – são feitas em cursos a distância, sem presença em laboratório. Teremos químicos que nunca viram uma pipeta, biólogos que nunca viram um microscópio!
Mais do que o interesse pragmático de formação da mão-de-obra para postos de trabalho x, y ou z, a preocupação parece ser a governabilidade. A preparação da força de trabalho é construída a partir de uma plataforma de socialização para o ethos capitalista. A partir daí, constroem-se competências mais específicas para padronizar a força de trabalho e facilitar a mobilização do capital.
O que acha dessa palavra, “competências”?
À medida que foram feitas algumas teses de doutoramento e estudos mais sistemáticos sobre esta questão, tornou-se claro que a noção não tem origem na educação. Ela surge nos processos de reestruturação produtiva, na Europa e Estados Unidos, a partir dos anos 70 e, mais nitidamente, nos 80. Surge vinculada à fragmentação do trabalho e da identidade do trabalhador, para destruir o conceito de carreira, de categoria profissional, que sustentava a organização sindical..
Mas a mente humana não opera por meio de “competências”! Isto não tem suporte científico! É ideológico. Diz-se que o manejo do conhecimento se dá por via de “competências” que devem ser aferíveis e quantificadas por testes como o PISA ou, aqui no Brasil, o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). O objectivo é definir mundialmente por meio do Projecto Tunning o que os organismos internacionais desejam de um curso universitário, quais as “competências” básicas que deve garantir.
Não é também uma forma de criar mão-de-obra flexível?
Sim, o salário do trabalhador já não depende do contrato, varia de acordo com o desempenho. E como se afere desempenho? Em alguns setores, se um trabalhador produziu 20 mercadorias e outro 25, então, este merece gratificação. Mas noutros é mais difícil. No setor de serviços, e mesmo na área das indústrias que não pertence à parte final da produção, foi necessário criar descritores aferíveis. Aí surgem as “competências”. É o mesmo movimento que o capital vem fazendo com os professores, o de passar de uma subordinação formal a uma subordinação real do Trabalho ao capital, de alcançar uma expropriação sem precedentes.
Na educação básica, isso é feito com o uso de cartilhas, livros aligeirados, materiais pedagógicos que o professor repete. Nesta situação, o docente não é protagonista das suas aulas: só aplica cartilhas. E quem as produz são as corporações. Aqui, no Brasil, é um grupo chamado Grupo Pearson, dono das maiores editoras do mundo, do Financial Times e The Economist.
Hoje, o que fazemos na universidade?
É uma pergunta constrangedora. Há muitas formas de fazer universidade. E acho que há uma forma dominante, hegemênica, que está socializando a juventude para o capitalismo. A universidade está sendo direcionada para a formação da força de trabalho que o capital precisa. Existem contradições, com mediações específicas, mas é essa a tendência geral, e parece-me que foi naturalizada, legitimada.
Que papel devia cumprir a universidade numa sociedade desejável?
Historicamente, a função social da universidade foi constituída num processo de lutas em defesa de uma universidade que produzisse ciência e tecnologia, não que prestasse serviços. A maior preocupação, hoje, é a mudança dessa função social em prol da pesquisa e desenvolvimento, da inovação, algo que deveria ser realizado nas empresas.
Numa sociedade socialista, a universidade deveria ser espaço de convergências de movimentos sociais e pesquisadores. Se queremos uma agricultura agro-ecológica, temos de produzir e socializar conhecimento científico rigoroso sobre ecologia, sobre os solos, o uso cuidadoso das reservas aquíferas, trabalhar em prol da soberania alimentar, conhecer as sementes crioulas (nativas), e isso exige conhecimentos produzidos em conjunto com os camponeses, os povos originários. São desafios epistemológicos e epistêmicos.
A pesquisa sistemática, livre e em prol do bem viver dos povos é indispensável em todos os domínios. A humanidade está desafiada a produzir um outro horizonte civilizatório que não o da barbárie do capital. A universidade deveria ser uma instituição para isso!