Por Cristiano Morsolin
O Congresso Internacional de Pedagogia Social & Simpósio de Pós-Graduação, em sua quinta edição, realizado, recentemente, em Vitória [Estado do Espírito Santo – Brasil], foi um evento dedicado a discutir, de maneira ampla, a regulamentação da Educação Social como profissão no Brasil; a formação do profissional pedagogo social; e as áreas de atuação que entendem a Pedagogia Social como a Teoria Geral da Educação Social.
Em face da opção política do atual governo de fazer do Brasil uma "pátria educadora”, o V CIPS questionou o lugar que deve ocupar a "educação popular, social e comunitária nas políticas públicas no Brasil”, em um momento em que se discute o Sistema Nacional de Educação, o Plano Nacional de Educação, a Reforma do Ensino Médio, a destinação dos recursos do Pré-Sal para a Educação, a redução da maioridade penal e a violência contra a juventude pobre e negra das periferias, dentre tantos outros temas.
Esta entrevista foi concedida por Jacyara Silva de Paiva, líder da Pedagogia Social no Brasil. Também é educadora social, advogada, teóloga, doutora em Pedagogia Social pela UFES/USP [Universidade Federal do Espírito Santo/ Universidade de São Paulo] e professora da Faculdade Estácio de Sá/Espírito Santo.
Qual é sua perspectiva existencial sobre a Pedagogia Social?
Sempre estudei em escola pública. No Brasil, ainda hoje, mesmo com todos os avanços sociais dos Governos Lula e Dilma, a escola pública é um espaço de saber para a pessoa pobre e, dentro desse espaço, pouco se tem de ensinamento e aprendizagem; esse espaço necessita ser dividido com ações sociais. Terminei meu Ensino Médio em uma delas e fiz um curso técnico, pois aos pobres, aqui no Brasil, eram reservados os cursos técnicos; aos mais abastados, o preparo para entrar na universidade pública, que era quase exclusiva das famílias mais abastadas. Hoje, graças às ações afirmativas dos Governos Lula e Dilma, as coisas estão mudando um pouco e os pobres e negros já conseguem chegar à universidade pública, antes destinada apenas aos mais ricos.
Com 18 anos, eu já trabalhava de maneira formal, com carteira assinada, porque, como todo filho da pobreza, comecei a trabalhar ainda bem pequena, limpando casas de famílias, até que resolvi mudar de Estado e fazer Teologia em um estado que fica a 2 mil quilômetros do estado onde eu morava. O curso foi pago por uma Igreja Batista, pois não tinha condições de pagar. Nesse tempo, comecei a trabalhar com prostitutas e viciados, nas ruas do Recife, capital de [Estado de] Pernambuco, um estado, até hoje, com uma divisão de renda sofrível e, exatamente por isso, com grandes problemas sociais, eu trabalhava com a Igreja Batista em convênio com uma ONG dos Estados Unidos, chamada "Visão Mundial”.
Após um ano trabalhando nas madrugadas, nas ruas do Recife, compreendi que o meu trabalho não era um trabalho para salvar "almas”, como queria a Igreja, mas um trabalho educativo, que poderia libertar vidas, libertar pessoas oprimidas por uma relação social injusta. Levava, durante o dia, as prostitutas, homossexuais e usuários de drogas para os jardins da instituição onde eu estudava e morava. Instituição esta que fazia Teologia com ênfase em educação e ação social. Fazia isso por achar um local seguro para dialogar com os meus educandos de rua e, por levar essas pessoas aos jardins da instituição, fui proibida de morar no internato.
A partir daí, surgiu uma grande reviravolta em minha vida. Passei a morar numa zona de prostituição e, ali, pude conviver mais de perto com os meus educandos: as prostitutas, os viciados e seus filhos, que, em sua maioria, viviam nas ruas do Recife, mendigando e praticando pequenos furtos. A partir daí, pude conhecer e aprender com eles/as valores significativos, mas não sentia as dores que elas sentiam, pois, mesmo morando dentro da zona de prostituição, eu não estava ali para me prostituir e, sim, realizar um trabalho de ação social. Ao mesmo tempo, passávamos no Brasil por um momento único, que foi o término da ditadura, o movimento das eleições diretas para presidente. O Brasil fervilhava politicamente e eu tive o privilégio de participar de vários movimentos sociais, inclusive, nesta ocasião, formamos o primeiro clube de mães, formado por prostitutas, em Recife, onde, através dele, realizávamos várias reivindicações. Era chamado "Clube de Mães”, pois estávamos ainda no fim da ditadura e ainda não poderia ter associações.
Passei a fazer parte também do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Como tinha apenas 19 anos, não fazia parte da diretoria, mas era bastante atuante em Recife. Fui a Brasília, capital do país, juntamente com os meninos e meninas de rua do Brasil ,num movimento que poderíamos chamar de inédito e viável, tal como [Paulo] Freire – estudioso da educação - mencionava, que mobilizou todos os meninos e meninas de rua do Brasil. Na época, o movimento evitou muitos assassinatos de meninos/as; atuava contra a perseguição dos educadores sociais, que eram vitimas de ameaças por parte dos policiais, pois os mesmos denunciavam toda e qualquer forma de maus tratos dos/as meninos/as. Atuamos no grande movimento de construção do Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil, até hoje, um dos estatutos mais avançados do mundo, em que ainda forças reacionárias insistem em modificá-lo para prejudicar as crianças e adolescentes empobrecidas do Brasil.
Na época do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, que ainda existe no Brasil, denúncias surgiam por toda parte, amparadas por um movimento forte e destemido, que, juntamente com a atuação política, preocupava-se com a formação pedagógica. O movimento reunia pessoas do país inteiro e tivemos o grande privilégio de ter o professor Paulo Freire conversando conosco várias vezes, esclarecendo que o nosso fazer era um fazer pedagógico e político, que nós precisávamos ser amorosos, no sentido de um amor tornado ação, que precisávamos estar sempre refletindo acerca de nossa práxis (teoria e prática). Falava que não erámos superiores nem inferiores aos educadores escolares, éramos, simplesmente, educadores, com uma Pedagogia diferenciada.
Por que, por Paulo Freire, o dialogo é muito importante na educação de rua?
Paulo Freire acredita que o dado fundamental das relações de todas as coisas no mundo é o diálogo. O diálogo é o sentimento de amor tornado ação, o diálogo amoroso, que é o encontro dos homens que se amam e que desejam transformar o mundo.
Segundo Freire, o diálogo não é só uma qualidade do modo humano de existir e agir, o diálogo é a condição desse modo, é o que torna humano o homem.
O relacionamento professor aluno precisa estar pautado no diálogo, ambos se posicionando como sujeitos no ato do conhecimento, numa relação horizontal. O autoritarismo tradicional, que permeava a relação da educação tradicional, precisava ser banido, para dar lugar à Pedagogia do diálogo. Contudo, essa relação horizontal não acontece de forma imposta, ela ocorre naturalmente, quando educando e educador conseguem se colocarem na posição do outro, tendo a consciência de que, ao mesmo tempo, são educandos e educadores.
Na Pedagogia do diálogo, insere-se também o conceito de educação, para Freire, onde ninguém sabe tudo, ninguém é inteiramente ignorante. A educação não pode ser diminuidora da pessoa humana, precisa levar a redenção; por isso, uma educação que reprime não é a que redime.
Para Freire, nós nos educamos em comunidade. Sua busca era por uma educação comprometida com os problemas da comunidade, o local onde se efetivava a "vida do povo”, a comunidade, para ele, era o ponto de partida e de chegada. "Só conhecendo a cultura do educando é que o educador conseguirá dialogar com o mesmo, e por isso, ouvindo-o não correrá o risco de ser autoritário” (Freire 1985).
Educação é um processo permanente, ela não se esgota nos minutos de cada aula, não se prende aos muros escolares, exatamente, porque não acontece exclusivamente na escola. Segundo Freire, nos educamos a vida inteira, até o momento da morte, para ele, se constitui num ato educativo. O diálogo, portanto, é o que deve permear todo processo educacional, pois não é só uma qualidade do ser humano, mas o que torna humano o homem, o diálogo é o que dá sentido à vida.
A Pedagogia do diálogo vem servir de guia, um imenso farol no ofício de ser educador de rua, pois é, através do diálogo, que o educador social de rua chega até o educando, que lá se encontra. O escutar, o ato de ouvir o outro, nas ruas, impedirá que o educador de rua seja um educador autoritário. A busca de alternativas com o educando de rua só se dará através do processo dialógico. O diálogo é, assim, o que dá sentido ao ofício de educador social de rua, pois é, através dele, que se estabelecerá o processo educativo entre o educador e o educando de rua.
Os diálogos são estabelecidos nas praças, nas calçadas, nas ruas, enfim... O diálogo, para o educador social, é muito mais que um método, é a mola propulsora para respeitar o saber do educando que se encontra nas ruas e, a partir deste ponto, com ele avançar.
Ao escutar, empaticamente, o educador ajuda o educando a desvelar criticamente o seu cotidiano e a recuperar sua condição de sujeito do seu processo histórico.
Outro diálogo importante foi o Congresso de Pedagogia Social. Que balanço você faz?
Realizar um Congresso Internacional, em meio a uma crise econômica, não foi algo muito fácil, foi necessário termos a esperança freiriana, que não é a esperança que espera, é a esperança do verbo esperançar. Aquela esperança que, como ele mesmo dizia, constrói, acredita, mesmo que tudo esteja dizendo que não existe possibilidades.
Este foi o V Congresso Internacional realizado pela Associação Brasileira de Pedagogia Social fora de São Paulo. Dessa forma, a responsabilidade era tamanha, afinal São Paulo é a maior capital brasileira e Vitória uma das menores. Ousadamente, aceitamos o desafio proposto pelo professor Roberto da Silva, em uma reunião, no fim de 2013, em São Paulo.
Com uma equipe valorosa, formada pelos educadores Erineu Foerst, Gerda Foerst, Priscila Chiste, Zoraide Barbosa, Alex Jordane, Jacyara Paiva, Leticia Queiroz, Giovane Fernandes e Lauro Sá, a ousadia esperançosa reinou, mesmo nos momentos mais difíceis. O diálogo amoroso dava sempre lugar a discussões calorosas na organização do Congresso. Procurávamos ouvir o outro através de todos os gestos necessários, numa relação horizontalizada, e cuidadosa um para com o outro, afinal, precisamos praticar o que teorizamos.
O Congresso Internacional de Pedagogia Social só foi possível porque foi realizado de forma dialógica e horizontalizada, com muitas mãos, mentes e corações. Todos os palestrantes brasileiros pagaram suas passagens, alimentação e hospedagem, para que pudéssemos realizar o Congresso. Todos nós estamos unidos em um só compromisso, que é a Justiça Social.
Todos nós lutamos pela Educação Social, pelos vários campos da Educação: Educação Social com os Meninos e Meninas em situação de Rua; Educação do Campo; Educação em Presídios; Educação Social e Direitos Humanos; Educação Social e Educação de Jovens e Adultos; Educação Social e Educação Integral, enfim... Várias foram as temáticas abordadas neste CIPS.
De forma muito especial, debatemos sobre a profissionalização da profissão de Educador Social no Brasil. Atualmente, temos duas propostas tramitando no Legislativo: uma do grupo de educadores do Ceará e outra do grupo de educadores de Maringá, no Estado do Paraná. Elas coincidem em vários aspectos, divergem em alguns e estão sendo debatidas entre os grupos, a fim de que se chegue a uma conclusão, pois acreditamos que o diálogo deva sempre pautar os nossos debates. O diálogo horizontalizado, humilde, quando ouço o outro, ao mesmo tempo em que construo conhecimento.
O Brasil é muito grande. Sequer sabemos ao certo quantos educadores sociais temos. Por isso, precisamos ter muito cuidado em relação à regulamentação da profissão de Educador Social, afinal, estamos, de certa forma, decidindo o futuro de uma profissão, estamos falando do futuro de muitas vidas, de nossos meninos e meninas em situação de extrema pobreza, que necessitam de um educador que tenha uma profissão reconhecida. Para que possa ser mediador no processo de libertação desses meninos ou das pessoas oprimidas por um sistema econômico injusto. Então, precisamos de muito debate, de muito diálogo entre os nossos pares, precisamos nos ouvir. Um ouvir para além da escuta física, abrindo mão de nossas convicções, se preciso for.
A Educação do Campo no Brasil, meio que vem nos ensinar muito e, quando ela se une à Educação Social no Brasil, só temos a ganhar, pois a Educação do Campo no Brasil tem princípios da Educação Popular. Ela é freiriana e Paulo Freire é o nosso teórico, é a nossa referência na Educação Social. Da Educação Popular surgiu o referencial teórico da Pedagogia Social, que vai pensar sobre esta boniteza da prática da Educação Social.
Hoje, no Brasil, em nossos Congressos de Pedagogia Social, infelizmente, ainda temos que falar em Educação social de meninos e meninas em situação de rua, mesmo com todos os avanços sociais obtidos no governo do PT [Partido dos Trabalhadores]. Mesmo com todos os programas sociais, que tiraram milhares de crianças e adolescentes das ruas, tiraram o Brasil do Mapa da Fome da ONU [Organização das Nações Unidas]. Contudo, nossa injustiça social era tamanha, que ainda precisamos falar em educação para crianças e adolescentes, que procuram as ruas como lugar de proteção e abrigo.
Nas prisões, ainda temos milhares de jovens, quase em sua totalidade negros, que, quando não são presos, são mortos. Por isso, continuaremos a escrever, continuaremos a teorizar, até que esse profissional da Educação Social não precise mais existir em nosso país. Nesse dia, haveremos de ser muito felizes, mas, infelizmente, hoje, nossas crianças e adolescentes em situação de rua se deparam com muitas drogas, que antes eles não tinham acesso e que, de forma mais rápida, destroem suas vidas. Nossas crianças, hoje, se deparam com o crack, com a cocaína, são usados por traficantes de forma vil. Os educadores sociais ainda são os mediadores que, nas ruas, são capazes de suscitarem desejos e sonhos e indicarem-lhes os caminhos da vida, através de processos educativos.
Esse Congresso Internacional nos permitiu, mais uma vez, sentarmos a mesa com nossos pares, com nossos companheiros de todo o Brasil, da América Latina e de alguns países da Europa para (re)pensarmos todos esses processos educativos.
Contamos com presenças de especialistas internacionais, como Miguel Melendro Stefania, da Espanha; Jorge Camors e Marcelos Morales, do Uruguai; Cristiano Morsolin, da Colômbia, que compartilharam experiências de outros países, não para que pudéssemos copiar, mas para que pudéssemos refletir, repensar nossa própria experiência.
Conseguimos reunir pesquisadores, que são educadores sociais de todo o Brasil, comprometidos com a justiça social, para que juntos pudéssemos continuar construindo a Educação Social no Brasil. O CIPS foi mais do que um congresso, foi um grande encontro de pessoas que acreditam na pesquisa como um instrumento de transformação do mundo, que acreditam na equidade social, que acreditam na dignidade da pessoa humana e, por esta causa, se juntam e marcham juntas. Sou uma esperançosa no mundo!
Você publicou um novo livro, ”Caminhos do educador social no Brasil”, pela Paco Editorial (2015)...
Esta obra é uma contribuição significativa para a Pedagogia Social e Educação Social, pois, historicamente, essa área se desenvolve e se fortalece em contextos de crise, buscando dar respostas aos problemas sociais. A autora percorreu vários estados do Brasil, Finlândia e de Angola na perspectiva de produzir um conhecimento emancipador, fundamental para a formação do educador (1).
NOTAS
Cristiano Morsolin, pesquisador e trabalhador social italiano, radicado na América Latina desde 2001, com experiências no Equador, Colômbia, Peru, Bolívia e Brasil. Autor de vários livros, colabora com a Universidade do Externado da Colômbia, Universidade do Rosário de Bogotá, Universidade Politécnica Salesiana de Quito. Co-fundador do Observatório sobre a América Latina SELVAS (Milão), pesquisa a relação entre os movimentos sociais e as políticas emancipatórias.
BLOG:https://diversidadenmovimiento.wordpress.com/
FONTE: Adital