sábado, 27 de fevereiro de 2016

Programa Universidade para Todos: radiografia de uma inclusão segregadora



 Por José Tadeu Arantes

O ensino superior privado lucrativo teve início, no Brasil, durante a ditadura militar, e não parou de se intensificar desde então, adquirindo uma escala sem paralelo no planeta. Atua, hoje, no país, o maior grupo educacional privado lucrativo do mundo, com cerca de 1 milhão de alunos.

"Transitamos de pequenas faculdades isoladas para grandes universidades, até chegar aos fundos de investimento, com ações altamente cotadas na Bolsa de Valores. São instituições voltadas para obterem lucro com a educação. Fato bem diferente do que ocorre nos países desenvolvidos, onde não houve estímulo estatal para a existência de empresários donos de universidades”, afirma o pesquisador Wilson Mesquita de Almeida, em seu livro "Prouni e o ensino superior privado lucrativo em São Paulo: uma análise sociológica”, publicado com apoio da FAPESP.



O livro é resultado da pesquisa de doutoramento de Almeida, orientada pela professora Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins, do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

Segundo o pesquisador, o modelo de ensino superior que se tornou dominante na graduação brasileira é um modelo empresarial, originado na década de 1970, no regime militar, por meio de dois incentivos dados às universidades privadas: a não cobrança de impostos e o crédito educativo, criado em 1976, atual Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

"Com esses incentivos dados pelo Estado, que continuam até hoje, o setor privado lucrativo conseguiu acumular poder financeiro e político para fazer prevalecer seus interesses nos governos democráticos que vieram depois. O ensino superior privado lucrativo é algo bastante peculiar ao Brasil das quatro últimas décadas”, diz Almeida à Agência FAPESP.

Entre o fim da década de 1990 e início dos anos 2000, as universidades lucrativas enfrentaram uma grave crise financeira. Em 2005, o setor acabou beneficiado com a criação do Programa Universidade para Todos (ProUni), que confere bolsas de estudo integrais ou parciais, em cursos de graduação e sequenciais nas universidades privadas, para estudantes egressos do Ensino Médio da rede pública ou da rede particular, na condição de bolsistas, com renda familiar per capita máxima de três salários mínimos. Os candidatos são selecionados pelas notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Em troca das bolsas de estudo, na proporção de um bolsista para cada nove alunos pagantes, as instituições com fins lucrativos ficaram livres de impostos, ajudando-as a sobreviverem naquele contexto de crise econômica.

Pesquisa qualitativa

Almeida centrou seu estudo no acesso e permanência dos bolsistas do ProUni, em São Paulo, procurando verificar os limites, avanços e desafios do programa. "Fiz uma pesquisa qualitativa, na qual investiguei os casos de 50 alunos de várias universidades privadas lucrativas da cidade de São Paulo. As entrevistas e questionários foram estruturados segundo quatro grandes eixos temáticos: família, trabalho, acesso à universidade e vida universitária dos bolsistas”, informa Almeida.

Segundo o pesquisador, a principal limitação do Programa é ele ter sido montado em um sistema no qual a maioria das universidades participantes possui baixa qualidade educacional, atestada nos exames nacionais de avaliação do ensino superior.

Pesquisador Wilson Mesquita de Almeida

"Para conseguirem mais lucros, os empresários do ensino reduzem investimentos no mais importante: na qualidade do professor (demitem e investem pouco em profissionais mais qualificados, com doutorado, devido ao "custo”), e em uma seleção mínima do estudante, de forma a ter maior número de alunos pagantes”, diz Almeida.

E acrescenta: "Hoje, o quadro está mais sombrio, dado que as maiores instituições estão na Bolsa de Valores. Assim, a lógica do curtíssimo prazo, de resultado trimestral, passa a ditar as regras. Essa lógica econômica não combina com qualidade de ensino, sobretudo, quando está direcionada para estudantes dos segmentos mais destituídos socialmente”.

A partir dos cruzamentos feitos, os resultados da pesquisa apontam que há uma heterogeneidade entre os bolsistas. Estudantes de Licenciatura e tecnólogos, os quais constituem a maioria dos bolsistas pesquisados, são filhos de pais migrantes, de origem rural, com baixa escolaridade e com trajetos profissionais precários, trabalharam e estudaram durante a fase pré-vestibular, estão situados na faixa etária entre 25 e 30 anos, residem em bairros mais periféricos da Grande São Paulo. Não tentaram entrar na universidade pública, não fizeram pesquisas prévias sobre as instituições onde estudam e elegeram como motivos principais para a escolha do curso a proximidade da residência e a oportunidade em si de cursar o ensino superior, independente da carreira desejada.

"Tais estudantes são tipicamente de mais baixa renda e estão nos cursos com formatos mais curtos, nas universidades mais desprestigiadas da hierarquia acadêmica, quando o comparamos com o outro grupo pesquisado, os bacharelandos”, diz Almeida.

Estes, segundo a pesquisa, frequentam cursos tradicionais das universidades privadas mais qualificadas, com formatos mais longos, mais prestigiados e são alunos de baixa classe média, tendo um perfil bem próximo aos alunos que frequentam universidades públicas. Inclusive, alguns chegaram a ser aprovados em tais universidades.

Inclusão social

"Seria, então, preciso questionar: para quais bolsistas, de forma efetiva, foi propiciado acesso a um curso com boa qualidade de ensino?”, diz o pesquisador.

Segundo sua análise, apesar de não ter sido criado com o objetivo de ser uma política de acesso e permanência no ensino superior e, sim, mais como um programa para socorrer as universidades lucrativas, em um momento de crise financeira pela qual passavam, há um importante componente de inclusão social no programa.

"Ele possibilitou, na última década, que uma faixa de estudantes de baixa renda, negro e oriundo da escola pública pudesse chegar ao Ensino Superior. Não obstante as limitações apontadas, abriu perspectivas para um aluno brasileiro, que ainda é constrangido por imensas desigualdades cotidianas”, pontua Almeida.



O pesquisador também descreve em seu livro que há desafios estruturais e conjunturais colocados ao ProUni, para que ele possa tornar-se, de fato e de direito, uma política estratégica de inclusão no Ensino Superior dos estudantes de baixa renda. "Para ser mais eficiente economicamente e socialmente, o ProUni precisaria ficar restrito somente às instituições sérias, com qualidade educacional, o que, em grande medida, são as instituições sem fins lucrativos. É assim no mundo desenvolvido, no qual o Ensino Superior é público ou, quando é privado, não se volta para o lucro”.

Além disso, deveria cuidar mais da permanência do bolsista, articulando uma série de ações, para que ele faça um curso superior consistente. "O Estado brasileiro repassa uma fortuna para sustentar esse segmento econômico, tendo um retorno muito baixo: de cada R$ 100 que os maiores grupos faturam, R$ 40 vêm do governo, por meio de isenções fiscais do ProUni e dos repasses do Fies. É muito dinheiro, bilhões anualmente, com retorno educacional de qualidade extremamente duvidosa, o que impacta o sistema público e o mercado de trabalho brasileiros, pois o professor da educação básica pública e parte substantiva da força de trabalho são formados nesse setor privado lucrativo”, conclui Almeida.


Ficha técnica
ProUni e o ensino superior privado lucrativo em São Paulo
De Wilson Mesquita de Almeida
Musa Editora Ltda, 2014
304 páginas | R$ 60


FONTE: Adital

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Para derrubar o mito do juiz “apolítico”

Suprema Corte dos EUA: lá todos os juízes são ligados às idéias dos dois maiores partidos 

Nos EUA, ministros da Suprema Corte são vinculados a ideais partidários. Nas Américas, quem escolhe cúpula do Judiciário de modo mais democrático e transparente é Argentina


Por Flávio Siqueira

A morte de Antonin Scalia, um dos nove juízes da Suprema Corte dos EUA, trouxe para o debate discussões sobre como, quando e quem será selecionado para ocupar a sua vaga na Corte. Scalia era o fiel da balança republicano que desempatava o placar de quatro juízes republicanos e quatro democratas. Até sua morte, a corte tinha uma maioria conservadora. Agora, Obama tem a chance de deixar mais um legado de sua gestão ao nomear um democrata e reverter a posição política majoritária do tribunal.

Na pauta de julgamento estão casos que questionam políticas implementadas durante a gestão do presidente como aborto, ações afirmativas e imigração. A nomeação de um democrata poderia trazer mais sensibilidade às decisões relacionadas a atos e políticas da atual administração.

Tais casos não são muito diferentes dos que estão na pauta de julgamento da suprema corte brasileira ou de outras cortes constitucionais. São debates eminentemente políticos, decididos por meio de interpretação e aplicação de princípios e regras constitucionais. O sistema estadunidense de seleção para os juízes que integram a suprema corte também é semelhante aos de Argentina, Brasil e México, com a indicação de um nome pela presidência e sua confirmação pelo Senado.

Contudo, a naturalidade da discussão nos EUA sobre se o próximo juiz será democrata ou republicano pode dar um nó na cabeça de quem clama por um judiciário imparcial e independente da política.

Luiz Edson Fachin, último ministro a ingressar na suprema corte brasileira por indicação de Dilma Rousseff, teve muito trabalho em provar para os grandes jornais e ao Senado que, na qualidade de ministro, seria apolítico, mesmo já tendo manifestado apoio ao MST e à eleição da presidenta petista em 2010.

A Assembleia Nacional da Venezuela, por sua vez, foi alvo de críticas ao selecionar 11 juízes para sua suprema corte antes que a nova maioria antichavista pudesse fazê-lo e colocar em risco as políticas implementadas durante a gestão de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Maurício Macri, novo presidente argentino e claro oposicionista das gestões kirchneristas, tentou nomear, por decreto e sem aval do Senado, 2 juízes para a suprema corte, sob o argumento de urgência para as nomeações. Diante de duras críticas da sociedade argentina, Macri desistiu do decreto e deverá aguardar a aprovação do nome pelo Senado, que possui maioria kirchnerista.

Apesar de ser natural para os Estados Unidos e um escândalo para países da América Latina, a disputa política pela nomeação de juízes para supremas cortes é inevitável e absolutamente compreensível diante do protagonismo político que as próprias constituições exigem dos tribunais[1] [2].

A disputa pode parecer uma afronta à independência judicial, mas defender que quem irá decidir grandes temas da sociedade deve estar alheio à política é voltar a 1789, auge do pensamento liberal clássico, que via o juiz como mero garantidor de liberdades individuais em face do Estado.

Constituições são, por natureza, cartas políticas e permitem interpretações diferentes para um mesmo dispositivo constitucional. Um claro exemplo seria o do artigo 5º, inciso XXII, da Constituição brasileira, que diz: “é garantido o direto à propriedade”. Tal dispositivo pode ser acionado tanto pelo proprietário de terras improdutivas para evitar que elas sejam ocupadas quanto por quem quer ter acesso a elas por não ter propriedade para produzir. Em última instância, ficaria a cargo do STF definir qual interpretação será aplicada.

Portanto, se a capacidade e a independência de juízes forem avaliadas apenas com base em posicionamento político – ou mesmo apolítico – não será levado em consideração o próprio papel que as cortes constitucionais assumiram há décadas: o de garantirem direitos sociais e avaliarem a constitucionalidade de políticas públicas.

Uma alternativa a esse dilema, ainda presente em países latino-americanos, seria o aumento do controle democrático e da transparência do processo de seleção. E isso já vem sendo pautado por mobilizações que ainda não reverberam na grande imprensa, mas que têm um papel fundamental para o debate.

No Brasil, movimentos sociais, coletivos e organizações não governamentais pautam desde 2011 a regulamentação de um procedimento mais democrático para os processos de escolha e nomeação no STF [3]. Da mesma forma, organizações mexicanas pedem mais transparência nas indicações e uma sabatina mais participativa no Senado.

O sistema de seleção argentino, atual modelo regional de transparência e participação, foi elaborado por diferentes atores da sociedade civil argentina e implementado por Néstor Kirchner em 2003. Por esse modelo são divulgados nome, histórico, motivações e conflitos de interesse dos candidatos sugeridos pela presidência e é dado um prazo razoável para que cidadãos, associações e entidades de classe possam manifestar-se sobre a indicação antes da deliberação do Senado.

A participação da sociedade no processo de nomeação de juízes para a suprema corte é uma dentre muitas demandas que buscam a democratização do Poder Judiciário e não traz riscos para a sua condição contramajoritária em democracias constitucionais.

Observar atentamente o processo estadunidense como um grande embate político é importante, mas não se pode tapar os olhos para esse fato quando o mesmo se passa em países da América Latina. A nomeação de juízes para supremas cortes deve respeitar critérios prévios, claros e objetivos para o processo de seleção, mas não deixa de ser uma escolha política. E, sendo político, a participação social é fundamental, seja para o controle democrático do processo ou pela necessidade de se aproximar o Poder Judiciário da realidade da sociedade na qual está inserido.

________

[1] Principalmente quando se trata de constituições que garantem direitos sociais e definem verdadeiros programas de políticas públicas a serem implementadas por governos independentemente de sua convicção política. Ver COUTO, Cláudio Gonçalves e ARANTES, Rogério Bastos. Constituição, governo e Democracia no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais,Vol. 21, nº 61, junho/2006. P. 41-62.

[2] O protagonismo é tão presente que importantes pesquisadores chamam o fenômeno de “juristocracia” ou “supremocracia”. Ver VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, Jul-Dez 2008, p. 441-464.

[3] Desde 2011 a Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh contribui para a atuação de diversas organizações no acompanhamento e reivindicação de maior transparência e participação social para os processos de nomeação dos integrantes do STF. Em 2014, 50 entidades, movimentos sociais e redes enviaram Carta Aberta à Presidência da República, à Secretaria Geral da Presidência da República e ao Ministério da Justiça reivindicando a regulamentação do procedimento.


sábado, 13 de fevereiro de 2016

Conhecendo a essência da Constituição brasileira


Por  Inês do Amaral Buschel


Há quem diga que o texto constitucional é de difícil entendimento e, portanto, é descabido ensiná-lo ou mesmo apresentá-lo à população em geral. Há muitos juristas que, desiludidos, pensam que não valerá a pena difundi-lo, pois nossa Constituição Federal já sofreu tantas Emendas (90) e hoje encontra-se desfigurada. Outros, desprezam a Lei Maior e entendem que não há nem mesmo qualquer serventia em popularizá-la, haja vista que a Constituição representa uma ideia de democracia burguesa e, portanto, é desprezível.

Ademais, acrescentam alguns outros profissionais, nem mesmo as autoridades constituídas obedecem aos preceitos constitucionais. E há, ainda, aqueles que consideram a Lei Maior um assunto exclusivo para bacharéis em Direito. Enfim, à direita, à esquerda e ao centro encontramos pessoas gabaritadas que não incentivam o ensino popular da Carta Magna.

Dessa maneira, resulta que o texto constitucional pátrio é solenemente desconhecido por brasileiros(as) de distintas classes sociais e graus de instrução, sejam eles(as) operários, comerciários ou médicos, engenheiros, pedagogos, físicos, arquitetos, bioquímicos etc. Assim, para mim está claro que temos um regime democrático manco. Nem a Lei Fundamental de seu país os cidadãos(ãs) brasileiros conhecem.

No meu modo de pensar essa situação é ridícula. E antidemocrática. Basta tomarmos como exemplo e considerarmos que, os livros sagrados das religiões monoteístas - Torá, Bíblia e Alcorão - são bem herméticos e, no entanto, são ensinados nas comunidades religiosas a todos que assim o desejarem.

No caso dos muçulmanos, pelo que sei, é até mesmo obrigatório estudar o Alcorão. As crianças e jovens iniciam-se nas letras através da leitura desses livros. E, como esses livros sagrados também não são tão simples de entender, exigem uma iniciação por aulas ministradas por professores ou religiosos. Nenhuma complicação.

Diante disso, qual é a dificuldade de cidadãos(ãs) brasileiros(ãs) aprenderem a importância da Constituição Federal do seu país, e saberem um pouco sobre sua essência? Não se trata de ministrar um Curso de Direito Constitucional de nível universitário, obviamente.

Por primeiro, é preciso que esse livro da cidadania - a Constituição Federal - seja apresentado às pessoas comuns do povo. Explicar sua essência, importância e simbolismo. Após isso, há inúmeras maneiras de iniciar esses estudos, por exemplo, com a leitura atenta aos seus primeiros dezessete (17) artigos. É fundamental sabê-los. Todos os brasileiros deveriam, minimamente, saber "de cor e salteado" esses artigos, tal qual conhecem as regras do jogo de futebol.

Neste momento grave da política nacional, por exemplo, os(as) cidadãos(ãs) brasileiros(as) estão perplexos e nada sabem sobre o que lhes poderá acontecer. Ignoram o futuro do país, pois desconhecem as regras gerais de substituição de mandatários, em caso de impedimento da presidenta da República, por exemplo. E, no entanto, para isso bastaria ler os artigos 79 e 80 da Lei Maior. Simples assim.

Nas manifestações de ruas deste ano de 2015, havia muitos cidadãos(ãs) adultos, letrados e abastados, que ignoravam a existência dessas regras. E imaginavam que, se a presidenta da República fosse deposta ou renunciasse, quem assumiria o cargo seria o candidato derrotado nas últimas eleições. É de pasmar!

Por essas e outras, todos nós deveríamos também conhecer a regra contida no artigo 85 da Constituição Federal, para saber o que são "crimes de responsabilidade", que podem ser cometidos pela presidência da República. São apenas 7 (sete) tipos de atos que poderão ser assim considerados. Se o ato cometido não se enquadrar nessas definições, nada poderá ocorrer, haja vista que, lá no artigo 5º, inciso XXXIX está estabelecido que: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;". É difícil de entender isso? Bastará um bom professor para ensinar e alunos interessados em aprender.

Da mesma maneira que existem variadas leituras da Bíblia cristã, por exemplo – por católicos, protestantes, pentecostais etc. - há também diferentes interpretações das regras constitucionais, dependendo da ideologia de quem as lê e as entende. Parafraseando o escritor italiano Umberto Eco, temos, entre nós, os intérpretes "apocalípticos e os integrados". É uma obra aberta.

Todavia, o bom senso nos leva a admitir que não poderemos divergir exageradamente. Há limites técnicos para a interpretação. A distorção entra no campo da má-fé. É o que tem feito, por exemplo, os islamitas radicais do movimento "Estado Islâmico" com relação às regras do Alcorão.

Mas, mantenho minha esperança e quero aqui recomendar a quem estiver interessado em aprender um pouco, a leitura de um pequeno-grande livro, clássico, de autoria de Ferdinand Lassale (advogado, socialdemocrata alemão, 1825-1864), cujo título está traduzido entre nós por "A Essência da Constituição".

Neste momento há até mesmo uma nova edição (9ª) pela Freitas Bastos Editora, sediada no Rio de Janeiro. Foi escrito com uma clareza meridiana e é acessível a leigos. Não se trata de um livro de cunho jurídico, mas sim sociológico. Lendo-o, pode-se compreender a importância da existência de uma Constituição Federal e/ou Lei Fundamental para um país.

Esse livro deveria fazer parte de um pequeno "Kit Constitucional" a ser distribuído, juntamente com um exemplar da Constituição Federal, aos alunos do ensino médio em todas as escolas brasileiras públicas e privadas. Seria uma atitude louvável das autoridades constituídas na área da Educação brasileira.

No entanto, isso é inimaginável. Aqui no estado de São Paulo, por exemplo, o que se pretende é aprovar uma lei na Assembleia Legislativa que prevê a entrega de um "Kit Bíblico" para as escolas estaduais. Um vexame!

Há um ditado popular que diz: "o ótimo é inimigo do bom". Pensando nisso, à época das manifestações de ruas no mês de junho de 2013, ao perceber que boa parte da juventude estava confusa e não sabia bem a quem dirigir seus reclamos, resolvi contribuir escrevendo um sucinto e acessível texto explicando, minimamente, as regras constitucionais. Publiquei-o em meu blog pessoal. Para minha alegria é um dos textos ainda muito acessado e lido.

Resta-nos repetir, incansavelmente, as palavras ditas por Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier, 1746-1792):

" Se todos quisessem, se poderia fazer do Brasil uma grande nação.”


Inês do Amaral Buschel é promotora de justiça de SP, aposentada. Associada-fundadora do MPD-Movimento do Ministério Público Democrático.





domingo, 7 de fevereiro de 2016

Um socialista disputa a Casa Branca





Incluir na "ESTANTE"

Por Bhaskar Sunkara  

Num país cada vez mais polarizado, parte do público que rejeita ideias ultra-conservadoras do Tea Party avança consistentemente para a esquerda. Sanders tem sabido oferecer uma perspectiva

Que estranho fenômeno político leva Bernie Sanders a reunir multidões
e avançar nas pesquisas, resgatando heróis revolucionários e defendendo
idéias opostas às do establishment
“Eu não sou um soldado do capitalismo. Eu sou um revolucionário proletário… Eu sou contra todas as guerras, exceto uma”. Foi o que disse o senador Bernie Sanders, em 1979, ao citar, para uma coletânea da Folkways Records, o discurso do famoso candidato presidencial pelo Partido Socialista norte-americano Eugene V. Debs.

A linguagem estava deslocada, em um país prestes a viver a era Reagan, onde até mesmo as mais modestas conquistas do Estado de bem estar social norte-americano estariam sob ameaça. Ainda assim, dois anos depois, Sanders tornou-se o prefeito da maior cidade do estado de Vermont. O Vermont Vanguard Press celebrou a “República Popular de Burlington” com uma edição especial. Sanders pendurou um quadro de Debs em seu novo escritório. O quadro hoje está na parede do seu escritório no Capitólio, o Legislativo dos EUA.

Tecnicamente, Sanders é um independente que disputa as convenções partidárias junto ao Partido Democrata. E sua própria variedade de socialismo é mais semelhante à do ex-primeiro-ministro sueco Olof Palme, também um social democrata, do que à de Debs, um simpatizante dos bolcheviques. Sanders gosta de comparar o sucesso dos países escandinavos, com seus Estados de bem estar social, com a desigualdade no interior da sociedade norte-americana, destacando a miséria infantil e falta a assistência médica acessível nos EUA. Suas soluções – cobrança progressiva de impostos e serviços públicos robustos – não estão muito distantes daquelas que seus colegas mais à esquerda no Senado, como a senadora Elizabeth Warren – propõem.

Para Sanders, o manto de socialista é acima de tudo um aceno à rica história norte-americana de radicais e reformadores, aqueles que foram amplamente apagados pelo da história do progresso nacional pelo conservadorismo doméstico, assim como pela Guerra Fria no exterior. O próprio padrão de Sanders em suas votações, alinha-se muito com os progressistas no Partido Democrata. Como Howard Dean afirmou em Meet the Press, em 2005, “ele é basicamente um democrata liberal… A verdade é que Bernie Sanders vota 98% das vezes com os democratas”.

A base democrata concorda. Por anos, eles evitaram que o partido colocasse candidatos para concorrer contra ele em Vermont – mais um sinal de que o rótulo de socialista já não evoca imagens de filas para o pão e gulags.

Sanders não oferece aquela visão emancipatória, ou com princípios políticos anti-imperialistas, que devemos reivindicar da esquerda, mas sua defesa incondicional do Estado de bem estar social contrasta fortemente com as políticas, favoráveis às corporações, de sua concorrente Hillary Clinton. E como Elizabeth Warren provavelmente não concorrerá em 2016, apenas Sanders pode empurrar as primárias para a esquerda, obrigando Hillary a assumir uma série de compromissos audaciosos para apaziguar (e depois afastar, quando eles não forem cumpridos) uma descontente base progressista.


Sanders descreveu sua possível candidatura como uma tentativa de
 construir organização e pressão a partir da esquerda "Se eu concorrer,
será por um tipo de coalizão capaz de transformar a política".

Ao contrário da maior parte da Europa, os Estados Unidos nunca tiveram um forte partido trabalhista que disputasse o poder e construísse um generoso Estado de bem estar social. Porém, durante boa parte do século passado, muitos no Partido Democrata foram capazes de construir alguns fragmentos disso, dentro de certos limites.

Os movimentos que exerceram esse papel – sindicatos, organizações de direitos civis e grupos comunitários – ainda estão por aí. Mas por não terem controle estrutural algum sobre um partido que, fundamentalmente, representa os interesses do capital, são facilmente colocados de lado. À medida em que a distância entre eles e as políticas perseguidas por líderes do partido, como Barack Obama, torna-se mais evidente, não surpreende que comecem a erguer suas vozes.

Hillary Clinton está profundamente enraizada na tradição Novos Democratas, e teve um papel na criação das políticas que se tornaram o senso comum dentro do partido. Os Novos Democratas juntaram-se sob o auspícios do já falecido Conselho da Liderança Democrática (DLC, sigla em inglês), no final dos anos 1980. Quando o “tribute-e-gaste” tornou-se eleitoralmente inviável, os democratas supostamente deveriam promover um governo cada vez mais reduzido e menos atuante (ainda que brincassem com uma política social progressista, nas margens)

É inegável o papel dos Clintons na transformação do Partido Democrata em plano nacional, ao longo dos anos 1990 (no processo, obtiveram recompensas eleitorais de curto prazo). Afinal de contas, foi o presidente Bill Clinton – e não Ronald Reagan – que equilibrou o orçamento e colocou um fim ao “bem estar social como o conhecemos”. E foi Hillary Clinton, então primeira-dama, que apoiou de maneira forte as mudanças promovidas pelo DLC, como a emenda de reforma no Estado de bem-estar social de 1996.

O presidente Obama, apesar de suas promessas de mudanças na batalha das primárias em 2008 contra Hillary, não se desviou da agenda de interesses do DLC. Os liberais mais tradicionais opuseram-se às políticas dos Novos Democratas, à falta de ação de Hillary quanto às mudanças climáticas e à agressiva política externa que incluiu o apoio à invasão do Iraque.

Nos últimos anos, a maré política continuou a se mover contra os Clintons, especialmente quando começou a crise financeira de 2008. À direita, o movimento Tea Party, politicamente engajado e ativo, ganhou a maior parte das manchetes. Porém, o movimento Occupy, as insurgências trabalhistas como a greve do Sindicato dos Professores de Chicago, as ações dos trabalhadores de fast-food, os protestos contra a violência policial e a maior atenção dada a desigualdade de renda – tudo isso aponta para a incipiente reemergência da esquerda nos EUA.

Eugene Debs, o socialista histórico que inspira Sanders: organizador dos
trabalhadores por toda a vida, cinco vezes candidato à presidência dos
 EUA, em contato com o marxismo na prisão

Eleitoralmente, um mix eclético de personalidades lutou para preencher os espaços que as ações populares abriram – desde o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, até populistas no Senado como Elisabeth Warren. Mas exceto Sanders, nenhuma dessas figuras está preparada para disputar em 2016.

Sanders descreveu sua possível candidatura como uma tentativa de construir organização e pressão a partir da esquerda: “Se eu concorrer, meu trabalho será ajudar reunir gente para um tipo de coalizão capaz de vencer e transformar a política”. Isso seria a mais profunda tentativa de fazer algo do tipo entre o Partido Democrata desde a eletrizantes campanhas de Jesse Jackson na década de 1980.

Sanders pode apenas sonhar em reunir as forças políticas que Jackson conseguiu, e as razões para que os liberais mais convencionais queiram que Hillary vença as primárias são fáceis de entender. Na esfera nacional, ela é figura mais conhecida e popular na corrida do Partido Democrata; e pode sustentar a popularidade do partido entre as mulheres. Ela é dura de ser batida, e uma grande vitória em 2016 pode pavimentar o caminho para um Congresso de maioria democrata.

Mas as pesquisas indicam que, assim como o Partido Republicano despenca para a direita, o eleitorado que se declara democrata está tendendo de maneira coerente e uniforme para posições progressistas. No núcleo de uma potencial base para a campanha de Sanders, está a divisão cada vez maior entre a liderança centrista do partido e os eleitores que ainda mantêm a visão dos democratas como o partido do New Deal e da Grande Sociedade (1)

Talvez como resposta ao renovado fervor na direita, mais democratas afirmam ser a favor de um governo ativo, capaz de regular as corporações e garantir serviços sociais. Esse grupo de liberais enxerga os poucos êxitos de Obama – a reforma na assistência médica, por exemplo – como insuficientes, considerando as concessões oferecidas por seu governo às corporações. A ausência de uma organização como um Tea Party, para articular politicamente esses sentimentos, abre espaço para que Sanders consolide os progressistas em um bloco eleitoral coerente.

Enquanto isso, como o site Politico reportou, Hillary é vista, por alguns grandes doadores liberais, como alguém muito centrista para merecer apoio. Até mesmo aqueles que não compartilham das políticas social-democratas de Sanders querem que ela seja desafiada pela esquerda e veem o candidato como uma potencial alavanca para tirar o Partido Democrata da posição de centro-direita.

É mais provável que seja Sanders quem altere o tom e o conteúdo do debate, do que alguém como Dennis Kucinich, o congressita de Ohio que atuou com a voz progressista solitária nas recentes primárias presidenciais, mas jamais conseguiu conquistar um apoio maciço. Sanders é levado a sério pelos eleitores. Ele tem a credibilidade, e a bagagem, de alguém que é um senador, e é uma voz poderosa na defesa da redistribuição de riqueza.

Em uma era de estagnação econômica, as frustrações que outrora foram caladas podem ferver, em descontentamento aberto. Há um número suficiente de pessoas à esquerda, da coalizão democrata, para dar dor de cabeça à campanha de Hillary. Seus planos de se descolar para o centro, para turbinar o mais rápido as perspectivas para as eleições gerais, saíram sem dúvidas dos trilhos, por conta do crescimento de Sanders.

Não será, é claro, suficiente para vencer desta vez; mas, se vista como uma oportunidade para a construção de um movimento, a candidatura de Sanders pode fortalecer a esquerda no longo prazo. As tensões entre os democratas são sérias e podem aumentar a possibilidade para o realinhamento das forças progressistas em bases totalmente diferentes.

Este é um projeto diferente das tentativas de Michael Harrington (e outros) para conveter os democratas em um partido social-democrata mais tradicional, ao forçá-lo para a esquerda. Nosso objetivo deve transcender por completo o partido.

Está longe de ser um plano à prova de falhas, mas nesse momento a melhor aposta para a esquerda na arena eleitoral é apoiar tanto as campanhas políticas eleitorais independentes, e as candidaturas primárias de socialistas insurgentes, como as de outros radicais. Ter Sanders defendendo abertamente o socialismo, e contestando o histórico dos Novos Democratas perante uma audiência nacional é um pequeno passo na direção certa.

Certamente há perigos em uma candidatura presidencial de Sanders. Em ocasiões anteriores, tentativas de fortalecer movimentos sociais através de “alguém de fora” nas primárias – como as campanhas de Jesse Jackson – acabam em becos sem saída. Levaram, possivelmente, ao enfraquecimento dos esforços políticos independentes.

Mas a candidatura de Sanders não precisa ser apenas uma convergência das forças de esquerda contra uma nomeação quase certa de Hillary. Ao invés disso, pode ser um caminho para que os socialistas reagrupem-se, organizem-se e articularem o tipo de política que se comunique com as necessidades e aspirações da ampla maioria das pessoas. E poderia começar a legitimar a palavra “socialista”, servindo como estopim para deflagrar conversas a respeito – mesmo que o socialismo de bem estar social de Sanders não vá tão longe.

Uma vibrante campanha de Sanders seria um sinal de que as perspectivas sombrias quanto ao emprego, e a pressão cada vez maior sobre os trabalhadores norte-americanos, estão criando um espaço político para a mudança. Há grande razão para acreditar que, se ele falhar, que vozes radicais poderão tomar seu lugar, levando de volta, ao palco principal da política, a memória de Eugene Debs.


1) Great Society, conjunto de políticas sociais lançadas pelo presidente Lyndon Johnson (democrata, 1964-65) com objetivo de combater a pobreza e a desigualdade social. Veja mais na Wikipedia


http://outraspalavras.net/destaques/um-socialista-disputa-a-casa-branca/


FONTE: Controversia

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