quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Em sentença histórica da Corte Interamericana (OEA), Brasil é condenado por trabalho escravo e tráfico de pessoas


A Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) emitiu no último 15 de dezembro a sentença do Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs Brasil, condenando o Estado brasileiro por ser internacionalmente responsável por não garantir a proteção de 85 trabalhadores de serem submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado a realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados desta condição.

Em consequência de sua condenação, o Estado brasileiro deverá retomar as investigações sobre o caso, adotar medidas para evitar que a prescrição seja aplicada ao delito de escravidão, e reparar as vítimas pelos danos imateriais sofridos, pagando indenizações pecuniárias a 127 trabalhadores e a uma trabalhadora. Além dos 85 resgatados na fiscalização de 2000, que receberão 40 mil dólares cada um, por terem sido submetidos a trabalho escravo e tráfico de pessoas, se somam, em razão da denegação de justiça, outros 43 trabalhadores resgatados na fiscalização de 1997, os quais receberão 30 mil dólares cada.

Tais valores dizem por si a gravidade das ofensas sofridas por essas pessoas.

A fiscalização de março de 2000 documentou que encontrou trabalhadores em situação de escravidão. Foram aliciados por um 'gato' no interior do Piauí e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. O teto era de lona. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com regularidade e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada.

A sentença ora publicada é histórica, porque é a primeira vez que a proibição da escravidão e da servidão é aplicada no julgamento de um caso concreto no Continente Americano, estabelecendo parâmetros para o conceito previsto no art. 6º da Convenção Americana, em particular na definição do que se considera responsabilidade e dever do Estado no enfrentamento à escravidão moderna e ao tráfico de pessoas.

A sentença é também paradigmática porque reconhece que a violação ao direito de não ser submetido a escravidão está inserida em um contexto de discriminação estrutural dos trabalhadores escravizados em razão de sua situação de vulnerabilidade econômica. Descreve que tal discriminação foi reiterada por parte da administração de justiça e outros setores, quando as vítimas ou seus representantes, em busca do reconhecimento de sua dignidade, recorreram à justiça para denunciar a submissão à servidão e tráfico, pleiteando a devida reparação, e não receberam qualquer resposta do poder judiciário.

O Tribunal considerou que as características específicas a que foram submetidos os  trabalhadores resgatados em março de 2000 foram além da servidão por dívida e do trabalho forçado, ao configurar: “violação à integridade e à liberdade pessoais (violência e ameaças de violência, coerção física e psicológica dos trabalhadores, restrições da liberdade de movimento); os tratamentos indignos (condições degradantes de habitação, alimentação e de trabalho) e a limitação da liberdade de circulação (restrição de circulação em razão de dívidas e do trabalho forçado exigido), foram elementos constitutivos da escravidão no presente caso”. “Foi constatada a existência de trabalho exaustivo, condições degradantes de vida, falsificação de documentos e a presença de menores de idade”.

Na Sentença fica explicitada a responsabilidade dos Estados “de garantir as condições necessárias para que não ocorram violações a esse direito inalienável e, em particular, o dever de impedir que seus agentes e terceiros particulares atentem contra ele”. Os Estados devem assegurar “que nenhuma pessoa seja submetida a escravidão, servidão, tráfico ou trabalho forçado, mas também requer que os Estados adotem todas as medidas apropriadas para pôr fim a estas práticas e prevenir a violação do direito a não ser submetido a essas condições, em conformidade com o dever de garantir o pleno e livre exercício dos direitos de todas as pessoas sob sua jurisdição”.

Para Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT: “se por um lado é lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para assegurar que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar, por outro lado é muito oportuno, na conjuntura política que essa sentença é proferida, que o Brasil perceba que continuará sendo monitorado pela comunidade internacional para que não deixe de ser a referência à qual chegou a ser identificado - por várias instâncias da ONU, inclusive a OIT - no combate ao trabalho escravo”.

A obstrução às garantias do sistema de justiça também foi uma das principais violações constatadas no Caso Brasil Verde, pois nenhum dos perpetradores chegou a ser efetivamente responsabilizado e nenhuma das vítimas recebeu reparação.

Nesse sentido, Beatriz Affonso, Diretora do CEJIL para o Programa do Brasil, enfatiza que “a decisão do Tribunal é emblemática porque cria um precedente importante ao declarar o caráter imprescritível do delito de escravidão segundo as normas do Direito Internacional por entender que a aplicação da prescrição constitui obstáculo para a investigação dos fatos, para a determinação e punição dos responsáveis e para a reparação das vítimas.

O combate à escravidão contemporânea requer uma ação de caráter integral. Além de pressupor uma normativa com conceitos vigorosos, hoje no Brasil já garantida na formulação do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é necessário que a atuação repressiva e judiciária seja eficiente. A sentença da Corte Interamericana reforça a tese de que combater o trabalho escravo requer políticas abrangentes que possibilitem a educação, o combate a discriminação de raça e de gênero, o acesso ao direito ao pleno desenvolvimento, acesso a terra, e a erradicação de todas as demais mazelas que caracterizam a discriminação estrutural que a Abolição de 1888 ainda não superou.

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Para entrevistas:

- Beatriz Affonso – Diretora do Programa do Cejil para o Brasil

Fone: (21) 969800303

- Xavier Plassat - Coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da CPT

Fone: (63) 992219957

*O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) é uma organização não-governamental de defesa e promoção dos direitos humanos no continente americano. O objetivo principal do CEJIL é promover a plena implementação das normas internacionais de direitos humanos nos Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio do uso efetivo do sistema interamericano de direitos humanos e outros mecanismos de proteção internacional. www.cejil.org   

**A Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja católica, foi constituída há mais de 40 anos para ser presença solidária e força de apoio efetivo junto aos povos do campo na sua histórica luta por terra, territórios e dignidade, frente à violência excludente do latifúndio. Com as comunidades camponesas, a CPT defende os direitos à terra e à água. Sua atuação tem sido decisiva na mobilização do Brasil contra o trabalho escravo contemporâneo. http://www.cptnacional.org.br

***CEJIL e CPT são copeticionários do Caso Brasil Verde desde 1998 quando enviaram a denúncia á Comissão Interamericana e, também em parceria, representaram o Caso José Pereira, precursor na Comissão Interamericana por denunciar trabalho escravo no Brasil, o qual culminou com uma Solução Amistosa que impulsionou as múltiplas políticas públicas de combate ao trabalho escravo no país no final da década de 90 e anos 2000.


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Cinco movimentos feministas que abalam o machismo latino


Se antes elas queimavam sutiãs, o novo ingrediente para a ebulição de atos, campanhas e movimentos
é a internet; conheça os grupos que levam milhares às ruas.


Por  Marcelle Souza  em  Calle 2


O movimento feminista nunca morreu, mas é fato que ele andou adormecido nas décadas de 1980 e 1990 na América Latina. Nesse período, os países discutiram leis e implementaram políticas (ainda tímidas, é verdade) com o objetivo de reduzir a desigualdade e a violência de gênero na região. Na última década, no entanto, ficou evidente que ainda há um longo caminho a seguir e que parte da pauta feminista do século XX continua muito atual. Além disso, essa retomada da luta por direitos tornou-se mais importante na medida em que a América Latina vivencia hoje um aumento dos discursos conservadores e religiosos nos espaços políticos.

Segundo a Cepal (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe), em relatório publicado em outubro, todos os dias morrem, em média, 12 mulheres na região – pelo simples fato de serem mulheres.

Se antes elas queimaram sutiãs para chocar a sociedade machista, o novo ingrediente para a ebulição de atos, campanhas e movimentos é a internet e, a partir dela, as feministas do século XXI ganharam nos últimos anos as redes e as ruas das maiores cidades da América Latina.

“Além de ser uma ferramenta de comunicação sem custos e sem fronteiras, as redes sociais mantêm uma mobilização latente entre as manifestações. A rede não de desfaz inteiramente depois de um ato”, diz Ingrid Cyfer, professora de teoria política do curso de ciências sociais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Nesse despertar feminista, uma das ferramentas mais eficientes têm sido as hashtags, usadas para convocar protestos e visibilizar as violências que fazem parte do cotidiano das latino-americanas. O ciberativismo só se transforma em protesto nas ruas quando um crime ou a agenda política impulsionam essa transposição. “Somente as causas capazes de gerar volume suficiente de engajamento chegarão fortalecidas às ruas, e essa capacidade está relacionada menos à justiça ou injustiça da causa em questão, e mais à sua receptividade em cada contexto político, histórico, social e cultural”, afirma a professora.

Além de contar com a internet e o momento político, esses novos movimentos são mais horizontais e heterogêneos, reunindo mulheres diversas em torno de um objetivo central e abrindo o debate para demandas específicas. “É um feminismo que começa a se anunciar como feminismos, como capaz de abarcar dentro de si visões de mundo e estilos de vida diversos. O compromisso com a liberdade e a emancipação soa mais autêntico nesse contexto. Além disso, a própria agenda do feminismo vem se ampliando. As feministas são também ativistas ambientais, estão nas lutas anti-racistas, contra as injustiças geopolíticas etc.”, diz a professora.

Esse novo formato, explica Cyfer, ajuda na proliferação da agenda feminista. “Ao lançar luz nos ‘novos’ temas do feminismo, os temas ‘antigos’ tornaram-se também visíveis, pois todos eles remetem a aspectos entrelaçados das injustiças estruturais de gênero”.

Um dos exemplos mais recentes desse novo feminismo latino-americano é a campanha Ni Una Menos, que ganhou visibilidade na Argentina no mês passado e ecoou em outras cidades da região. O movimento não está sozinho e acompanha uma onda de protestos que transbordaram das redes sociais para visibilizar e criticar o machismo na América Latina. A Calle2 lista a seguir alguns desses grupos que saíram às ruas nos últimos anos:
#NiUnaMenos na Argentina

A multidão de mulheres de preto que parou Buenos Aires contra a violência de gênero e o feminicídio no dia 25 de outubro repercutiu em jornais de vários países do mundo. A convocatória foi realizada pelas redes sociais com uso das hashtags #NiUnaMenos, #VivaNosQueremos e #MiercolesNegro, e ocorreu após o brutal assassinato e estupro da adolescente Lucía Pérez, de 16 anos. As argentinas decidiram então parar por uma hora e reuniram-se no Obelisco, no centro de Buenos Aires. A campanha ganhou eco e chegou a outras partes da América Latina, e atos também foram realizados em países como Chile, Brasil e Uruguai.

“O aumento da brutalidade dos feminicídios junto com a repressão policial ao movimento de mulheres nos obrigaram a uma reação imediata. Por isso, em cinco dias organizamos uma greve nacional de mulheres e convocamos todo o continente a uma mobilização. A magnitude dos protestos deve ser lida a partir da novidade da greve nacional, bem como pela gravidade dos fatos que originou os protestos. A onda de misoginia orquestrada pela restauração conservadora latino-americana, mas também mundial, encontra resistência de milhões de mulheres que a sentem em sua própria carne”, afirma Cecília Palmeiro, uma das representantes do Ni Uma Menos.

O coletivo de mesmo nome da campanha já havia mobilizado feministas universitárias, de partidos políticos e organizações da sociedade civil em outros momentos. “A primeira marcha Ni Uma Menos juntou 250 mil pessoas, a segunda, cerca de 150 mil pessoas e a terceira teve mais ou menos 200 mil. Trata-se de um movimento que se conecta e que se agita através da internet, mas que vive nas ruas”, diz Palmeiro.
“Primavera Feminista” no Brasil

Foi em 2015 que os meios de comunicação começaram a usar o termo “Primavera Feminista” para definir os atos nas ruas e as mobilizações nas redes sociais contra a cultura do estupro, o machismo e a desigualdade de gênero no Brasil. O movimento foi ganhando visibilidade aos poucos, como na campanha #EuNãoMereçoSerEstuprada de 2014, e foi para as ruas com mais força em outubro de 2015, quando as mulheres reagiram às mensagens de teor sexual a respeito da menina Valentina, participante do programa MarterChef Júnior, que invadiram a internet naquele ano. A resposta foi uma enxurrada de depoimentos que usavam a hashtag #MeuPrimeiroAbuso sobre casos de abuso sexual e até de estupro na infância e pré-adolescência.

“O #meuprimeiroabuso e #nãomereçoserestuprada expuseram uma das facetas mais perversas do sexismo: a responsabilização da vítima pela violência sexual. Além disso, essas campanhas criaram também uma rede de solidariedade em torno do combate a esses preconceitos, uma rede que é acionável com mais facilidade em novas campanhas de combate à cultura do estupro”, afirma a professora da Unifesp.

No mesmo mês do, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 5069, de autoria do então deputado e presidente da Casa Eduardo Cunha, que dificulta a realização do aborto nos casos já previstos em lei. Foi o suficiente para que atos fossem realizados pelo país contra o projeto e contra o machismo. Em São Paulo, 15 mil mulheres protestaram na avenida Paulista.
#NiUnaMenos no Peru

Antes da greve que parou a Argentina neste ano, as mulheres do Peru já tinham tomado as ruas para protestar contra a violência de gênero. Em julho, duas decisões judiciais favoráveis a homens que haviam espancado suas companheiras ganharam a imprensa do país. Os dois não foram condenados à prisão, o que causou grande indignação e mobilizou ativistas, artistas, estudantes e políticos pedindo o fim da violência. O grande ato realizado dia 13 de agosto foi liderado por mulheres que sobreviveram após sofrer brutais agressões dos ex-maridos. Segundo o Ministério da Mulher, entre 2009 e junho de 2016, houve 921 tentativas e 812 feminicídios no Peru.
#24A no México

No dia 24 de abril deste ano, mulheres mexicanas saíram às ruas em mais de 40 cidades contra a violência de gênero e o feminicídio no país. O que começou com um pequeno evento no Facebook organizado por amigas, em pouco tempo transformou-se em uma grande mobilização nacional, que contou com o uso das hastags #24A e #VivasNosQueremos e reuniu desde organizações tradicionais até feministas autônomas. Na véspera dos atos, houve também uma onda de relatos de violência no Twitter registrados na campanha #MiPrimerAcoso. Vestidas de lilás, elas saíram em marcha para tentar colocar na agenda pública o debate sobre violência de gênero. O principal protesto começou na frente do Palácio Municipal de Ecatepec, o município mais perigoso para ser mulher no México, e terminou em Victoria Alada, na Cidade do México.
Pela despenalização do aborto no Chile

Um dos poucos países do mundo em que o aborto é proibido em qualquer situação, o Chile é palco das “Marchas por el Aborto Libre, Seguro y Gratuito” desde 2013. Os atos engrossaram nos últimos anos o debate em torno do projeto apresentado em janeiro de 2015 pela presidente Michelle Bachelet, que prevê a despenalização da interrupção da gestação em três situações: risco de morte para a mãe, inviabilidade fetal e estupro. Nas redes, o movimento é marcados pelas hashtags #AbortoLibre e #Aborto3Causales. O tema, no entanto, gerou forte reação contrária tanto nas redes sociais quanto nas ruas. Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto atualmente é discutido no Senado.



terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Comparato: um Judiciário sem controle algum



Para o grande jurista, há uma razão  para quase duzentos anos de  desresponsabilização dos juizes:
eles são o grande guardião do poder oligárquico. Mas existem alternativas. 


Fábio Konder Comparato, entrevistado por Franciele Petry Schramm*



O arquivamento do pedido de impeachmentdo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, enquanto ainda tramitava no Senado Federal, não surpreendeu Fábio Konder Comparato, um dos integrantes do grupo de juristas que apresentou o pedido.

Segundo o professor emérito de Direito da Universidade de São Paulo (USP), é preciso levar em consideração que os senadores são julgados pelo STF nas infrações penais comuns, e que vários deles respondem a inquéritos criminais ou são réus em ações penais.  “É óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal”, avalia.

Apresentado ao Senado no dia 13 de setembro e arquivado uma semana depois, o pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta, em seus argumentos, o comportamento partidário do ministro e a violação de princípios constitucionais e de códigos da magistratura.

Em entrevista a Articulação Justiça e Direitos Humanos, Comparato alerta para a falta de controle jurídico sobre Ministros do Supremo Tribunal Federal e aponta a necessidade de uma reforma do Poder Judiciário.

Confira:

JusDh: O pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta um comportamento partidário por parte de Gilmar Mendes, e acusa o ministro de ferir a Constituição, o Código de Ética e a Lei Orgânica da Magistratura. O senhor considera que a postura do Ministro é uma postura isolada dentro do STF?

Fábio Comparato: De todos os atuais Ministros do Supremo Tribunal Federal, o desempenho de Gilmar Mendes é o que mais deixa a desejar. É por isso que decidimos ingressar com o pedido de impeachment, exatamente para alertar os demais Ministros e a opinião pública quanto ao perigo de generalização desse mau procedimento. Na verdade, atualmente os Ministros de nossa Suprema Corte de Justiça não estão sujeitos a controle jurídico algum, pois não há nenhum Poder acima do tribunal e dos magistrados que o compõem. A Constituição Federal dispõe em seu artigo 102 competir precipuamente ao Supremo Tribunal Federal “a guarda da Constituição”. O Conselho Nacional de Justiça é um órgão constitucional, com competência para controlar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, declarados no Estatuto da Magistratura (art. 103-B, § 4º). Ninguém pode negar, nem mesmo o Ministro Gilmar Mendes, que os Ministros do Supremo Tribunal Federal fazem parte da magistratura e devem, por conseguinte, cumprir os deveres impostos pelo Estatuto da Magistratura. Ora, abusando de sua condição de instância judiciária máxima, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.367 do Distrito Federal, decidiu que “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o STF e seus Ministros”. Ou seja, o tribunal decidiu isentar-se do cumprimento de qualquer dever funcional, ainda que previsto na Constituição, da qual foi declarado guardião.

Esse não a primeira vez que um pedido de impeachment de um ministro do STF foi protocolado no Senado Federal. Até o momento, nenhum desses pedidos foi acatado pelo Senado. O senhor avalia que há dificuldade em colocar em questionamento as posturas e decisões do STF? Por quê?

Levando-se em conta que os Senadores são sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns, e sabendo-se que vários dos atuais Senadores respondem a inquéritos criminais, ou já são réus em ações penais, é óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal. Consta, aliás, que Sua Excelência, o Sr. Presidente do Senado Federal, responde a inquérito criminal no Supremo. Ora, ele, evidentemente, assim que recebeu a petição de impeachment de Gilmar Mendes, determinou o seu arquivamento. Ou seja, aplicou-se o velho costume do “dá lá, toma cá”.

De que forma a composição do Sistema de Justiça contribuiu para a manutenção de uma prática pouco democrática e que nem sempre observa a garantia dos direitos humanos?

Até a promulgação da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 35, de 14/03/1979), não eram definidos os deveres funcionais dos magistrados. E até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 8/12/2004, que instituiu o Conselho Nacional de Justiça, não havia nenhum órgão de controle da atuação dos magistrados, incumbido de julgar o cumprimento de tais deveres. Verificamos, portanto, que durante um século e meio após a Independência, os nossos magistrados atuaram isentos de qualquer controle, a não ser o mui esporadicamente exercido por eles mesmos.

Dois exemplos históricos são ilustrativos dessa tradição de irresponsabilidade.

Em sua viagem ao redor do mundo, pela qual comprovou sua teoria da evolução das espécies, Charles Darwin fez uma estadia de vários meses no Brasil em 1832. Pôde então verificar o seguinte, conforme reportado em seu diário de viagem:

“Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados. Um homem pode tornar-se marujo ou médico, ou assumir qualquer outra profissão, se puder pagar o suficiente. Foi asseverado com gravidade por brasileiros que a única falha que eles encontraram nas leis inglesas foi a de não poderem perceber que as pessoas ricas e respeitáveis tivessem qualquer vantagem sobre os miseráveis e os pobres”.

O segundo exemplo diz respeito ao Supremo Tribunal de Justiça, o mais alto órgão judiciário no tempo do Império. Ao final do seu reinado,em declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro II não pôde conter-se e desabafou:

“A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz; e enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguirá esse fim”.

Quais caminhos e possibilidades o senhor considera necessário para tornar o Sistema de Justiça menos intangível, no que se refere à sua composição e na avaliação de suas próprias ações?

Desde sempre a magistratura brasileira, com raras e mui honrosas exceções, fez parte integrante do poder oligárquico, que predominou em nosso país desde o início da colonização portuguesa. Ora, um costume multissecular, entranhado na mentalidade coletiva e preservado pelas instituições políticas, não desaparece em pouco tempo. O processo de reforma em profundidade do Poder Judiciário será, portanto, concomitante ao processo de extinção do regime oligárquico; ou seja, não se fará da noite para o dia e, uma vez iniciado (o que ainda não aconteceu), irá durar várias gerações. O que se pode fazer hoje para provocar o início desse processo é propor algumas medidas específicas, as quais, como o pedido de impeachment de Gilmar Mendes, serão no começo certamente denegadas, mas, sendo reiteradas, acabarão por abalar a opinião pública, abrindo os olhos da maioria do povo, que não faz parte da oligarquia. Uma dessas medidas é a transformação do Supremo Tribunal Federal em Alta Corte Constitucional, reduzindo a sua competência e determinando que a nomeação de seus Ministros seja feita pelo Congresso Nacional, dentre candidatos escolhidos preliminarmente pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. É o que consta da Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013, por mim redigida e apresentada à Câmara dos Deputados pela Deputada Luiza Erundina. A segunda medida é a reorganização do Conselho Nacional de Justiça, a fim de que ele não seja composto por uma maioria de magistrados, como agora, e passe a ter explicitamente jurisdição sobre os Ministros do Supremo Tribunal Federal. A terceira medida seria, simplesmente, reintroduzir em nossa Constituição a ação popular contra magistrados, como determinavam os artigos 156 e 157 da Constituição de 1824:

Art. 156 – Todos os Juízes de Direito e os Oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício de seus Empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por Lei regulamentar.

Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo obedecida na Lei.


*Publicado no JusDH


domingo, 4 de dezembro de 2016

Os avanços no ensino público superior estão ameaçados



Na última década, dobrou o número de campi e de vagas nas universidades federais, especialmente nas regiões mais carentes. Um avanço que a PEC 55 deverá sucatear

por Cida de Oliveira 



 Fronteira Sul (UFFS): mesmo as mais antigas estão em risco


A população de Chapecó (SC), Realeza e Laranjeiras do Sul (PR), Cerro Largo, Erechim e Passo Fundo (RS) viu sua reivindicação começar a ser atendida entre 2011 e 2014, quando foram construídos 35 prédios da tão esperada Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Com R$ 280 milhões de investimentos, em quatro anos foram postos em funcionamento 43 cursos de graduação e 12 de mestrado para 8.500 alunos com as melhores notas no Enem. São em sua maioria filhos de agricultores, egressos da escola pública, moradores de uma região que recebia recursos federais apenas para obras nas fronteiras. A vocação agropecuária e a busca por desenvolvimento regional sustentado são contempladas em cursos de engenharia, na ênfase à agroecologia na produção de alimentos e no cooperativismo. E o de medicina, com foco preventivo, é o primeiro criado no país no âmbito do programa Mais Médicos.

A UFFS é um dos símbolos do processo de ampliação e desenvolvimento da rede federal de ensino superior iniciado em 2005, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Seguiu interior adentro, abrindo portas para os filhos de trabalhadores, tirando o atraso e diminuindo as desigualdades regionais. Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), ao longo de 83 anos, entre 1919 e 2002, foram construídas 45 universidades federais nas capitais ou grandes cidades. E nos últimos 11 anos, outras 19, porém no interior do país, ajudando a reduzir a demanda reprimida por ensino superior gratuito.

A necessidade de ampliação da rede, em atendimento ao Plano Nacional de Educação (PNE) do período, fez com que essas primeiras 45 construíssem novas unidades em regiões carentes. O resultado, segundo balando do MEC, é que entre 2003 e 2014 o número de campi passou de 148 para 321, o número de cursos de graduação presencial foi ampliado de 2.047 para 4.867 e as vagas, de 113.263 para 245.983. As matrículas subiram de 500.459 para 932.263, principalmente no Norte, com 76% de aumento na oferta, e no Nordeste, com 94%. A democratização do acesso foi acompanhada por políticas de auxílio à permanência do estudante na universidade.

O vice-reitor da UFFS, Antônio ­Andrioli, conta que desde que a instituição começou a funcionar, há sete anos, 90% dos alunos são egressos da escola pública, que necessitam de auxílio para moradia, transporte e alimentação inclusive no curso de Medicina. Ao contrário da lógica nacional, ali a ampla maioria dos estudantes não é de filhos de médicos, mas de trabalhadores da agricultura. Por isso, recebem até R$ 520 mensais, um investimento que totaliza R$ 9 milhões ao ano.

“Demandas futuras, como a inclusão da população indígena para além das cotas, vai exigir mais recursos porque aqui essa população tem auxílio especial, que pode chegar a R$ 900. E queremos também ampliar auxílio de apoio pedagógico e incluir quilombolas e outras populações tradicionais da nossa região que ainda não conseguem acesso ao ensino superior. Tanto que estávamos propondo um campus dentro de uma comunidade indígena”, conta Andrioli.

Assim como toda a rede federal de ensino superior, a UFFS viu sua situação financeira enfrentar cortes orçamentários no ano passado, e a situação poderá se agravar com o fantasma da PEC 55, se o Senado confirmar a aprovação da Câmara. “Antes tínhamos os recursos e as empresas demoravam para entregar as obras. Agora são elas que nos cobram e por isso atrasam. Falta terminar o hospital universitário em Realeza, um bloco de salas de aulas em Chapecó e um em Passo Fundo”, diz.

Mesmo assim, Andrioli avalia que sua situação é melhor do que a de muitos outros reitores. Dos 38 prédios planejados, falta concluir apenas três. Mas um projeto de 2009, de um prédio exclusivo para a reitoria, deve ser engavetado, assim como os planos de ampliar cinco cursos por campus e, depois, construir cinco novos campi, juntando neles todas as áreas do conhecimento.

De volta aos 90

“Vínhamos de um contexto em que o Brasil assegurou recursos para que atingíssemos uma meta, que considero moderada, de ter 20% dos jovens de 18 a 24 anos na universidade até 2020. E achávamos que seria possível com os recursos do pré-sal. Agora, vivemos outro cenário, sem conseguirmos ampliar as vagas. O desafio agora é manter os cursos, concluir os concursos, decidir internamente sobre os cursos abertos com financiamento de outros programas federais agora extintos”, relata Andrioli. “O cenário que visualizamos é que dificilmente os estudantes terão acesso à universidade pública. Estamos voltando à política que imperou no país na década de 1990. À frente do MEC estão as mesmas pessoas de antes, que sucatearam a educação nos anos 1990.”

O tom se repete com a diretora de Universidades Públicas da União Nacional dos Estudantes (UNE), Graziele Monteiro. “Era um tempo em que as universidades estavam sucateadas. Faltava dinheiro para coisas básicas, como pagar luz e água”, conta. De acordo com ela, superado o sucateamento, políticas de apoio à permanência ganharam a dimensão principal. “A nova universidade que construímos corre risco de acabar. Há ameaça de cortes de vagas principalmente em cursos de licenciatura, mais populares, na extensão. Com o congelamento do orçamento trazido pela PEC, é a volta a uma era de desmonte da universidade pública. O risco é de fim da popularização da educação pública de qualidade no país.”

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) defende justamente a consolidação da expansão universitária federal. Em aula magna na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), no final de setembro, a presidenta da entidade, Ângela Maria Paiva Cruz, reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), destacou o aumento de cursos noturnos, a revisão da estrutura dos programas e a atualização dos projetos pedagógicos e das políticas de democratização do acesso e de assistência estudantil. Segundo ela, “a cara da universidade federal passou a ser a cara do Brasil”. Segundo um estudo recente da Andifes, 66,19% dos alunos matriculados têm origem em famílias com renda média de até 1,5 salário mínimo. Se consideradas apenas as regiões Norte e Nordeste, esse percentual atinge 76%.

Os docentes, com queixas sobre as dificuldades de trabalhar numa rede em expansão com suas mais variadas implicações, temem agora a total precarização do trabalho. “Já estava difícil. Estamos com salários defasados, perdas em torno de 20%, e muitos professores ainda contratados temporariamente”, avalia o primeiro-secretário do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Francisco Jacob Paiva da Silva. E vai piorar, segundo ele, quando os cursos começarem a ser extintos e a infraestrutura e laboratórios sucatearem. “Defendemos mais investimentos, melhores condições, mais vagas, e recebemos a PEC. Temos de pressionar contra porque se trata do desmonte, da estagnação, da desesperança.”


Na mira da PEC

A partir de 2003, foram abertas 19 novas universidades, com 173 campi, permitindo 431.804 novas matrículas. A proporção da democratização do acesso: 66,19% dos alunos matriculados são de família com renda média de até 1,5 salário mínimo, que devem deixar de estudar depois da PEC 55. Além das 45 universidades mais antigas, estão na mira a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e outras 18 criadas recentemente

Norte

Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa)
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unidesspa)

Nordeste
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)
Universidade Federal do Cariri (UFCA)
Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob)
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf)
Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa)

Centro-Oeste
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
Universidade Federal do Tocantins (UFTO) 

Sudeste
Universidade Federal de Alfenas (Unifal)
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)
Universidade Federal do ABC (UFABC)

Sul
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
Universidade Federal do Pampa (Unipampa)
Universidade Federal de Ciências da Saúde e Porto Alegre (UFCSPA)


domingo, 27 de novembro de 2016

Para frear o desmonte das universidades


Em São Paulo, governo sucateia instituições admiradas em todo o país. Elas 
registem, em greves e ocupações. Movimento compreende: para questionar ensino 
e pesquisa, urge salvá-las. 

 


Por Francisco Rolfsen Belda


Em um contexto de greves, paralisações e manifestações a se alastrar pelos principais campi universitários de São Paulo, a sociedade paulista está chamada a debater e decidir, com urgência, qual modelo de universidade pública quer manter e oferecer para a atual e as futuras gerações. Há dois projetos em jogo.

Um deles significa aprimorar os mecanismos de financiamento e de gestão que, até hoje, garantiram que USP, Unesp e Unicamp conquistassem prestígio nacional e internacional, ofertando ensino superior gratuito e de qualidade, pesquisas científicas e tecnológicas de alto impacto e serviços de atendimento social e comunitário em áreas de saúde e educação básica, entre outras, como os do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o Centrinho, da USP, e dos cursinhos pré-vestibular Principia, Primeiro de Maio e Ferradura, da Unesp, em Bauru, amplamente reconhecidos pela população.

O outro projeto em jogo significa o desmonte gradativo dessa estrutura — o que já está em curso, mediante uma sistemática defasagem nos recursos destinados pelo governo estadual ao custeio dos programas de ensino, pesquisa e extensão que, ao longo das últimas décadas, expandiram-se para garantir a formação profissional e ampliar as oportunidades de emprego e geração de renda para mais de um milhão de egressos de seus cursos de graduação e pós-graduação, além da construção de um patrimônio público inestimável dedicado à ciência e à tecnologia em mais de 30 campi em todas as regiões do estado.

Falta de professores, corte de bolsas, encerramento de projetos de extensão, desvinculação de hospitais universitários, sucateamento de laboratórios, prédios com manutenção deficiente e arrocho salarial são apenas algumas das faces mais visíveis desse desmonte. Em alguns casos, a situação chega às beiras do ridículo, com a falta de papel higiênico, sabonete e toalha de papel nos banheiros. Sem contar inúmeros serviços que só não estão sendo desmontados agora porque, a rigor, nunca chegaram a existir na forma e amplitude devidas, como moradias, refeitórios e transporte coletivo para estudantes de baixa renda.

Um argumento geralmente usado para apoiar o desmonte alega ser “injusto” usar o dinheiro público, que é de todos, para bancar ensino de excelência para “alguns privilegiados”. Considerada de relance, a tese parece ter sentido, mas é falsa, assim como a ideia de que o parque universitário paulista poderia ser gerido com “mais eficiência” se fosse vendido ou concedido à administração privada. Neste caso, mais ou menos pode ser apenas uma questão de perspectiva, já que uma gestão eficiente muitas vezes visa, prioritariamente, a ampliação das margens de lucro de quem explora a educação como um serviço particular, e não como um direito social — aliás, quem desdenha, geralmente, quer comprar.

Inúmeros estudos sobre desenvolvimento internacional provam que formar quadros qualificados e promover ciência e tecnologia de qualidade são investimentos que produzem efeitos benéficos a toda a sociedade, e não apenas aos indivíduos que conquistaram propriamente um diploma ou um título de pós-graduação. Em países ditos desenvolvidos, onde algumas universidades datam de muitos séculos, sobram exemplos de como a produção intelectual e a disseminação e a aplicação do conhecimento estão diretamente relacionadas com o avanço de indicadores socioeconômicos mais amplos — por exemplo, na produtividade do trabalho e na redução dos gastos com licenciamento e importação de tecnologias.

Mas se em poucos países, como os Estados Unidos, as melhores universidades são financiadas principalmente com dinheiro privado, via matrículas, doações e fundos empresariais de pesquisa (além, é claro, das encomendas tecnológicas de órgãos governamentais), é preciso reconhecer que países como o Brasil ainda não podem prescindir do papel do estado no fomento e no financiamento do ensino e da pesquisa de qualidade, haja vista o reduzido poder aquisitivo da maioria das famílias, a falta de estímulo tributário à filantropia e a obtusa cultura de distanciamento entre as atividades acadêmicas e o mundo corporativo daqui, que ainda prefere importar soluções a desenvolver e implementar inovação em parceria com a universidade.

Além disso, nos últimos anos, políticas afirmativas passaram a garantir um número expressivo de vagas a estudantes negros e de outras minorias étnicas ou oriundos de escolas públicas, minimizando uma distorção histórica que sempre imperou no acesso ao ensino superior no Brasil. Se é verdade que, em cursos como o de medicina (um exemplo clássico, mas enganoso, devido à sua especificidade), filhos da elite ainda ocupam a maioria das vagas gratuitas, não é menos certo afirmar que, na maioria dos cursos universitários públicos, atualmente, o cenário demográfico é outro, e sobretudo na Unesp, onde o avanço dessas políticas se dá de modo mais acelerado, ainda que não sem contradições.

Por fim, a pauta salarial dos professores e servidores técnico-administrativos, que entraram novamente em greve no início do mês, em diversos campi paulistas, é um item importante e que também deveria preocupar quem, estando fora dos círculos acadêmicos, ainda defende um modelo de excelência para essas universidades. Afinal, o achatamento gradativo das remunerações vai, aos poucos, afastando os melhores talentos do ensino público, fazendo com que se percam décadas de investimento na formação e qualificação de recursos humanos de nível superior. Em alguns departamentos, a fuga de cérebros já começou e, sem recomposição dos salários, irá se agravar.

Ainda assim, acredito ser possível que docentes e servidores relativizassem o impacto de suas perdas salariais caso vislumbrassem um projeto estratégico mais amplo, que lhes devolvesse uma perspectiva de desenvolvimento profissional e de melhoria da qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão que são, por dever de ofício, mas sobretudo por vocação, obrigados a ofertar. Por isso, o atual movimento de greve não é apenas pela reposição da inflação no valor dos salários e sim, principalmente, em defesa da universidade pública de excelência e gratuita em benefício da comunidade, com vasto apoio entre estudantes e outros setores sociais.

Aperfeiçoar e corrigir aspectos do atual modelo de gestão e financiamento das universidades públicas do estado de São Paulo, bem como dotá-lo de maior transparência no modo como aplica seus recursos é certamente necessário, e isso deve ser debatido de forma ampla e participativa pela sociedade paulista e suas lideranças políticas. E a hora é agora. Mas usar essas supostas distorções para justificar um desmonte ou mesmo a privatização desses serviços e desse patrimônio só pode ser obra de uma política que esteja francamente a favor do atraso científico, tecnológico e educacional do estado. Ou, pura e simplesmente, de sua inação.


Francisco Rolfsen Belda é jornalista, professor do Departamento de Comunicação Social da FAAC, Unesp, campus de Bauru.


sábado, 19 de novembro de 2016

Tempos idos e vividos VIII


 Por Aluizio Moreira



Nossa gestão para os anos 67/68 à frente dos Diretórios Acadêmicos (Direito, Filosofia, Economia) e Diretório Central dos Estudantes da UNICAP chegava ao fim. 

A repressão ao Movimento Estudantil e às Universidades consideradas essas  então pela ditadura “centros revolucionários” ganhou nova dimensão. No inicio do ano seguinte, a ditadura sob a presidência de Costa e Silva, faz baixar o Decreto nº 477 de 26 de fevereiro de 1969 também chamado “AI-5 das Universidades”, que criminalizava duramente professores, alunos, e até mesmo funcionários que fossem julgados “subversivos” pelo regime. Os professores seriam demitidos e impossibilitados de exercer sua profissão em qualquer Instituição de Ensino por 5 anos. Os estudantes seriam expulsos e proibidos de cursarem qualquer Universidade por 3 anos.

Vejamos o Art. 1º e parágrafos do Decreto 477.

DECRETO-LEI Nº 477, DE 26 DE FEVEREIRO DE 1969

Define infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando das atribuições que lhe confere o parágrafo 1º do Art. 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968,

DECRETA: 
Art 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular que:
I - Alicie ou incite à deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralisação de atividade escolar ou participe nesse movimento;
II - Atente contra pessoas ou bens tanto em prédio ou instalações, de qualquer natureza, dentro de estabelecimentos de ensino, como fora dêle;
III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dêle participe; 
IV - Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza; 
V - Seqüestre ou mantenha em cárcere privado diretor, membro de corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino, agente de autoridade ou aluno; 
VI - Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública.§ 1º As infrações definidas neste artigo serão punidas: 
I - Se se tratar de membro do corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino com pena de demissão ou dispensa, e a proibição de ser nomeado, admitido ou contratado por qualquer outro da mesma natureza, pelo prazo de cinco (5) anos; 
II - Se se tratar de aluno, com a pena de desligamento, e a proibição de se matricular em qualquer outro, estabelecimento de ensino pelo prazo de três (3) anos. 
§ 2º Se o infrator fôr beneficiário de bolsa de estudo ou perceber qualquer ajuda do Poder Público, perdê-la-á, e não poderá gozar de nenhum dêsses benefícios pelo prazo de cinco (5) anos. 
§ 3º Se se tratar de bolsista estrangeiro será solicitada a sua imediata retirada de território nacional.

Seguiam-se mais 5 artigos que tratavam da tramitação do processo.

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Alguns alunos começaram a ser vitimas do 477. Procurei safar-me da expulsão, e voluntariamente afastei-me da Universidade, abandonando o Curso de Jornalismo, sem efetivar a renovação de minha matricula em 1969, na esperança de que no ano seguinte retornaria aos meus estudos. Com o que eu não contava é que naquele ano de 1969 o Padre Freitas, então Reitor da UNICAP, tinha sido substituído por um interventor não jesuíta. Nunca mais tivemos noticias do Padre Freitas.

Em 1970 fui procurar o Interventor a fim de que permitisse meu retorno ao Curso de Jornalismo depois do abandono, pois não tinha feito o trancamento da matrícula naquele ano de 1969, condição que me asseguraria o retorno à Universidade, pois o jubilamento só aconteceria após três anos de abandono do Curso. Minha esperança desvaneceu-se quando ouvi do Interventor que “já estava botando para fora da Universidade os  comunistas, como poderia botar mais um para dentro?”

Nessa situação só consegui voltar aos estudos no ano de 1973 (pelo tempo deveria ter sido jubilado) por interferência de um Professor na época Coordenador do Curso de História. Reabri minha matricula em Jornalismo e um ano depois me transferia para o Curso de História na mesma UNICAP.

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Estou retornando ano 1962, ano que resolvi deixar a vida militar, por questões ideológicas, e passei procurar um emprego, retornar aos estudos, pois não teria mais bolsa da Prefeitura para custear as mensalidades do Curso. Com meu primeiro emprego, pude ingressar no Colégio Carneiro Leão, para cursar o que corresponde hoje ao nível médio. Repetindo o que já dissera antes: foi nesse Colégio, enquanto estudante do chamado Colegial que enveredei pela política tanto estudantil como partidária.

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Em relação ao emprego, fiz inscrição em Agência, concorrendo no mercado de trabalho como auxiliar de escritório. Só em março de 1963 consegui empregar-me na Agência Nacional de Navegação, empresa privada agenciadora de algumas companhias de navegação nacional como estrangeira. Nessa época associei-me ao Sindicato dos Comerciários e conheci o sr. Osvaldo, um idoso que também era funcionário de uma outra empresa de navegação. Em conversas, defendeu que ao invés de pertencermos à categoria de comerciários, deveríamos lutar por nosso enquadramento na categoria de marítimos, cujos salários e demais benefícios ultrapassavam ao que recebíamos como comerciários. Chegamos a convocar reuniões com outros funcionários de outros escritórios de navegação, quando aconteceu o golpe militar de 1964, o que não me impediu de continuar militando no PCB no âmbito do Sindicato dos Comerciários.

O fato de ter sido detido para averiguação por meus vínculos com a Associação Cultural Brasil-URSS, com o Clube Literário Monteiro Lobato e com o Sindicato dos Comerciários, valeu-me a demissão em 1972, da Agência Nacional de Navegação.

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Nessa época, casado, residente em Ouro Preto, Olinda, cursando Jornalismo na UNICAP, fiquei encarregado de publicar “AVANTE” mantido pelo Comitê Estadual do PCB, um tabloide que circularia a nível de Estado. Mimeografado artesanalmente na minha própria residência, suas matérias eram produzidas nos fins de semana por mim e pelo camarada Fausto Nogueira, embora utilizássemos vários nomes em cada edição, e a partir da segunda-feira saíamos distribuindo pessoalmente em várias empresas comerciais e bancárias, com os camaradas e simpatizantes do Partido.  É importante registrar, que nas páginas do Avante fazíamos, nas suas quatro folhas de papel oficio, denúncias dos mais variados tipos de repressões aos comunistas, não só do PCB, mas aos militantes de outras organizações de esquerda. Eram folhas de papel de seda mandadas pelos camaradas exilados na Europa que nos imprimíamos e divulgávamos, já que nossa imprensa nada publicava sobre torturas, mortes e desaparecimentos que ocorriam. Algumas vezes recebíamos materiais em francês que com muita dificuldade conseguíamos traduzir.


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Desempregado até então, voltei a procurar a Agência de Emprego, que me indicou para a firma DAMPE-Engenharia Representações Comerciais e Industriais, para trabalhar num canteiro de obras de um conjunto residencial localizado na Estância. Fiquei encarregado de organizar e controlar a entrada e saída dos materiais de construção. Um mês depois, uma amiga funcionária da Agencia Nacional de Navegação que conhecia minha situação, procurou-me no local de trabalho, para comunicar que o Bank of London & South America Ltd. estava selecionando pessoal para vagas como escriturário no setor de Conta Corrente. Aprovado na seleção  desliguei-me da Dampe-Engenharia e em junho de 1972 assumia meu novo emprego.

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Minhas atividades empregatícias não alteraram minha militância participando das reuniões e discussões na chamada “célula” do PCB na UNICAP. Juntamente com outros grupos de estudantes universitários (identificados com os socialistas e com a Igreja chamada progressista), participamos ativamente da politica estudantil, nos Diretórios Acadêmicos da Universidade e no Movimento Estudantil, a nível Estadual e a nível Nacional.

No inicio do ano de 1973, mês de abril/maio, se não me engano, um camarada responsável pela distribuição no Nordeste da Voz Operária, jornal da Direção nacional, tinha sido preso em Fortaleza, o que permitiu, a partir dos endereços encontrados com o militante, localizar vários camaradas da Bahia ao Maranhão. Entre tantos endereços, o meu.

Em maio, em decorrência desse fato, eu era procurado no Bank of London por um policial à paisana, convidando-me para ir ao DOPS dar uns depoimentos e que logo seria dispensado. Avisei aos companheiros do Banco e fui conduzido pelo policial até uma viatura onde já se encontravam dois homens, sentados entre dois policiais.

Ao chegar ao DOPS já se encontravam entre os presos Paulo Cavalcanti e Janiro Pontes técnico da SUDENE. Aliás foi o Paulo Cavalcanti que intermediou o contato do advogado Boris Trindade a fim de defender-me das acusações que pesavam contra mim: militante do PCB responsável pelo distribuição da Voz Operária em Pernambuco, bem como pelo pela feitura e distribuição do jornal mimeografado Avante.

Eis como Paulo Cavalcanti em “O caso eu conto como o caso foi: nos tempos de Prestes (Memórias política)””, o 3º volume relata minha “estadia” no DOPS:
Certa noite, puseram um rapaz perto da sala onde estávamos. Nem eu nem Janiro o conhecíamos. O rapaz parecia tenso, andando de um canto para outro. Um investigador nos transmitiu as recomendações do delegado: nenhum de nós poderia trocar palavra com o preso. 
 A minha experiência de frequentador de xadrez me levava a suspeitar da presença de uma pessoa completamente desconhecida entre nós. Às vezes, a policia utilizava elementos como esses para infiltrar-se no meio dos presos políticos, a fim de pescar o que se passava no coletivo.
Ao mesmo tempo, eu me condoía da situação do moço, calado, fumando muito, sem nos olhar diretamente.
Continua Paulo Cavalcanti:
Resolvi arriscar minha segurança. Numa madrugada, esgueirando-me pelo chão, quase rastejando como um réptil, acordei o jovem e me identifiquei. Perguntei-lhe a causa da prisão e fiquei sabendo que se tratava de um bancário acusado de participar da distribuição no Estado do jornal Voz Operária e da feitura do boletim mimeografado Avante, mantido pelo Comitê Estadual do PCB.
Dias depois eu e o Janiro fomos conduzidos por um jipe até o Bairro de Casa Forte e numa das dependências da Policia, tiraram fotos de frente e de perfil, além de imprimirmos nossas digitais num documento que nem se deram ao trabalho de deixar que lêssemos o conteúdo.

Ao contrário do que me dissera o policial por ocasião de minha detenção no Banco de Londres para que eu prestasse alguns esclarecimentos, eu não seria dispensado tão cedo. E não mais retornaria, por motivos óbvios, a trabalhar como escriturário naquela agência  bancária. 



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