sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Quem faz a nossa cabeça?


Por Frei Betto

A Conferência do Clima, realizada em Paris em fins de 2015 - tumultuada pelos atentados terroristas das semanas anteriores -, não abordou suficientemente muitos temas.
 
Documentário "Além do Cidadão Kane" ("Beyond
citizen K,ane") apresenta alguns dos crimes
cometidos  no Brasil pela Rede Globo de
Televisão. Foto: divulgação


Houve um encontro prévio na Bolívia, e lá estava o secretário geral da ONU. Ali se propôs promulgar uma Declaração Universal de Defesa da Natureza. A Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, comparada com a da Revolução Francesa, representou um grande avanço, mas, vista de hoje, após mais de 60 anos, precisa ser aprimorada.

A declaração diz, por exemplo, que todos os seres humanos nascem com dignidade. Porém, não exige que se assegurem as condições de viverem com dignidade. E não determina, como a Declaração de Independência dos EUA, que todos têm direito à felicidade.

No Butão,pequeno país no sul da Ásia, o rei substituiu o Produto Interno Bruto pela Felicidade Interna Bruta. Agora o critério de aferição das condições do país não é mais o consumismo ocidental, é o da felicidade daquele povo camponês.

A Declaração Universal não fala dos direitos planetários. E já começou a corrida. Todo dia aparece, no noticiário, a cobiça cósmica. Primeiro, pela lua. Logo descobriram que ela não dá lucro. Agora é Marte, Saturno, Plutão. Gasta-se um absurdo com a colonização planetária, dinheiro que daria para resolver o problema econômico de inúmeras nações.

A ONG britânica Oxfam denunciou, em Davos, que o patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial. Ou seja, em janeiro de 2014, 3,5 bilhões de pessoas mais pobres, de um lado da balança, e outras 85 mais ricas, do outro lado, com a mesma renda!

O francês Thomas Piketty, autor de O capital no século XXI, e que não tem nada de esquerdista, afirma: a pirâmide da desigualdade crescerá aceleradamente enquanto o capital predominar sobre os direitos humanos.

O próprio sistema tem este nome: capitalista. Eis o drama das instituições de formação da cidadania, como sindicatos, Igreja, família e escola. Elas querem formar cidadãos. O sistema quer formar consumistas.

Esse é o conflito que todo educador vive na própria família. É uma luta desigual. Ele tem valores, princípios, ética, mas o filho está exposto a uma multimídia avassaladora, confirmando o princípio do velho Marx: a maneira de pensar de uma sociedade tende a ser a maneira de pensar da classe que domina aquela sociedade. Isso é irrefutável. Quem domina tem em mãos os meios de comunicação.

O sistema de rádio e televisão brasileiro (não a imprensa escrita) tem dono: a União. Em outras palavras, todos nós contribuintes brasileiros. E o governo, em nosso nome, estabelece uma concessão - concede o direito de uso a um determinado grupo empresarial. Pela Constituição, essas concessões deveriam ser avalizadas e refeitas periodicamente, mas isso nunca acontece.

Quando trabalhei no Planalto, em 2003/2004 (narro essa história no livro Calendário do Poder, editora Rocco), eu perguntava ao presidente e aos ministros: o governo não é dono do sistema radiotelevisivo do Brasil? Sim, é dono. Por que, então, paga às emissoras de TV para fazer propaganda do Ministério da Saúde, do Ministério da Educação, do Banco do Brasil? Sem resposta.

Em época de eleições escutamos: "Inicia-se agora o horário eleitoral gratuito.” Mentira, não é gratuito. Tem isenção no Imposto de Renda. Há um cálculo de quanto o canal está perdendo naquele horário "cedido” aos partidos e candidatos, e isso é abatido no Imposto de Renda.

Em novembro, frente aos atentados em Paris, dizíamos "somos todos franceses”. É justo. Agora, quem, dias antes, diante do avião russo derrubado no Egito, ecoava "somos todos russos”? Que russos morram no Sinai, vítimas de atos terroristas, não tem a menor importância para nós, ocidentais.

Por isso tentamos disfarçar a globocolonização sob o manto virtual da globalização.


Frei Betto é escritor, autor do romance "Minas do Ouro”(Rocco), entre outros livros.


FONTE: Adital

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Por que ninguém mais quer ser professor na escola pública?






Incluir na "ESTANTE"

Por Luiz Claudio Tonchis 

O desinteresse dos alunos pelos estudos, aumento dos casos de indisciplina, violência e atos infracionais nas escolas preocupam os educadores. Além dos baixos salários e as más condições de trabalho, são as principais causas geradoras de angústia, insatisfação, medo, desestimulando-os ao exercício da profissão. Frase como, por exemplo: “os jovens de hoje não tem limites”, “não querem saber de nada”, “não estudam”, “são apáticos”, “sem educação”, tornaram-se comum. As escolas públicas são muito mais vulneráveis a esses problemas pelas suas características: plural, universalizada, composta por uma clientela heterogênea quanto à condição econômica, social e cultural.

A educação básica na escola pública vai mal. As universidades reclamam, dizem que os alunos que chegam as universidades tem informação, mas são incapazes de compreendê-las. De que será a culpa? Da escola? Dos educadores? Do Estado? Dos Jovens? A racionalidade nos indica que a culpa não é dos nossos jovens, afinal, eles não nasceram prontos, foram produzidos assim na configuração política e social em voga. Sabemos que desde que o “mundo é mundo” os jovens sempre manifestaram certa rebeldia. O que mudou foi à configuração da rebeldia. A indisciplina e a violência revelam-se cada vez mais cruel e perversa.

A indisciplina e a violência na escola é a reprodução da violência que ocorrem na sociedade. A escola não é desconectada da sociedade, faz parte dela. As condições políticas e sociais do país, má distribuição de renda, impunidade, corrupção, baixa escolaridade e de renda da maior parte da população são exemplos de problemas sociais que refletem na escola. Além disso, as mudanças sociais contemporâneas ocorridas no modelo de família refletem na formação dos jovens.  Atualmente os pais necessitam trabalhar, as crianças e adolescentes tem ficado cada vez mais aos cuidados de terceiros ou sós, numa fase da vida tão importante para a educação de valores indispensáveis à boa convivência humana. O pior é que, muitas vezes, a família não é referência. Esses problemas se agravam nas famílias de baixa renda, eles não podem pagar uma cuidadora capacitada ou colocar numa escola infantil de qualidade. Faltam vagas nas creches e de projetos alternativos que acolham essas crianças e adolescentes enquanto os pais trabalham.

Pois bem, esses jovens indisciplinados e violentos estão nas escolas, não é a maioria, mas são muitos. Não estão lá para estudar, estão ali porque a escola é um ambiente social deles ou porque são obrigados. No final dos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio os problemas se agravam. Aumentam à falta de respeito, alunos se recusam a fazer atividades e estudarem, atrapalham as aulas, brigas, xingamentos, palavrões, depredação do patrimônio público, bulling e ameaças são exemplos de ocorrências diárias no cotidiano das escolas. A figura do professor, que antes, e não faz muito tempo assim, talvez uns vinte ou trinta anos atrás, tinha a função de professar o conhecimento, hoje não é, mas assim. Hoje, ele tem que mediar conflitos, chamar atenção dos alunos, enfim, tentar primeiro manter a ordem para que a sala de aula tenha condições de fazer o que ele fazia antigamente.

A questão é que manter a ordem da sala está cada vez mais difícil, os professore não obtém êxito. É humilhado, ameaçado e ofendido com palavrões. O bom aluno que tentar defender o professor e a ordem, também é ameaçado.  Outros, menos violentos quando é chamado atenção, olham para o professor com “cara” de deboche e respondem: “tô suave”; “não dá nada não professora”. Ah! Vai me mandar para a diretoria? Vai chamar meus pais? Conselho Tutelar? Boletim de Ocorrência? Fica a vontade “fessora”.  “Não dá nada não”. Suspensão? Que bom vou ficar uns dias em casa e ficar mais na internet, “na brisa”, vou curtir.

Os educadores trabalham em situações extremas de nervosismo, medo e angústia. Preparam aulas maravilhosas e não conseguem colocar em prática. Não é possível produzir se o ambiente e as condições não são favoráveis, o resultado é a baixa qualidade do ensino e não está pior porque muitos não desistem. A maioria é consciente de suas responsabilidades: transformar vidas, mudar a realidade caótica de muitas crianças e adolescentes, prepara-los para serem cidadãos críticos, conscientes, responsáveis e com uma formação moral e ética por uma sociedade melhor. O paradoxo é que eles são responsabilizados pelo fracasso e o insucesso escolar. Angústia dupla. Na hora de receber o salário, outra angústia.

Jovens, educadores e pais são vitimas do modelo educacional político social e histórico. A melhoria da qualidade da educação acontecerá na medida em que o país melhore a qualidade de vida da sua população, valorize a nossa cultura e desvincule do modelo de práticas curriculares eurocentrista, uniformizadora e colonizadora. Por enquanto, qualquer intervenção nas escolas é apenas um paliativo e isso não dispensa qualquer ação dos sistemas de ensino. Por exemplo, capacitar os educadores é muito importante, mas hoje não é esse o principal problema. O maior problema é tê-los. Ninguém quer ser professor com o salário que ganha e com as condições de trabalho vigente e se nada for feito a educação brasileira travará em breve.

http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/por-que-ninguem-mais-quer-ser-professor-na-escola-publica



terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A difícil, mas necessária travessia


Estamos encurralados diante de uma nova investida do pensamento neoliberal da desconstrução das políticas e instituições que garantem direitos.




Por Cândido Grzybowski


Neste começo de 2016, me recuso a especular e elaborar prognósticos sobre o que poderá acontecer como desdobramento da enorme crise político-econômica que estamos vivendo, particularmente aqui no Brasil. Prefiro pensar no que é necessário fazermos, a partir da diversidade de sujeitos coletivos que conformamos como cidadania, para serem criadas possibilidades políticas de revitalização da nossa democracia. Estamos diante da necessidade de constituir uma nova hegemonia, de um novo imaginário mobilizador, de uma nova onda democratizadora da política e da economia, que seja capaz de transformar situações através da disputa democrática pautada por valores e princípios éticos dos projetos e rumos para o país. Esta é uma condição sine qua non para uma maior emancipação da cidadania diante da ditadura dos mercados e da especulação financeira, que quer ditar nosso futuro, nosso modo de viver em busca de bem-estar e sustentabilidade, compartindo territórios e riquezas entre todas e todos. O fato é que precisamos agir e ousar desde o aqui e o agora, porque o futuro e os caminhos a ele se fazem no caminhar.

Por trás daquela fumaça toda e confusão em Brasília, onde quase nada se vê, precisamos identificar as forças obscuras que estão determinando o jogo político. Estamos encurralados diante de uma nova investida do pensamento neoliberal da desconstrução e flexibilização das políticas e instituições que garantem direitos. Mais privatização e menos estatais, mais abertura comercial com exploração de insustentáveis “vantagens comparativas” em agronegócio e produtos primários, mais facilidades de acesso a recursos naturais e menos bens comuns como áreas de preservação, territórios indígenas e de povos tradicionais, menos regulação democrática como propósito último. Enfim, os interesses e as forças políticas do neoliberalismo entre nós querem usar o Estado para dar mais poder ao próprio mercado. Aproveitando as dificuldades do governo Dilma, que ganhou as eleições mas não construiu a hegemonia necessária, e usando a alavanca da crise fiscal, trata-se reduzir a própria capacidade do Estado de formular, financiar e executar políticas para o bem de todos.

O problema está longe de ser o impeachment ou não, pois a crise tem uma questão de hegemonia no seu cerne. O futuro que o neoliberalismo aponta é o aprofundando do mesmo sistema do capitalismo socialmente excludente e ambientalmente predador. Porém, o máximo que poderemos alcançar é uma posição de nação subserviente. Há uma grande verdade histórica que evitamos de ver: esse sistema supõe que só uns poucos países possam ganhar. Para haver outros, países que ocupam posições no pequeno clube de desenvolvidos e o imperialismo que os suporta tem que cair. Não há lugar para todo mundo no desenvolvimento do capitalismo, como nos lembrava Celso Furtado nas suas últimas obras. A opção democrática é exatamente o transitar, sem guerra e nem barbárie, para modelos políticos e economias adequadas que priorizam a justiça socioambiental e não a acumulação privada de riquezas.

O incrível, entre nós, são um montão de “unanimidades burras”, como chamava Nelson Rodrigues. Estas unanimidades, particularmente no seio das classes dominantes, são verdadeiras viseiras que não nos permitem ver mais longe e o que realmente importa. Por exemplo, nem está na agenda pública o debate do fato que um punhado de detentores da dívida pública brasileira consome aproximadamente metade do orçamento federal recebendo juros estratosféricos, situação criada em última análise pela própria política monetária, que, assim, só alimenta mais e mais a tal crise fiscal do Estado. E ainda querem atribuir às conquistas cidadãs em educação, saúde e previdência social, legitimadas e instituídas na Constituição de 1988, como as fontes da crise fiscal que atravessa o Estado brasileiro. O que não dá é para continuar a apostar na possibilidade do Brasil ser um sócio submisso e dócil de um desenvolvimento capitalista concentrador de riquezas e destruidor do próprio planeta, comandado pelo cassino global de grandes corporações e de especuladores, que criam riqueza financeira fictícia de mais de 10 vezes o PIB mundial. Mas como sabem se remunerar estes donos do mundo sem nada fazer!

Estamos diante de uma ameaça real no aqui e agora. Os grandes interesses econômico-financeiros já mercantilizaram e contaminaram a política entre nós. Um dos traços mais evidentes da crise política atual são as lideranças investidas de poder e as bancadas no Congresso a serviço de interesses privados. Aliás, o nosso sistema partidário e nosso Congresso não expressam a cidadania real em sua diversidade. Eles estão contaminados pela enorme privatização operada na política. Campanhas eleitorais entre nós viraram marketing, de venda de imagens e discursos vazios, sem debate de ideias e projetos para o país. Mais, a maioria dos investidos de mandatos de representação não tem lealdade com eleitoras e eleitores que os elegeram, são leais aos seus financiadores.

Será que as operações em curso, deflagradas pela Promotoria Pública, Polícia Federal e Justiça Federal vão ao menos por um freio neste assalto da política e do patrimônio público? De toda forma, mudança real da política não virá daí. Somos nós mesmos que temos que resgatar a política, o espaço comum de construção de sentidos e projetos, de exercer o papel instituinte e constituinte da cidadania, de gestão da nossa diversidade de sujeitos com princípios de liberdade e igualdade mutuamente reconhecidos. Política na democracia só funciona como bem comum, como bem de todos e todas. Política não pode ser um mercado de troca de favores, alimentador do patrimonialismo que, como câncer, corrói o próprio espaço da política, os partidos, a representação e o Estado, em última análise. Mas a política não nasce comum, pelo contrário, torna-se comum pela ação democrática da cidadania e de seus representantes eleitos, que recolocam os comuns no centro. A reforma política que precisamos se faz na rua, na comunidade, nos espaços de encontro, no trabalho, no sindicato, nos movimentos sociais e nas organizações de cidadania ativa, na universidade. Cidadania em ação direta é condição necessária da política como bem comum, enfim. Mas para tornar-se força irresistível precisa criar poderosos movimentos políticos de cidadania que emancipem a política da ditadura privatizante e mercantilizante imposta pelos mercados e lhe deem sentido de bem comum. Aí entra a renovação do ativismo cidadão e da militância através de redes, fóruns, conselhos e partidos, pelo debate público, pela criação e disputa de imaginários mobilizadores, pelas eleições. Não basta uma reforma na legislação, mesmo ela sendo necessária. A condição indispensável para nova onda política democrática é a cidadania em ação. Identifico aí o nosso primeiro grande desafio para criar possibilidades de outro Brasil, desde aqui e agora.

O que fazer, então? É evidente que de Brasília, do poder central, nada virá! Tão pouco virá da plêiade de partidos existentes, em geral oportunismos de ocasião ou, quando tendo bases sociais, verdadeiras máquinas burocráticas sem mais condições de disputar hegemonia. Nos resta olhar à nossa volta, ao nosso cotidiano, ao território em que vivemos como nosso lugar. Precisamos reconstruir espaços de encontro e debate, de incansáveis debates que vão criando novas solidariedades, com renovados valores e, sobretudo, com ideias que podem dar sentido e mobilizar a cidadania em círculos crescentes. Não foi isto que nós, das gerações que viveu os anos de chumbo da ditadura, fizemos e acabamos alimentando o irresistível movimento da redemocratização? Os tempos e as gentes são outros. A história não se repete. Mas o aprendizado do fazer política a partir de situações do cotidiano pode ser resgatado como um bem comum da cidadania e voltar a ser útil para novo tecido associativo, novos movimentos, novas organizações, na atualidade. Por sinal, é no cotidiano à nossa volta que podemos encontrar resistências e insurgências cidadãs que são verdadeiras sementes políticas de um amanhã mais democrático e participativo na construção de uma sociedade mais justa e sustentável. Eis aí um segundo desafio, mas que depende mais de nosso engajamento cidadão do que de outra coisa.

Este olhar atento e solidário às resistências e insurgências cidadãs nos territórios em que vivemos podem ser o pilar de uma agenda mobilizadora que, de baixo para cima, alimente uma poderosa onda democratizadora. Vejo as resistências e insurgências que pipocam pelo Brasil nos últimos anos como tendo a defesa e a promoção dos bens comuns como algo central. Podem ser resistências urbanas, como favela é cidade, barreiras ao assalto de espaços na cidade pelo capital imobiliário, a luta por transporte e a mobilidade urbana coletiva como direito de cidadania e como prioridade sobre o transporte individual e as empresas privadas que o transformam em negócio, a luta pela água e o saneamento como bens comuns, a valorização da produção cultural popular e de rua, escolas e saúde pública “padrão Fifa”, entre tantas outras lutas. Muitas delas e cada vez mais são resistências nos territórios rurais como comuns humanizados e criados ao longo de gerações, seja contra o agronegócio predador e concentrador, seja à grande mineração e os grandes projetos de interesse dos grandes conglomerados empresariais, sem respeito nenhum às populações locais e seus comuns. Temos, ainda, um debate emergente que tenta por em questão as empresas públicas como bens comuns. O fato de haver muito a mudar neste terreno, para que as estatais funcionem como bem comum de toda a cidadania, não pode obscurecer que o ataque às estatais visa a transferência generosa, como no passado recente, de patrimônio público a grupos privados. Desmontar a capacidade indutora da economia nas mãos do Estado é fácil, mas vai limitar enormemente a própria capacidade de regulação democrática da economia. Todas estas agendas emergentes, de resistências e insurgências, devem entrar no nosso campo de análise e do novo ativismo cidadão que precisamos construir para outro futuro do nosso Brasil. Está aí a terceira prioridade que aponto.

Tem mais! Penso que temos um grande desafio para ampliar a esfera pública e o debate público com um novo imaginário mobilizador. Trata-se da comunicação como espaço estratégico do fazer a partir de hoje o futuro que queremos e apostamos como possível. Brigamos muito pela democratização da comunicação, visando em particular o verdadeiro monopólio privado, que tenta fazer nossas cabeças através dos grandes meios. A comunicação é um bem comum estratégico em qualquer democracia que tenha sentido e capacidade de transformação. Como pouco conseguimos nos 30 anos da onda democratizadora que se esgota, tal luta continua válida, mas talvez venha perdendo importância. Devido às novas tecnologias de informação e comunicação – as TICs – está em curso uma verdadeira revolução nas comunicações. As “redes sociais” minam o monopólio privado de televisão, rádio e jornais numa velocidade espantosa. Estamos diante de uma fecunda revolução anárquica, quase sem controle, onde podemos nos informar e nos comunicar da forma mais livre possível. O problema é seguir isto tudo e, sobretudo, garimpar as sementes de bom senso presentes aí – como dizia Gramsci no seu tempo. Já existem esforços de cidadania, alguns ancorados em instituições de reconhecido compromisso ético e político com a democracia, que tentam ajudar na garimpagem, organizando a informação e a circulação de análises que arrancam sentido do cotidiano aparentemente anárquico. Precisamos apoiar tais esforços como resistências e insurgências de cidadania portadores de outro futuro. Isto podemos fazer sem depender de partidos ou mediadores. Basta nos reconhecermos como cidadãs e cidadãos que compartilham a mesma busca de novo imaginário mobilizador.

Enfim, sei que o que proponho está longe de ser suficiente, mas pode ser um começo que nos tire da total falta de perspectivas do debate dominante e que transforme nosso desconforto com a atual situação em algo que nos permita mover-se como cidadania. Quão longo será o processo de gestação de uma nova onda democratizadora é difícil prever. Aliás, escapa ao controle. Só é possível afirmar que foi assim que se gestaram verdadeiras revoluções cidadãs na história recente da humanidade. E isto está ao alcance do nosso que fazer político.

Que no fim deste ano, 2016 possa ser celebrado e lembrado no futuro como o ano de começo da virada! Boa sorte para nós, pois ela também faz falta muita vezes. O mar está revolto, mas a travessia necessária pode se tornar possível pelo nosso engajamento com ousadia e determinação.

Cândido Grzybowski é Sociólogo e Diretor do IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.


FONTE: Carta Maior

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A democracia verdadeira


Por Claudionor  Mendonça dos Santos  


A democracia, no Brasil, vive momentos de aflição. É sabido que tal regime não consegue sobreviver por muito tempo, talvez em razão de que nossa República tenha como berço um golpe. A partir de então, a sociedade brasileira acostumou-se a tal situação, habituando-se aos frequentes atentados à Constituição e à nossa sofrida República.

A sociedade brasileira, leia-se a classe média, acredita que o câncer da corrupção nasceu a partir de meados do ano 2000 e arraigou-se somente num determinado partido político. Desinformada e manipulada, bate panelas diante do acervo corruptivo. Cala-se, criminosamente, diante da repressão e massacre de professores e estudantes. Chora por Paris, mas faz pouco caso de Mariana.

A fragilidade da democracia revela pontos débeis na manutenção da regra que assegura que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Aponta-se que 70% dos nossos parlamentares foram eleitos com recursos oriundos do mundo empresarial que o Supremo Tribunal Federal achou por bem fazer cessar. Portanto, sabido que a sociedade brasileira não se constitui de tamanha porcentagem de empresários, é de se concluir que ela não se faz representar no Parlamento. Tal fato se deve, obviamente, ao alto custo das eleições, ultrapassando milhões de reais.

Diante desse quadro, urge que se concretize o mais rápido possível a reforma do nosso sistema eleitoral. Vivemos um sistema marcado pela absoluta discrepância entre o real e o legal. A desigualdade social diminuiu, mas ainda merece atenção, diante do triste quadro ainda visível nas esquinas das grandes cidades. A infância abandonada, o sistema penitenciário absolutamente falido, sendo que a população carcerária é a terceira do planeta, atrás somente dos Estados Unidos e China e já tendo ultrapassado a Rússia. A prostituição infantil se espalha pelas cidades nordestinas e, pior, com a condescendência dos próprios pais, tangidos pela miséria. A saúde pública atinge contornos cruéis, afetando principalmente os mais carentes.

À parte, o sistema educacional atinge contornos pungentes. Professores mal remunerados em escolas nas quais falta o mínimo de estrutura. Eles, os professores, fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem. E qualquer contestação é objeto de violenta repressão que recai tanto sobre os professores como sobre os alunos.

O genocídio da população jovem e negra da periferia pode ser considerado como verdadeira política de Estado. Mais de cinquenta mil pessoas são assassinadas anualmente, número superior ao montante de mortos em países em guerra.

É necessário resgatar o conceito de democracia. Tal sistema não pode abranger os absurdos por que passa a sociedade brasileira. Proteger nossas crianças, adolescentes, idosos e recuperar aqueles que cumprem pena nos sistemas prisionais, verdadeiras masmorras, implica, tudo, em reflexão.

E isso somente será superado quando a sociedade brasileira souber respeitar os direitos básicos contidos na Lei Maior e alguns de seus dispositivos deixarem de serem meros enunciados. Para tanto, os integrantes dos poderes constituídos deverão se despir de seu egoísmo e colocarem acima de tudo os interesses sociais. Fazer valer os fundamentos da República, especialmente a cidadania e a dignidade da pessoa humana, atingindo-se os objetivos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, especialmente a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e redução da desigualdade social. Aí, sim, teremos efetivamente a verdadeira Democracia.


Claudionor Mendonça dos Santos é promotor de justiça e membro do Movimento Ministério Público Democrático.


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...