quinta-feira, 29 de outubro de 2015

[ENTREVISTA ESPECIAL] A importância da Pedagogia aliada à luta social no Brasil


Por Cristiano Morsolin


O Congresso Internacional de Pedagogia Social & Simpósio de Pós-Graduação, em sua quinta edição, realizado, recentemente, em Vitória [Estado do Espírito Santo – Brasil], foi um evento dedicado a discutir, de maneira ampla, a regulamentação da Educação Social como profissão no Brasil; a formação do profissional pedagogo social; e as áreas de atuação que entendem a Pedagogia Social como a Teoria Geral da Educação Social.

Em face da opção política do atual governo de fazer do Brasil uma "pátria educadora”, o V CIPS questionou o lugar que deve ocupar a "educação popular, social e comunitária nas políticas públicas no Brasil”, em um momento em que se discute o Sistema Nacional de Educação, o Plano Nacional de Educação, a Reforma do Ensino Médio, a destinação dos recursos do Pré-Sal para a Educação, a redução da maioridade penal e a violência contra a juventude pobre e negra das periferias, dentre tantos outros temas.

Jacyara Silva de Paiva
Esta entrevista foi concedida por Jacyara Silva de Paiva, líder da Pedagogia Social no Brasil. Também é educadora social, advogada, teóloga, doutora em Pedagogia Social pela UFES/USP [Universidade Federal do Espírito Santo/ Universidade de São Paulo] e professora da Faculdade Estácio de Sá/Espírito Santo.

Qual é sua perspectiva existencial sobre a Pedagogia Social?

Sempre estudei em escola pública. No Brasil, ainda hoje, mesmo com todos os avanços sociais dos Governos Lula e Dilma, a escola pública é um espaço de saber para a pessoa pobre e, dentro desse espaço, pouco se tem de ensinamento e aprendizagem; esse espaço necessita ser dividido com ações sociais. Terminei meu Ensino Médio em uma delas e fiz um curso técnico, pois aos pobres, aqui no Brasil, eram reservados os cursos técnicos; aos mais abastados, o preparo para entrar na universidade pública, que era quase exclusiva das famílias mais abastadas. Hoje, graças às ações afirmativas dos Governos Lula e Dilma, as coisas estão mudando um pouco e os pobres e negros já conseguem chegar à universidade pública, antes destinada apenas aos mais ricos.

Com 18 anos, eu já trabalhava de maneira formal, com carteira assinada, porque, como todo filho da pobreza, comecei a trabalhar ainda bem pequena, limpando casas de famílias, até que resolvi mudar de Estado e fazer Teologia em um estado que fica a 2 mil quilômetros do estado onde eu morava. O curso foi pago por uma Igreja Batista, pois não tinha condições de pagar. Nesse tempo, comecei a trabalhar com prostitutas e viciados, nas ruas do Recife, capital de [Estado de] Pernambuco, um estado, até hoje, com uma divisão de renda sofrível e, exatamente por isso, com grandes problemas sociais, eu trabalhava com a Igreja Batista em convênio com uma ONG dos Estados Unidos, chamada "Visão Mundial”.

Após um ano trabalhando nas madrugadas, nas ruas do Recife, compreendi que o meu trabalho não era um trabalho para salvar "almas”, como queria a Igreja, mas um trabalho educativo, que poderia libertar vidas, libertar pessoas oprimidas por uma relação social injusta. Levava, durante o dia, as prostitutas, homossexuais e usuários de drogas para os jardins da instituição onde eu estudava e morava. Instituição esta que fazia Teologia com ênfase em educação e ação social. Fazia isso por achar um local seguro para dialogar com os meus educandos de rua e, por levar essas pessoas aos jardins da instituição, fui proibida de morar no internato.

A partir daí, surgiu uma grande reviravolta em minha vida. Passei a morar numa zona de prostituição e, ali, pude conviver mais de perto com os meus educandos: as prostitutas, os viciados e seus filhos, que, em sua maioria, viviam nas ruas do Recife, mendigando e praticando pequenos furtos. A partir daí, pude conhecer e aprender com eles/as valores significativos, mas não sentia as dores que elas sentiam, pois, mesmo morando dentro da zona de prostituição, eu não estava ali para me prostituir e, sim, realizar um trabalho de ação social. Ao mesmo tempo, passávamos no Brasil por um momento único, que foi o término da ditadura, o movimento das eleições diretas para presidente. O Brasil fervilhava politicamente e eu tive o privilégio de participar de vários movimentos sociais, inclusive, nesta ocasião, formamos o primeiro clube de mães, formado por prostitutas, em Recife, onde, através dele, realizávamos várias reivindicações. Era chamado "Clube de Mães”, pois estávamos ainda no fim da ditadura e ainda não poderia ter associações.

Passei a fazer parte também do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Como tinha apenas 19 anos, não fazia parte da diretoria, mas era bastante atuante em Recife. Fui a Brasília, capital do país, juntamente com os meninos e meninas de rua do Brasil ,num movimento que poderíamos chamar de inédito e viável, tal como [Paulo] Freire – estudioso da educação - mencionava, que mobilizou todos os meninos e meninas de rua do Brasil. Na época, o movimento evitou muitos assassinatos de meninos/as; atuava contra a perseguição dos educadores sociais, que eram vitimas de ameaças por parte dos policiais, pois os mesmos denunciavam toda e qualquer forma de maus tratos dos/as meninos/as. Atuamos no grande movimento de construção do Estatuto da Criança e do Adolescente do Brasil, até hoje, um dos estatutos mais avançados do mundo, em que ainda forças reacionárias insistem em modificá-lo para prejudicar as crianças e adolescentes empobrecidas do Brasil.

Na época do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, que ainda existe no Brasil, denúncias surgiam por toda parte, amparadas por um movimento forte e destemido, que, juntamente com a atuação política, preocupava-se com a formação pedagógica. O movimento reunia pessoas do país inteiro e tivemos o grande privilégio de ter o professor Paulo Freire conversando conosco várias vezes, esclarecendo que o nosso fazer era um fazer pedagógico e político, que nós precisávamos ser amorosos, no sentido de um amor tornado ação, que precisávamos estar sempre refletindo acerca de nossa práxis (teoria e prática). Falava que não erámos superiores nem inferiores aos educadores escolares, éramos, simplesmente, educadores, com uma Pedagogia diferenciada.

Por que, por Paulo Freire, o dialogo é muito importante na educação de rua?

Paulo Freire acredita que o dado fundamental das relações de todas as coisas no mundo é o diálogo. O diálogo é o sentimento de amor tornado ação, o diálogo amoroso, que é o encontro dos homens que se amam e que desejam transformar o mundo.

Segundo Freire, o diálogo não é só uma qualidade do modo humano de existir e agir, o diálogo é a condição desse modo, é o que torna humano o homem.

O relacionamento professor aluno precisa estar pautado no diálogo, ambos se posicionando como sujeitos no ato do conhecimento, numa relação horizontal. O autoritarismo tradicional, que permeava a relação da educação tradicional, precisava ser banido, para dar lugar à Pedagogia do diálogo. Contudo, essa relação horizontal não acontece de forma imposta, ela ocorre naturalmente, quando educando e educador conseguem se colocarem na posição do outro, tendo a consciência de que, ao mesmo tempo, são educandos e educadores.

Na Pedagogia do diálogo, insere-se também o conceito de educação, para Freire, onde ninguém sabe tudo, ninguém é inteiramente ignorante. A educação não pode ser diminuidora da pessoa humana, precisa levar a redenção; por isso, uma educação que reprime não é a que redime.

Para Freire, nós nos educamos em comunidade. Sua busca era por uma educação comprometida com os problemas da comunidade, o local onde se efetivava a "vida do povo”, a comunidade, para ele, era o ponto de partida e de chegada. "Só conhecendo a cultura do educando é que o educador conseguirá dialogar com o mesmo, e por isso, ouvindo-o não correrá o risco de ser autoritário” (Freire 1985).

Educação é um processo permanente, ela não se esgota nos minutos de cada aula, não se prende aos muros escolares, exatamente, porque não acontece exclusivamente na escola. Segundo Freire, nos educamos a vida inteira, até o momento da morte, para ele, se constitui num ato educativo. O diálogo, portanto, é o que deve permear todo processo educacional, pois não é só uma qualidade do ser humano, mas o que torna humano o homem, o diálogo é o que dá sentido à vida.

A Pedagogia do diálogo vem servir de guia, um imenso farol no ofício de ser educador de rua, pois é, através do diálogo, que o educador social de rua chega até o educando, que lá se encontra. O escutar, o ato de ouvir o outro, nas ruas, impedirá que o educador de rua seja um educador autoritário. A busca de alternativas com o educando de rua só se dará através do processo dialógico. O diálogo é, assim, o que dá sentido ao ofício de educador social de rua, pois é, através dele, que se estabelecerá o processo educativo entre o educador e o educando de rua.

Os diálogos são estabelecidos nas praças, nas calçadas, nas ruas, enfim... O diálogo, para o educador social, é muito mais que um método, é a mola propulsora para respeitar o saber do educando que se encontra nas ruas e, a partir deste ponto, com ele avançar.

A profissão de educador social, ainda é muito pouco
valorizada no Brasil 
Ao escutar, empaticamente, o educador ajuda o educando a desvelar criticamente o seu cotidiano e a recuperar sua condição de sujeito do seu processo histórico.

Outro diálogo importante foi o Congresso de Pedagogia Social. Que balanço você faz?

Realizar um Congresso Internacional, em meio a uma crise econômica, não foi algo muito fácil, foi necessário termos a esperança freiriana, que não é a esperança que espera, é a esperança do verbo esperançar. Aquela esperança que, como ele mesmo dizia, constrói, acredita, mesmo que tudo esteja dizendo que não existe possibilidades.

Este foi o V Congresso Internacional realizado pela Associação Brasileira de Pedagogia Social fora de São Paulo. Dessa forma, a responsabilidade era tamanha, afinal São Paulo é a maior capital brasileira e Vitória uma das menores. Ousadamente, aceitamos o desafio proposto pelo professor Roberto da Silva, em uma reunião, no fim de 2013, em São Paulo.

Com uma equipe valorosa, formada pelos educadores Erineu Foerst, Gerda Foerst, Priscila Chiste, Zoraide Barbosa, Alex Jordane, Jacyara Paiva, Leticia Queiroz, Giovane Fernandes e Lauro Sá, a ousadia esperançosa reinou, mesmo nos momentos mais difíceis. O diálogo amoroso dava sempre lugar a discussões calorosas na organização do Congresso. Procurávamos ouvir o outro através de todos os gestos necessários, numa relação horizontalizada, e cuidadosa um para com o outro, afinal, precisamos praticar o que teorizamos.

O Congresso Internacional de Pedagogia Social só foi possível porque foi realizado de forma dialógica e horizontalizada, com muitas mãos, mentes e corações. Todos os palestrantes brasileiros pagaram suas passagens, alimentação e hospedagem, para que pudéssemos realizar o Congresso. Todos nós estamos unidos em um só compromisso, que é a Justiça Social.

Todos nós lutamos pela Educação Social, pelos vários campos da Educação: Educação Social com os Meninos e Meninas em situação de Rua; Educação do Campo; Educação em Presídios; Educação Social e Direitos Humanos; Educação Social e Educação de Jovens e Adultos; Educação Social e Educação Integral, enfim... Várias foram as temáticas abordadas neste CIPS.

De forma muito especial, debatemos sobre a profissionalização da profissão de Educador Social no Brasil. Atualmente, temos duas propostas tramitando no Legislativo: uma do grupo de educadores do Ceará e outra do grupo de educadores de Maringá, no Estado do Paraná. Elas coincidem em vários aspectos, divergem em alguns e estão sendo debatidas entre os grupos, a fim de que se chegue a uma conclusão, pois acreditamos que o diálogo deva sempre pautar os nossos debates. O diálogo horizontalizado, humilde, quando ouço o outro, ao mesmo tempo em que construo conhecimento.

O Brasil é muito grande. Sequer sabemos ao certo quantos educadores sociais temos. Por isso, precisamos ter muito cuidado em relação à regulamentação da profissão de Educador Social, afinal, estamos, de certa forma, decidindo o futuro de uma profissão, estamos falando do futuro de muitas vidas, de nossos meninos e meninas em situação de extrema pobreza, que necessitam de um educador que tenha uma profissão reconhecida. Para que possa ser mediador no processo de libertação desses meninos ou das pessoas oprimidas por um sistema econômico injusto. Então, precisamos de muito debate, de muito diálogo entre os nossos pares, precisamos nos ouvir. Um ouvir para além da escuta física, abrindo mão de nossas convicções, se preciso for.

A Educação do Campo no Brasil, meio que vem nos ensinar muito e, quando ela se une à Educação Social no Brasil, só temos a ganhar, pois a Educação do Campo no Brasil tem princípios da Educação Popular. Ela é freiriana e Paulo Freire é o nosso teórico, é a nossa referência na Educação Social. Da Educação Popular surgiu o referencial teórico da Pedagogia Social, que vai pensar sobre esta boniteza da prática da Educação Social.

Hoje, no Brasil, em nossos Congressos de Pedagogia Social, infelizmente, ainda temos que falar em Educação social de meninos e meninas em situação de rua, mesmo com todos os avanços sociais obtidos no governo do PT [Partido dos Trabalhadores]. Mesmo com todos os programas sociais, que tiraram milhares de crianças e adolescentes das ruas, tiraram o Brasil do Mapa da Fome da ONU [Organização das Nações Unidas]. Contudo, nossa injustiça social era tamanha, que ainda precisamos falar em educação para crianças e adolescentes, que procuram as ruas como lugar de proteção e abrigo.

Nas prisões, ainda temos milhares de jovens, quase em sua totalidade negros, que, quando não são presos, são mortos. Por isso, continuaremos a escrever, continuaremos a teorizar, até que esse profissional da Educação Social não precise mais existir em nosso país. Nesse dia, haveremos de ser muito felizes, mas, infelizmente, hoje, nossas crianças e adolescentes em situação de rua se deparam com muitas drogas, que antes eles não tinham acesso e que, de forma mais rápida, destroem suas vidas. Nossas crianças, hoje, se deparam com o crack, com a cocaína, são usados por traficantes de forma vil. Os educadores sociais ainda são os mediadores que, nas ruas, são capazes de suscitarem desejos e sonhos e indicarem-lhes os caminhos da vida, através de processos educativos.

Esse Congresso Internacional nos permitiu, mais uma vez, sentarmos a mesa com nossos pares, com nossos companheiros de todo o Brasil, da América Latina e de alguns países da Europa para (re)pensarmos todos esses processos educativos.

Abertura do V Congresso Internacional de Pedagogia Social,
no Brasil.
Contamos com presenças de especialistas internacionais, como Miguel Melendro Stefania, da Espanha; Jorge Camors e Marcelos Morales, do Uruguai; Cristiano Morsolin, da Colômbia, que compartilharam experiências de outros países, não para que pudéssemos copiar, mas para que pudéssemos refletir, repensar nossa própria experiência.

Conseguimos reunir pesquisadores, que são educadores sociais de todo o Brasil, comprometidos com a justiça social, para que juntos pudéssemos continuar construindo a Educação Social no Brasil. O CIPS foi mais do que um congresso, foi um grande encontro de pessoas que acreditam na pesquisa como um instrumento de transformação do mundo, que acreditam na equidade social, que acreditam na dignidade da pessoa humana e, por esta causa, se juntam e marcham juntas. Sou uma esperançosa no mundo!

Você publicou um novo livro, ”Caminhos do educador social no Brasil”, pela Paco Editorial (2015)...

Esta obra é uma contribuição significativa para a Pedagogia Social e Educação Social, pois, historicamente, essa área se desenvolve e se fortalece em contextos de crise, buscando dar respostas aos problemas sociais. A autora percorreu vários estados do Brasil, Finlândia e de Angola na perspectiva de produzir um conhecimento emancipador, fundamental para a formação do educador (1).


NOTAS


Cristiano Morsolin, pesquisador e trabalhador social italiano, radicado na América Latina desde 2001, com experiências no Equador, Colômbia, Peru, Bolívia e Brasil. Autor de vários livros, colabora com a Universidade do Externado da Colômbia, Universidade do Rosário de Bogotá, Universidade Politécnica Salesiana de Quito. Co-fundador do Observatório sobre a América Latina SELVAS (Milão), pesquisa a relação entre os movimentos sociais e as políticas emancipatórias.

BLOG:https://diversidadenmovimiento.wordpress.com/


FONTE: Adital

sábado, 24 de outubro de 2015

Aquecimento global, problema dos outros?

                             Sobradinho

Sob um manto de silêncio, seca alastra-se  por todo Nordeste, afetando
abastecimento de água, energia e produção de alimentos. Mas Brasil  

permanece tímido nas negociações sobre clima 


Por Washington Novaes, na Envolverde


É inquietante. Ao mesmo tempo que o governo brasileiro mantém posições tímidas e insuficientes nas negociações globais sobre o clima para um novo acordo este ano, internamente também se sucedem críticas sobre iniciativas para enfrentar as graves questões no nosso território. Uma das últimas dá conta de que a barragem de Sobradinho, no Rio São Francisco, poderá ter de recorrer ao “volume morto” para abastecer parte da população do Nordeste (Estado, 17/5) – cenário que a Agência Nacional de Águas considera “de extrema gravidade”.

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) já comunicou ao Ibama que é preciso reduzir a vazão na barragem, senão o volume útil pode chegar a zero em setembro. Segundo a Chesf, a estiagem é a pior em 84 anos. Em Alagoas, mais de 100 mil pessoas já estão sendo socorridas para o abastecimento doméstico; no Ceará, agricultores perderam de 80% a 90% das safras de milho e feijão (remabrasil, 6/5), inclusive porque tiveram de abrir porteiras para o gado se alimentar.

A situação só não é ainda mais grave porque nos últimos anos se construíram no Nordeste mais de 823 mil cisternas de placa – ação de governos com a participação de empresas –, capazes de armazenar, cada uma, água de chuva captada nos telhados das casas e suficiente para fornecer 20 litros diários a cada pessoa durante toda a estiagem.

Também foram implantados 104 mil projetos com tecnologias rurais adequadas (barragens subterrâneas e outras). Neste momento, pode-se imaginar o que seria a vida de muitos milhões de pessoas em algumas áreas do Semiárido que estão no quarto ano seguido de seca muito grave (Folha de S.Paulo, 31/5).

Não há dúvida de que a situação vai complicar-se em 1,26 milhão de quilômetros quadrados de 1.440 municípios de 8 Estados nordestinos e do norte de Minas Gerais, que, segundo a Embrapa (remabrasil, 28/5), já mostram algum nível de desertificação. O processo de degradação do solo é muito forte, juntamente com a perda da cobertura vegetal, da biodiversidade e da capacidade de produção da agropecuária. Já há quatro anos a empresa, em relatório para a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO-ONU), mostrava que 25% dos recursos dos solos estavam degradados, 8% em nível moderadamente degradado, 36% estáveis ou levemente degradados e apenas 10% em recuperação. Também muito preocupante é saber que nas áreas em desertificação é maior que a média nacional a presença de “pobres e indigentes”. E a população geral em toda a área problemática do Semiárido é de 31,66 milhões de pessoas. Na verdade, Caatinga e Cerrado têm 85% dos pobres no País (Eco 21, abril de 2015).

Diz o senador Fernando Bezerra Coelho, presidente da Comissão Mista de Mudanças Climáticas do Congresso Nacional (remabrasil, 28/5), que o desmatamento recente na Caatinga e no Cerrado equivale a uma área como a de Portugal (92 mil km2); metade dos territórios afetados está em “processo acentuado e severo de desertificação”. No Ceará, todos os 184 municípios estão atingidos; no Rio Grande do Norte, na Paraíba e no Piauí, 90% dos territórios – e basta lembrar que 43% do território do Semiárido está em áreas de solo muito frágil. Mas nas áreas rurais são muito comuns o desmatamento, a extração excessiva de produtos florestais, as queimadas, o uso intensivo do solo.

O Brasil é um dos 192 países signatários da Convenção da ONU sobre Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca. Mas pouco tem avançado nos 16% de seu território em áreas críticas de 27% dos municípios, embora tenha programas específicos no Ministério do Meio Ambiente, como o do fogão ecológico, que permite reduzir o consumo de lenha. Mas a reforma agrária e a assistência a 120 mil famílias acampadas praticamente não avançaram em 2014, com os cortes orçamentários – o Ministério do Desenvolvimento Agrário perdeu quase metade das dotações a ele destinadas – ficou com R$ 1,8 bilhão, ante R$ 1,35 trilhão destinado ao pagamento de juros da dívida governamental, segundo as críticas (amazonia.org, 29/5).

Problema na área que tem merecido pouca atenção e foi destacado em páginas recentes por este jornal (31/5) é o uso de lenha em fogões – que, além de desmatamento, é a causa de quase 50% das 49 mil mortes de pessoas por poluição interna nos 7 milhões de casas brasileiras que usam esse combustível. O nível dessa poluição interna, diz o texto de Fernando Scheller, é oito vezes maior que o da cidade de São Paulo. Mas não é problema só brasileiro. A Organização Mundial da Saúde aflige-se, já que 3 bilhões de pessoas no mundo queimam combustíveis dentro de casa para gerar energia – e isso leva a 6 milhões de mortes por ano.

Em algum momento todas as pessoas, em todos os lugares, não terão como fugir à discussão – e suas consequências políticas – sobre a poluição no uso de combustíveis e os incentivos que lhes são destinados. A última avaliação do Fundo Monetário Internacional – segundo o site Corporate Knights (18/5) – é de que nada menos de US$ 5,3 trilhões, ou R$ 17,5 trilhões (6,5% do produto global anual), são destinados a cada ano a esses subsídios. Ou seja, US$ 10 milhões por minuto. É mais do que todos os governos do mundo aplicam em programas de saúde.

O consultor britânico sir Nicholas Stern lembra que se esses subsídios fossem eliminados se conseguiria, automaticamente, reduzir em 20% a poluição da atmosfera planetária por dióxido de carbono. A China é quem mais subsidia o uso dos combustíveis fósseis, com US$ 2,3 trilhões anuais, seguida de Estados Unidos (US$ 700 bilhões), Rússia (US$ 335 bilhões), Índia (US$ 277 bilhões) e Japão (US$ 157 bilhões). A União Europeia aplica US$ 330 bilhões/ano. Sem os subsídios seria possível reduzir o número de pessoas que a cada ano morrem por causa dessa poluição.

Que faremos por aqui?


terça-feira, 20 de outubro de 2015

De onde vêm tantos refugiados?


Nove guerras civis simultâneas devastam mundo islâmico. Há algo comum entre elas:
a destruição dos Estados nacionais árabes e o estímulo ao ultra-fundamentalismo,
 promovidos  por EUA e seus aliados

Por Patrick Cockburn | Tradução: Inês Castilho

São tempos de violência no Oriente Médio e Norte da África, com nove guerras civis acontecendo em países islâmicos, situados entre o Paquistão e a Nigéria. É por isso que há tantos refugiados tentando escapar para salvar suas vidas. Metade da população de 23 milhões da Siria foi expulsa de suas casas; quatro milhões transformaram-se em refugiados em outros países.

Cerca de 2,6 milhões de iraquianos foram deslocados pelas ofensivas do Estado Islâmico, o Isis, no último ano, e se espremem em tendas ou edifícios inacabados. Invisíveis para o mundo, cerca de 1,5 milhão de pessoas foram deslocadas no sul do Sudão, desde que os combates recomeçaram por lá, no final de 2013.

Outras partes do mundo, notadamente o sudeste da Ásia, tornaram-se mais pacíficas nos últimos 50 anos, mas na grande faixa de terra entre as montanhas Hindu Kush e o lado ocidental do Saara, conflitos religiosos, étnicos e separatistas estão destroçando os países. Em toda parte há Estados em colapso, enfraquecidos ou sob ataque; e em muitos desses lugares, as insurgências islâmicas radicais sunitas, em ascensão, usam o terror contra civis para provocar fuga em massa.

Outra característica dessas guerras é que nenhuma delas parece estar próxima do fim, de modo que as pessoas possam voltar para suas casas. A maioria dos refugiados sírios que fugiram para a Turquia, Líbano e Jordânia em 2011 e 2012 acreditava que a guerra acabaria em pouco tempo e elas poderiam voltar. Só perceberam nos últimos dois anos que isso não vai acontecer e que precisam buscar refúgio permanente em outro lugar. A própria duração destas guerras significa uma destruição imensa e irreversível de todos os meios de se ganhar a vida, de modo que os refugiados, que a princípio buscavam apenas segurança, são também movidos por necessidade.



Guerras estão sendo travadas atualmente no Afeganistão, Iraque, Síria, Sudeste da Turquia, Iêmen, Líbia, Somália, Sudão e Nordeste da Nigéria. Algumas começaram há muito tempo, a exemplo da Somália, onde o Estado entrou em colapso em 1991 e nunca foi reconstruído, com senhores da guerra, jihadistas radicais, partidos rivais e soldados estrangeiros controlando diferentes partes do país. Mas a maioria desses conflitos começou após 2001, e muitos depois de 2011. A guerra civil total no Iêmen só começou no ano passado, enquanto a guerra civil turco-curda, que matou 40 mil pessoas desde 1984, recomeçou em julho com ataques aéreos e de guerrilha. É rápida a escalada: um caminhão carregado de soldados turcos foi explodido há poucas semanas por guerrilheiros do PKK curdo.

Quando a Somália caiu, num processo que os EUA tentaram reverter em uma tentativa fracassada de inteverção militar, entre 1992-1994, parecia ser um evento marginal, insignificante para o resto do mundo. O país tornou-se um “Estado fracassado”, frase usada para exprimir pena ou desprezo, à medida em que ele se tornava o paraíso dos piratas, sequestradores e terroristas da Al-Qaeda. Mas o resto do mundo deveria olhar para esses Estados fracassados com medo, além de desprezo, porque foi nesses lugares – Afeganistão nos anos de 1990 e Iraque desde 2003 – que foram incubados movimentos como o Talibã, o Al-Qaeda e o Isis. Os três combinam crença religiosa fanática e conhecimento militar. A Somália pareceu um dia ser um caso excepcional, mas a “somalização” mostrou-se destino de uma série de países — notadamente Líbia, Iraque e Síria — onde até recentemente as pessoas tinham acesso a comida, educação e saúde.

Todas as guerras são perigosas, e as guerras civis sempre se notabilizaram pela impiedade, sendo as religiosas, as piores. É o que está acontecendo agora no Oriente Médio e Norte da África, com o Isis – e clones da Al-Qaeda como Jabhat al-Nusra ou Ahrar al-Sham na Síria. Assassinam ritualmente seus opositores e justificam suas ações alegando o bombardeio indiscriminado de áreas civis pelo governo de Assad.

O que é um pouco diferente nessas guerras é que o Isis faz publicidade deliberada das atrocidades que comete contra xiitas, yazidis ou qualquer outra pessoa que considere seu inimigo. Isso significa que as pessoas apanhadas nesses conflitos, particularmente desde a declaração do Estado Islâmico, em junho do ano passado, sofrem uma carga extra de medo, o que torna mais provável que fujam para não voltar. Isso é verdade tanto para professores da Universidade de Mosul, no Iraque, quanto para moradores dos vilarejos da Nigéria, Camarões ou Mali. Não por acaso, os avanços do Isis no Iraque têm produzido grandes ondas de refugiados , os quais têm uma perfeita ideia do que acontecerá a eles se não fugirem.

No Iraque e na Siria, estamos de volta a um período de drástica mudança demográfica, jamais vista na região desde que os palestinos foram expulsos ou forçados a fugir pelos israelenses em 1948, ou quando os cristãos foram exterminados ou empurrados para fora do que hoje é a Turquia, na década que se seguiu a 1914. As sociedades multiconfessionais do Iraque e da Síria estão se esfacelando, com consequências terríveis. Potências estrangeiras não sabiam ou não se importavam com os demônios sectários que estavam liberando, nesses países, ao quebrar o velho status quo.

O ex-conselheiro de Segurança Nacional do Iraque, Mowaffaq al-Rubaie, costuma dizer aos líderes políticos norte-americanos, que levianamente sugeriram que os problemas coletivos do Iraque poderiam ser resolvidos dividindo o país entre sunitas, xiitas e curdos, que eles deviam compreender como seria sangrento esse processo, provocando inevitavelmente massacres e fuga em massa “semelhantes aos da partilha da Índia em 1947 “.

Por que razão tantos desses Estados estão caindo aos pedaços e gerando essas ondas de refugiados? Que falhas internas ou insustentáveis pressões externas têm em comum? A maioria conquistou autodeterminação quando as potências imperiais se retiraram, depois da Segunda Guerra Mundial. No final dos anos 1960 e início dos 1970, foram governados por líderes militares que dirigiam Estados policiais e justificavam seus monopólios de poder e riqueza alegando que eram necessários para estabelecer a ordem pública, modernizar seus países, assumir o controle dos recursos naturais e resistir às pressões separatistas sectárias e étnicas.

Eram geralmente regimes nacionalistas e com frequência socialistas, cuja perspectiva era esmagadoramente secular. Por essas justificativas para o autoritarismo serem geralmente hipócritas e auto-interessadas; por  mascararem a corrupção generalizada da elite dominante, frequentmente se esquecia que países como o Iraque, a Síria e a Líbia tinham governos centrais muito poderosos por alguma razão – e se desintegrariam sem eles.

São esses regimes que vêm enfraquecendo e estão entrando em colapso em todo o Oriente Médio e Norte da África. Nacionalismo e socialismo não oferecem mais o cimento ideológico para manter juntos Estados seculares ou para motivar as pessoas para lutar por eles até a última bala — ao contrário do que fazem os que creem, em relação ao islamismo sunita de tipo fanático e violento incorporado pelo Isis, Jahat AL-Nusra e Ahrar AL-Sham. As autoridades iraquianas admitem que uma das razões por que o exército de seu país desintegrou-se em 20014 e nunca foi reconstituído com êxito é que “muito poucos iraquianos estão dispostos a morrer pelo Iraque.”

Grupos sectários como o Isis cometem deliberadamente atrocidades contra os xiitas, sabendo que isso irá provocar retaliação contra os sunitas — o que os deixará sem alternativa senão ver no Isis seus defensores. Fomentar o ódio comunal trabalha a favor do Isis, e está contaminando as comunidades, umas contra as outras, como no Iêmen, onde anteriormente havia pouca consciência da divisão sectária, embora um terço de sua população de 25 milhões pertencessem à seita xiita Zaydi.

A probabilidade de fugas em massa torna-se ainda maior. No início deste ano, quando houve rumores de um ataque do exército iraquiano e de milícias xiitas, para recapturar a cidade de Mosul, esmagadoramente sunita, a Organização Mundial de Saúde e o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur) começaram a estocar comida para alimentar um milhão de pessoas a mais, que calcularam em fuga.

Os europeus foram sacudidos pelas fotos do pequeno corpo inerte de Alyan Kurdi numa praia na Turquia e por sírios quase mortos de fome amontoados em comboios húngaros. Mas no Oriente Médio, a nova diáspora miserável dos impotentes e despossuídos é evidente há três ou quatro anos. Em maio, eu estava prestes a cruzar o rio Tigre entre a Síria e o Iraque, num barco com uma mulher curda e sua família, quando ela e seus filhos foram colocados pra fora por causa de uma letra errada em um nome, em seus documentos.

“Mas estou há três dias com minha família na beira do rio!”, ela gritou desesperada. Eu estava indo para Erbil, a capital curda, que até um ano atrás aspirava ser “a nova Dubai”, mas agora está cheia de refugiados amontoados em hotéis inacabados, shoppings e quarteirões de luxo.

O que precisa ser feito para deter tais horrores? Talvez a primeira pergunta seja como evitar que fiquem piores, recordando que cinco das nove guerras começaram a partir de 2011. A presente crise dos refugiados na Europa é muito mais o impacto real, sentido pela primeira vez, do conflito na Siria sobre o continente. É verdade: o vácuo de segurança da Líbia significou que o país é agora o canal de fuga, para as pessoas dos países empobrecidos e atingidos pela guerra às margens do Saara. É pela costa libia, de 1,8 mil quilêmetros, que 114 mil refugiados passaram até agora, este ano, em direção à Italia, sem contar os vários milhares que se afogaram pelo caminho. Ainda assim, embora tão ruim, a situação não é muito diferente da do ano passado, quando 112 mil fizeram essa rota para a Itália.

Bem diferente é a guerra na Síria e no Iraque, onde saltou de 45 mil para 239 mil, no mesmo período, o número de pessoas que tentam alcançar a Grécia pelo mar. Por três décadas o Afeganistão produziu o maior número de refugiados, de acordo com a Acnur. Mas no ano passado, a Siria tomou seu lugar, e um em cada quatro novos refugiados, um agora é sírio. Uma sociedade inteira foi destruída, e o mundo fez muito pouco para deter esses acontecimentos. Apesar de uma recente onda de atividade diplomática, nenhum dos muitos atores na crise síria mostra urgência na tentativa de acabar com eles.

A Síria e o Iraque estão no centro das crises atuais de refugiados também de uma outra maneira. É lá que o Isis e grupos tipo al-Qaeda controlam parte significava do território e conseguem espalhar seu veneno sectário para o resto do mundo islâmico. Eles revigoram as gangues de matadores que operam mais ou menos do mesmo modo — estejam na Nigéria, no Paquistão, no Iêmen ou na Síria.

A fuga em massa de pessoas vai continuar enquanto a guerra na Síria e no Iraque continuarem.


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Livro aponta importância da ‘educação biocêntrica’ para a construção do conhecimento


Adital


O livro "Professor com prazer! Vivência e convivência na sala de aula”, do professor Francisco Leunam Gomes, traz uma nova perspectiva sobre o modelo de ensino nas escolas. Partindo do ponto de vista da educação biocêntrica, metodologia fundamentada nas ideias de Paulo Freire sobre educação dialógica, o autor busca orientar professores sobre a importância de se criar seres pensantes e não alienados em sala de aula.

"É fundamental que aprendam a pensar e não a decorar. Quem aprende a pensar, constrói. Quem decora só faz repetir”. O livro convida os profissionais de educação a substituírem o modelo tradicional de ensino, que, segundo o autor, se distancia do meio social dos alunos e coloca o professor como único detentor da informação. "Para a escola tradicional, aluno bom é aquele caladinho. Não atrapalha. Não pergunta”.
Leunam conta as suas experiências como professor e os resultados ao trabalhar com a metodologia biocêntrica em escolas de pequenos municípios do Ceará, Maranhão, Piauí, Pernambuco e até de Cabo Verde, na África.

O volume traz ainda passos que podem ser aperfeiçoados pelos professores, para estimularem o diálogo, a participação dos alunos e até mesmo da comunidade, através de suas experiências cotidianas, na construção de um conhecimento que fortaleça a cidadania.

"O homem tem uma necessidade vital de participar. É pela sua participação que marca a sua presença no mundo”. O reconhecimento pela contribuição de cada aluno no processo educacional é um dos fatores primordiais para o sucesso da metodologia biocêntrica, afirma o aturo. "Elogiar motiva os estudantes a se empenharem cada vez mais”. Para ele, o reconhecimento é tão importante para a alma, quanto o alimento para o corpo.

A educação biocêntrica consiste na valorização do ser humano e sua relação com a sociedade, favorecendo não só os alunos, como também os professores na sua forma de se relacionar no ambiente de trabalho.

O autor relata que é comum se deparar com profissionais desmotivados, mal-humorados e que utilizam o autoritarismo para imporem seus ensinamentos nas salas de aula. O que torna o ambiente escolar nada agradável para o aprendizado. O método biocêntrico da educação, por sua vez, auxilia na construção de um ambiente escolar feliz. Estimula a cooperação em equipes, desperta o gosto pelo ensino e a participação ativa de todos. Para que exista essa mudança nas escolas, o autor alerta que é preciso parceria entre os professores e dirigentes.

A metodologia se aplica não só ao ensino básico, como também ao superior. A obra possui testemunhos de alunos do curso de letras da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), que passaram pela experiência e ressaltam a importância da boa convivência em sala de aula promovida pela Educação Biocêntrica.


Ficha técnica
Título: Professor Com Prazer! Vivência e Convivência na Sala de Aula
Autor: Francisco Leunam Gomes


FONTE: Adital

sábado, 10 de outubro de 2015

Tempos idos e vividos IV


Por Aluizio Moreira


Um ano e dois meses que passei servindo ao Exército, nas circunstâncias em que me vi envolvido com as invasões das Faculdades de Direito, Rural e Engenharia por tropas das Forças Armadas, me fizeram despertar para as questões politicas, relações entre as classes sociais, papel das forças armadas, embora ainda sem atentar para as relações entre esses elementos, a superestrutura e a infraestrutura da sociedade.

A minha preocupação inicial, antes deste “despertar”, detinha-se na questão do Universo e da Ciência. Lembro-me que na minha adolescência, sentados eu e minha irmã Sônia no terraço de nossa casa, olhando para o firmamento, indagávamos, observando a imensidão do espaço, como teria surgido o universo com toda sua complexidade. E aí passávamos horas levantando hipóteses quanto ao seu surgimento, e esbarrávamos sempre em duas questões: a procura sempre de um inicio, inicio esse ligado/dependente a uma ação/criação sempre externa ao fenômeno. Ou seja, as coisas surgem ou mudam, sempre promovidas unicamente pela atuação de forças externas. Não tinha ainda lido alguma coisa sobre dialética ou escutado falar em transformação das forças quantitativas em qualitativas, unidade e luta dos contrários, que ocorrem internamente num fenômeno, num objeto, fundamentais para a geração das mudanças que são eternas, sem esquecermos o papel importante, mas não decisório das forças externas nesse processo.

Comparando-se com os dias de hoje, em que os adolescentes têm acesso aos conhecimentos pelos teclados de um computador, em 1958/59, então com meus 16/17 anos, não tínhamos muitos canais de informação. Além das limitadas informações obtidas nos livros didáticos de Ciências (Física, Química e Biologia) e de História, adotados na escola, lembro-me que naquela época a Prefeitura do Recife mantinha um ônibus com uma Biblioteca no seu interior, que visitava alguns bairros da cidade quinzenalmente, permitindo que tirássemos empréstimos de livros, devolvendo-os na visita seguinte.

Afora esse ônibus-biblioteca, tínhamos a Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco que funcionava no prédio do Arquivo Público Estadual e o Gabinete Português de Leitura, situados na Rua do Imperador, além da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, na praça  Adolfo Cirne, aberta ao público em geral. Foi nas visitas que fiz a essas Bibliotecas que travei contato pela primeira vez com “A origem das espécies” de Charles Darwin. 

Mas o executivo municipal não tinha só a preocupação de difundir a leitura. Num dos prédios da Av. Guararapes, a Prefeitura Municipal do Recife mantinha através do Departamento de Documentação e Cultura, um setor que oferecia ao público, o acesso às produções musicais “clássicas”, disponibilizando as composições de Tchaikovski, Chopin, Rimsky-Korsakov, Bach, Mozart, entre outros. Fazia eu os primeiros contatos com as “musicas clássicas” ou eruditas, como queiram chamá-las.

* * *

Tive baixa do serviço militar em fevereiro de 1962. Fui em busca de emprego através de uma agência, e semanas depois entregava minha Carteira Profissional na firma Agencia Nacional de Navegação, estabelecida na Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife. 

Recebido meu primeiro salário, e no intervalo do almoço, fui até uma sapataria no mesmo bairro, quando encontrei com um amigo do ginásio que se empregara como vendedor de livros. Mostrou-me as obras do seu catálogo e ali mesmo adquiri uma coleção que tinha por título “Biblioteca Racionalista”, editada pela Editora portuguesa Lello & Irmãos. Desta coleção, faziam parte, entre outros, os seguintes autores:
Haeckel – O monismo; História da criação natural; Os enigmas do universo; Religião e evolução; Origem do homem.
Buchner – Força e matéria; O homem segundo a Ciência.
Renan – Os apóstolos; A vida de Jesus; Marco Aurélio e o fim do mundo antigo.
Darwin – Origem das espécies.

Essas obras foram a base de meu pensamento filosófico, antes de deter-me mais frequentemente nos estudos  sobre o materialismo dialético e histórico.

***

O ano que passei servindo ao Exército impossibilitou-me de frequentar o chamado Ensino Médio. Minha contratação como auxiliar de escritório na Agência Nacional de Navegação, me permitiu retornar aos estudos, matriculando-me no inicio de 1963 no Colegial Clássico do Colégio Carneiro Leão, na Rua do Hospício, bem em frente da Escola de Engenharia. 

Nos intervalos das aulas e/ou antes do seu inicio, comecei a participar de algumas discussões com outros colegas do Colégio sobre os problemas que afetavam o ensino secundário. As discussões perpassavam desde fatos diretamente ligados ao ensino enquanto alunos do Carneiro Leão, às questões do ensino secundário de uma maneira geral, aos abatimentos das passagens de ônibus e entradas em cinema e outras casas de espetáculos, além de questões ligadas à politica nacional. 

Chegamos à conclusão que o primeiro passo importante a ser dado, seria disputarmos com chapa própria, as eleições para o Diretório Estudantil do Colégio. Saímos vencedores. Indicaram-me para o cargo recém-criado de Secretario da Cultura, cuja primeira medida foi a instalação de um mural na entrada do Colégio que facilitasse a comunicação entre o Diretório e o corpo discente, inclusive como local de fixação de artigos, como de convocação de mobilizações dos estudantes.

Era o inicio de minha atuação politica. 

Fora do âmbito do Colégio, passei a frequentar, com alguns colegas do Carneiro Leão, de reuniões na rua da Palma, no centro, se não me falha a memória, no primeiro andar de uma loja comercial de pai de um dos colegas. Naquele local discutíamos a situação econômica e politica do país e do mundo capitalista. Evidentemente sem nos descuidarmos das lutas que aconteciam ou estava para acontecer no meio estudantil secundarista. Foram estas circunstâncias que me levaram às leituras de História Econômica do Brasil de Caio Prado Jr., História Sincera da República de Leôncio Basbaum, Formação Econômica do Brasil de Celso Furtado, Princípios Elementares de Filosofia de Georges Politzer, Socialismo de Paul M. Seezy, Dez Dias que Abalaram o Mundo de John Reed.      
                                                             
***

Data dessa época em que estudava no Carneiro Leão, a criação de um poema que escrevi saudando entusiasticamente a Revolução cubana que se fez vitoriosa em 1959. Tinha eu então 17 anos, quando os revolucionários ocuparam Havana, 21 anos quando o escrevi.


Da esquerda para direita: Camilo Cienfuegos,
Fidel Castro e "Che" Guevara

AO POVO CUBANO REVOLUCIONARIO

               Aluizio Moreira

Quero ver as coisas novas
Um mundo novo recém-construído.
Falem homens livres
Da pátria libertada!
Falem fontes novas!
Falem rios novos!
Falem pedras novas!
Falem ventos novos!

Desperta criança
Que traz o peso da pátria nos ombros
E a fronte de homem
Voltada ao sol!

Acorda bandeira!
Acorda pena!
Cinzel!
Acorda campo!
Escola!
Acorda fabrica!
Acorda povo vestido de novo
Que quero ver teu rosto
Teus olhos novos
Tuas mãos
Teus lábios novos,
Em um mundo novo
Recém-construído!

(Recife, 1963)


Era inegável a influência da Revolução cubana sobre boa parcela da juventude brasileira da época. As fotos de Che Guevara, Fidel Castro e Camilo Cienfuegos não tinham ainda se transformado em silk screen para estampar camisetas e bonés. 

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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Violência contra a mulher e a população LGBT tem relação com Congresso conservador


Por Ana Clara Jovino


A inclusão de medidas e objetivos para combater a discriminação e a desigualdade de gênero nas escolas no Plano Nacional de Educação (PNE) e nos Planos Estaduais e Municipais tem estimulado debates em todo o país. Na última terça-feira, 11 de agosto, os vereadores de São Paulo aprovaram o Plano Municipal de Educação, mas o termo "gênero”, incluído no texto por defesa de entidades do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) e combatido por religiosos, ficou de fora.

Legislatura conservadora do Congresso Nacional repercute também nas
instâncias  estaduais e municipais de debate.
Foto: Agência Brasil.

Além disso, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados desengavetou o Estatuto do Nascituro, projeto que visa a garantir a proteção integral dos embriões, eliminando qualquer possibilidade de interrupção da gravidez, incluindo os abortos considerados legais, como nos casos de estupro e de anencéfalos. O projeto está nas mãos de um dos integrantes da bancada religiosa, o deputado federal Marcos Rogério (Partido Democrático Trabalhista – PDT – Roraima).

Para discutir o assunto, a Adital entrevistou Gisele Cristina Pereira, integrante da equipe do coletivo Católicas Pelo Direito de Decidir, movimento político internacional que se articula em organizações não governamentais, hoje, em 12 países pelo mundo. Gisele afirma que existe uma relação evidente entre a violência contra a mulher e a população LGBT e o momento conservador que o Congresso Nacional brasileiro vive.

ADITAL - A homofobia e a violência contra a população LGBT estão relacionadas com a igualdade de gênero, não sendo tratada nas escolas?

Gisele Cristina Pereira - Estão relacionadas com muitos fatores, mas, sem dúvida nenhuma, a educação formal é uma delas. Não tratar questões de interesse social nas escolas é um silenciamento danoso, que produz consequências das mais desastrosas.


ADITAL - Os casos de violência contra a mulher e a população LGBT podem ter relação com o momento conservador que o Congresso Nacional brasileiro vive atualmente, com a bancada religiosa tão em evidência?

GCP - Quando representantes do povo na instancia máxima de deliberação do país se posicionam, publicamente, de forma misógina, homofóbica e fundamentalista estão contribuindo para reforçarem esses pensamentos e atitudes na sociedade em geral e, portanto, legitimando e incentivando a violência contra mulheres, a população LGBT, e ainda acrescentaria a outras religiões, vide o caso da menina apedrejada ao sair de um terreiro [em Brasília, em julho último].

Além disso, há uma simbiose nociva entre a política institucional, a religião e a mídia, à qual devemos dar uma atenção especial. Tanto as mídias tradicionais quando as novas mídias digitais abrigam, hoje, uma forte presença de um discurso conservador e reacionário, que, em muitos casos, flerta com o fascismo. Além do púlpito de suas igrejas, os religiosos fundamentalistas contam para a disseminação de suas ideias com um aparato midiático de altíssimo alcance e ainda com o próprio Estado. Esses políticos/religiosos se tornaram, assim, verdadeiras celebridades, seguidos e admirados por muitos fiéis, que são também seus seguidores e fãs.

Como políticos e figuras de referência, se utilizam de forma irresponsável de sua posição, agindo em favor de suas "crenças” e interesses pessoais. Isto é gravíssimo, pois contraria princípios éticos básicos ao fazer político, como a democracia, a imparcialidade e a laicidade do Estado.

Ainda sobre o conteúdo desse discurso, vale reforçar que seus alvos prediletos são os direitos concernentes à sexualidade e à reprodução, e às religiões de matriz africana. Ora, se, com toda a influência e os meios de difusão que possuem, proferem um discurso que nega a existência, o respeito e a justiça para com outros grupos, não consigo ver uma prática correspondente que seja diferente da violência em suas diversas formas. Para mim, a relação é evidente.

Em 2014, a campanha das mulheres contra o estupro ganhou as redes sociais.
Foto: Reprodução

ADITAL - Se entre as metas dos Planos Municipais de Educação o setor ampliasse as políticas de educação, no que diz respeito à diversidade nas unidades educacionais, incluindo o ensino sobre questões de gênero e diversidade sexual, seria um fator que contribuiria para diminuir essa violência? Ou os brasileiros são mesmo conservadores e violentos?

GCP – Quando falamos de conservadorismo ou violência, estamos falando de uma mentalidade e comportamentos socialmente construídos; não existe uma essência que podemos atribuir aos brasileiros ou a qualquer outro povo. O que vemos é uma mentalidade conservadora sendo fortemente cultivada por diferentes setores e, de maneira preponderante, por grupos religiosos de caráter fundamentalista.

Essa mentalidade é extremamente nociva, pois legitima e reforça uma cultura de violência. Neste sentido, a educação tem um papel fundamental na transformação desta cultura, colaborando com a construção e vivência de uma ética calcada no respeito, na valorização à diversidade e na justiça.

ADITAL - Quais as consequências da violência de gênero nas escolas?

GCP – A escola reflete valores, concepções e comportamentos da sociedade, mas também atua reforçando-os, reelaborando ou mesmo elaborando novos. Ela é uma microesfera da sociedade. Estudantes passam grande parte de sua vida, em termos de anos e de horas do seu dia dentro do espaço escolar; este é o ambiente privilegiado para a reflexão e a vivência ética. É, propriamente, no campo da ética, que se encontram as discussões a respeito dos direitos humanos, da equidade social, da justiça de gênero, entre outras.

Existem consequências muito graves para a vida das pessoas que têm sua orientação sexual, identidade de gênero ou mesmo seu gênero tratados com escárnio, desprezo e desrespeito. É uma subjetividade que vai se constituindo pela via do sofrimento e da desvalorização.

Não são poucos os casos de evasão escolar decorrente de tais situações, de doenças emocionais, como a depressão, distúrbios alimentares e ainda casos de suicídio, devido à inconformidade com as normatividades impostas. Todos esses fatores restringem o potencial humano, que é altíssimo e deveria ser incentivado, não cerceado. Impõe limites às possibilidades de existência, criatividade e felicidade.

ADITAL - Quais planos deveriam ser postos em prática para existir, de fato, igualdade de gênero nas escolas?

GCP – Há inúmeras mudanças que precisam ser realizadas na escola. Elas vão desde a organização dos tempos e espaços, da sua estrutura, formação docente, até o currículo e a concepção sobre sua função social. As relações de gênero são uma parcela dentro desse todo.

É premente que pensemos qual escola queremos, pois, em última instância, estamos dizendo qual tipo de sociedade queremos. Mas algumas ações podem ser realizadas de imediato, como a adoção de materiais didáticos e paradidáticos que abordem a temática sob uma perspectiva de valorização da diversidade humana, incluindo uma outra visão a respeito das mulheres, das relações afetivas e sociais.

O uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero é outra medida que deve ser implementada com urgência; está prevista em lei, mas ainda enfrenta resistência por parte de alguns/as profissionais.

E aí temos de voltar à questão do Estado laico, pois o que acontece, na prática, é o profissional agir de acordo com suas concepções religiosas. Então, se a pessoa "acredita” que Deus fez homem e mulher, que existe uma estrutura única e "verdadeira” familiar, que as mulheres são inferiores aos homens, ela se sente autorizada a utilizar de suas crenças em seu fazer pedagógico e incuti-las nas mentes dos/as estudantes.

Isso é abominável! Precisamos encarar com seriedade a questão da laicidade do Estado, para podermos avançar nas questões de gênero, reprodução e pluralidade religiosa.

Estatuto do Nascituro elimina qualquer possibilidade de interrupção
da gravidez, inclusive abortos considerados legais. Em manifesto,  o
cartaz diz "Liberdade pra dentro do meu útero".
Foto: Reprodução

ADITAL - Qual a sua opinião sobre o Estatuto do Nascituro? Se for aprovado, quais as consequências? Aumentaria ou diminuiria o número de casos de estupro?

GCP – Não há uma relação causal tão determinista, mas, sem a menor sombra de dúvida, é um projeto que favorece a violência sexual, à medida que entende o estupro como um mal menor do que a interrupção voluntária da gravidez, por exemplo.

Quando você cria leis que regulamentam a vida da vítima do estupro, impedindo que ela decida, autonomamente, sobre o que fazer com suas dores e sua vida, a partir daí você está naturalizando essa violência, e naturalizar significa perpetuar. É como se o Estado dissesse: "o estupro existe e nada podemos fazer contra ele, agora, o embrião, o feto, estes precisam ser protegidos e são as mulheres que não possuem consciência”.

Retira-se das mulheres a autonomia sobre seus corpos, sua consciência e faz pesar sobre seus ombros a responsabilidade pela violência que sofreram e suas consequências. As mulheres são violentadas duplamente, primeiro pelo estuprador e depois pelo Estado, que as obriga a levarem adiante uma gravidez fruto de uma situação traumática.

ADITAL – Quais as consequências se o aborto for considerado crime hediondo?

GCP – É lugar-comum a constatação de que a criminalização não evita a realização do aborto, nem a morte dessas mulheres. É apenas uma maneira hipócrita e dissimulada de lidar com a questão. As consequências são desastrosas para as mulheres, sobretudo para as mais pobres, já que as que possuem recursos podem interromper a gravidez de forma sigilosa e segura, em clínicas particulares. Temos uma questão de classe que também precisa ser olhada. São mulheres pobres a quase totalidade das que morrem em decorrência de abortos inseguros.

Segundo dados da Pastoral Carcerária, entre 2005 e 2012 o crescimento da população feminina encarcerada aumentou 146%. Caso o aborto seja considerado crime hediondo só irá favorecer o aumento e a piora deste quadro.

Só para finalizar, não deixa de ser curiosa a lógica que rege os contrários a liberdade de escolha: em nome de uma suposta "defesa da vida”, nega uma educação voltada para a justiça, liberdade, autonomia, equidade e respeito, e, de outra parte, alimenta uma cultura de violência, incompreensão e punição. Sobre esta última considera aceitável que mulheres, por não desejarem ou não terem condições de levarem uma gravidez adiante, sejam punidas com o cerceamento de sua liberdade, submetidas a condições degradantes de existência, apartadas de suas famílias e abandonadas pela sociedade e pelo Estado. Isto é defesa da vida? Esta lógica está mesmo de acordo com a ética cristã? Não consigo ver algo mais incoerente!


FONTE: Adital

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