domingo, 27 de novembro de 2016

Para frear o desmonte das universidades


Em São Paulo, governo sucateia instituições admiradas em todo o país. Elas 
registem, em greves e ocupações. Movimento compreende: para questionar ensino 
e pesquisa, urge salvá-las. 

 


Por Francisco Rolfsen Belda


Em um contexto de greves, paralisações e manifestações a se alastrar pelos principais campi universitários de São Paulo, a sociedade paulista está chamada a debater e decidir, com urgência, qual modelo de universidade pública quer manter e oferecer para a atual e as futuras gerações. Há dois projetos em jogo.

Um deles significa aprimorar os mecanismos de financiamento e de gestão que, até hoje, garantiram que USP, Unesp e Unicamp conquistassem prestígio nacional e internacional, ofertando ensino superior gratuito e de qualidade, pesquisas científicas e tecnológicas de alto impacto e serviços de atendimento social e comunitário em áreas de saúde e educação básica, entre outras, como os do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o Centrinho, da USP, e dos cursinhos pré-vestibular Principia, Primeiro de Maio e Ferradura, da Unesp, em Bauru, amplamente reconhecidos pela população.

O outro projeto em jogo significa o desmonte gradativo dessa estrutura — o que já está em curso, mediante uma sistemática defasagem nos recursos destinados pelo governo estadual ao custeio dos programas de ensino, pesquisa e extensão que, ao longo das últimas décadas, expandiram-se para garantir a formação profissional e ampliar as oportunidades de emprego e geração de renda para mais de um milhão de egressos de seus cursos de graduação e pós-graduação, além da construção de um patrimônio público inestimável dedicado à ciência e à tecnologia em mais de 30 campi em todas as regiões do estado.

Falta de professores, corte de bolsas, encerramento de projetos de extensão, desvinculação de hospitais universitários, sucateamento de laboratórios, prédios com manutenção deficiente e arrocho salarial são apenas algumas das faces mais visíveis desse desmonte. Em alguns casos, a situação chega às beiras do ridículo, com a falta de papel higiênico, sabonete e toalha de papel nos banheiros. Sem contar inúmeros serviços que só não estão sendo desmontados agora porque, a rigor, nunca chegaram a existir na forma e amplitude devidas, como moradias, refeitórios e transporte coletivo para estudantes de baixa renda.

Um argumento geralmente usado para apoiar o desmonte alega ser “injusto” usar o dinheiro público, que é de todos, para bancar ensino de excelência para “alguns privilegiados”. Considerada de relance, a tese parece ter sentido, mas é falsa, assim como a ideia de que o parque universitário paulista poderia ser gerido com “mais eficiência” se fosse vendido ou concedido à administração privada. Neste caso, mais ou menos pode ser apenas uma questão de perspectiva, já que uma gestão eficiente muitas vezes visa, prioritariamente, a ampliação das margens de lucro de quem explora a educação como um serviço particular, e não como um direito social — aliás, quem desdenha, geralmente, quer comprar.

Inúmeros estudos sobre desenvolvimento internacional provam que formar quadros qualificados e promover ciência e tecnologia de qualidade são investimentos que produzem efeitos benéficos a toda a sociedade, e não apenas aos indivíduos que conquistaram propriamente um diploma ou um título de pós-graduação. Em países ditos desenvolvidos, onde algumas universidades datam de muitos séculos, sobram exemplos de como a produção intelectual e a disseminação e a aplicação do conhecimento estão diretamente relacionadas com o avanço de indicadores socioeconômicos mais amplos — por exemplo, na produtividade do trabalho e na redução dos gastos com licenciamento e importação de tecnologias.

Mas se em poucos países, como os Estados Unidos, as melhores universidades são financiadas principalmente com dinheiro privado, via matrículas, doações e fundos empresariais de pesquisa (além, é claro, das encomendas tecnológicas de órgãos governamentais), é preciso reconhecer que países como o Brasil ainda não podem prescindir do papel do estado no fomento e no financiamento do ensino e da pesquisa de qualidade, haja vista o reduzido poder aquisitivo da maioria das famílias, a falta de estímulo tributário à filantropia e a obtusa cultura de distanciamento entre as atividades acadêmicas e o mundo corporativo daqui, que ainda prefere importar soluções a desenvolver e implementar inovação em parceria com a universidade.

Além disso, nos últimos anos, políticas afirmativas passaram a garantir um número expressivo de vagas a estudantes negros e de outras minorias étnicas ou oriundos de escolas públicas, minimizando uma distorção histórica que sempre imperou no acesso ao ensino superior no Brasil. Se é verdade que, em cursos como o de medicina (um exemplo clássico, mas enganoso, devido à sua especificidade), filhos da elite ainda ocupam a maioria das vagas gratuitas, não é menos certo afirmar que, na maioria dos cursos universitários públicos, atualmente, o cenário demográfico é outro, e sobretudo na Unesp, onde o avanço dessas políticas se dá de modo mais acelerado, ainda que não sem contradições.

Por fim, a pauta salarial dos professores e servidores técnico-administrativos, que entraram novamente em greve no início do mês, em diversos campi paulistas, é um item importante e que também deveria preocupar quem, estando fora dos círculos acadêmicos, ainda defende um modelo de excelência para essas universidades. Afinal, o achatamento gradativo das remunerações vai, aos poucos, afastando os melhores talentos do ensino público, fazendo com que se percam décadas de investimento na formação e qualificação de recursos humanos de nível superior. Em alguns departamentos, a fuga de cérebros já começou e, sem recomposição dos salários, irá se agravar.

Ainda assim, acredito ser possível que docentes e servidores relativizassem o impacto de suas perdas salariais caso vislumbrassem um projeto estratégico mais amplo, que lhes devolvesse uma perspectiva de desenvolvimento profissional e de melhoria da qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão que são, por dever de ofício, mas sobretudo por vocação, obrigados a ofertar. Por isso, o atual movimento de greve não é apenas pela reposição da inflação no valor dos salários e sim, principalmente, em defesa da universidade pública de excelência e gratuita em benefício da comunidade, com vasto apoio entre estudantes e outros setores sociais.

Aperfeiçoar e corrigir aspectos do atual modelo de gestão e financiamento das universidades públicas do estado de São Paulo, bem como dotá-lo de maior transparência no modo como aplica seus recursos é certamente necessário, e isso deve ser debatido de forma ampla e participativa pela sociedade paulista e suas lideranças políticas. E a hora é agora. Mas usar essas supostas distorções para justificar um desmonte ou mesmo a privatização desses serviços e desse patrimônio só pode ser obra de uma política que esteja francamente a favor do atraso científico, tecnológico e educacional do estado. Ou, pura e simplesmente, de sua inação.


Francisco Rolfsen Belda é jornalista, professor do Departamento de Comunicação Social da FAAC, Unesp, campus de Bauru.


sábado, 19 de novembro de 2016

Tempos idos e vividos VIII


 Por Aluizio Moreira



Nossa gestão para os anos 67/68 à frente dos Diretórios Acadêmicos (Direito, Filosofia, Economia) e Diretório Central dos Estudantes da UNICAP chegava ao fim. 

A repressão ao Movimento Estudantil e às Universidades consideradas essas  então pela ditadura “centros revolucionários” ganhou nova dimensão. No inicio do ano seguinte, a ditadura sob a presidência de Costa e Silva, faz baixar o Decreto nº 477 de 26 de fevereiro de 1969 também chamado “AI-5 das Universidades”, que criminalizava duramente professores, alunos, e até mesmo funcionários que fossem julgados “subversivos” pelo regime. Os professores seriam demitidos e impossibilitados de exercer sua profissão em qualquer Instituição de Ensino por 5 anos. Os estudantes seriam expulsos e proibidos de cursarem qualquer Universidade por 3 anos.

Vejamos o Art. 1º e parágrafos do Decreto 477.

DECRETO-LEI Nº 477, DE 26 DE FEVEREIRO DE 1969

Define infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando das atribuições que lhe confere o parágrafo 1º do Art. 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968,

DECRETA: 
Art 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular que:
I - Alicie ou incite à deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralisação de atividade escolar ou participe nesse movimento;
II - Atente contra pessoas ou bens tanto em prédio ou instalações, de qualquer natureza, dentro de estabelecimentos de ensino, como fora dêle;
III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dêle participe; 
IV - Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza; 
V - Seqüestre ou mantenha em cárcere privado diretor, membro de corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino, agente de autoridade ou aluno; 
VI - Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública.§ 1º As infrações definidas neste artigo serão punidas: 
I - Se se tratar de membro do corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino com pena de demissão ou dispensa, e a proibição de ser nomeado, admitido ou contratado por qualquer outro da mesma natureza, pelo prazo de cinco (5) anos; 
II - Se se tratar de aluno, com a pena de desligamento, e a proibição de se matricular em qualquer outro, estabelecimento de ensino pelo prazo de três (3) anos. 
§ 2º Se o infrator fôr beneficiário de bolsa de estudo ou perceber qualquer ajuda do Poder Público, perdê-la-á, e não poderá gozar de nenhum dêsses benefícios pelo prazo de cinco (5) anos. 
§ 3º Se se tratar de bolsista estrangeiro será solicitada a sua imediata retirada de território nacional.

Seguiam-se mais 5 artigos que tratavam da tramitação do processo.

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Alguns alunos começaram a ser vitimas do 477. Procurei safar-me da expulsão, e voluntariamente afastei-me da Universidade, abandonando o Curso de Jornalismo, sem efetivar a renovação de minha matricula em 1969, na esperança de que no ano seguinte retornaria aos meus estudos. Com o que eu não contava é que naquele ano de 1969 o Padre Freitas, então Reitor da UNICAP, tinha sido substituído por um interventor não jesuíta. Nunca mais tivemos noticias do Padre Freitas.

Em 1970 fui procurar o Interventor a fim de que permitisse meu retorno ao Curso de Jornalismo depois do abandono, pois não tinha feito o trancamento da matrícula naquele ano de 1969, condição que me asseguraria o retorno à Universidade, pois o jubilamento só aconteceria após três anos de abandono do Curso. Minha esperança desvaneceu-se quando ouvi do Interventor que “já estava botando para fora da Universidade os  comunistas, como poderia botar mais um para dentro?”

Nessa situação só consegui voltar aos estudos no ano de 1973 (pelo tempo deveria ter sido jubilado) por interferência de um Professor na época Coordenador do Curso de História. Reabri minha matricula em Jornalismo e um ano depois me transferia para o Curso de História na mesma UNICAP.

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Estou retornando ano 1962, ano que resolvi deixar a vida militar, por questões ideológicas, e passei procurar um emprego, retornar aos estudos, pois não teria mais bolsa da Prefeitura para custear as mensalidades do Curso. Com meu primeiro emprego, pude ingressar no Colégio Carneiro Leão, para cursar o que corresponde hoje ao nível médio. Repetindo o que já dissera antes: foi nesse Colégio, enquanto estudante do chamado Colegial que enveredei pela política tanto estudantil como partidária.

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Em relação ao emprego, fiz inscrição em Agência, concorrendo no mercado de trabalho como auxiliar de escritório. Só em março de 1963 consegui empregar-me na Agência Nacional de Navegação, empresa privada agenciadora de algumas companhias de navegação nacional como estrangeira. Nessa época associei-me ao Sindicato dos Comerciários e conheci o sr. Osvaldo, um idoso que também era funcionário de uma outra empresa de navegação. Em conversas, defendeu que ao invés de pertencermos à categoria de comerciários, deveríamos lutar por nosso enquadramento na categoria de marítimos, cujos salários e demais benefícios ultrapassavam ao que recebíamos como comerciários. Chegamos a convocar reuniões com outros funcionários de outros escritórios de navegação, quando aconteceu o golpe militar de 1964, o que não me impediu de continuar militando no PCB no âmbito do Sindicato dos Comerciários.

O fato de ter sido detido para averiguação por meus vínculos com a Associação Cultural Brasil-URSS, com o Clube Literário Monteiro Lobato e com o Sindicato dos Comerciários, valeu-me a demissão em 1972, da Agência Nacional de Navegação.

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Nessa época, casado, residente em Ouro Preto, Olinda, cursando Jornalismo na UNICAP, fiquei encarregado de publicar “AVANTE” mantido pelo Comitê Estadual do PCB, um tabloide que circularia a nível de Estado. Mimeografado artesanalmente na minha própria residência, suas matérias eram produzidas nos fins de semana por mim e pelo camarada Fausto Nogueira, embora utilizássemos vários nomes em cada edição, e a partir da segunda-feira saíamos distribuindo pessoalmente em várias empresas comerciais e bancárias, com os camaradas e simpatizantes do Partido.  É importante registrar, que nas páginas do Avante fazíamos, nas suas quatro folhas de papel oficio, denúncias dos mais variados tipos de repressões aos comunistas, não só do PCB, mas aos militantes de outras organizações de esquerda. Eram folhas de papel de seda mandadas pelos camaradas exilados na Europa que nos imprimíamos e divulgávamos, já que nossa imprensa nada publicava sobre torturas, mortes e desaparecimentos que ocorriam. Algumas vezes recebíamos materiais em francês que com muita dificuldade conseguíamos traduzir.


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Desempregado até então, voltei a procurar a Agência de Emprego, que me indicou para a firma DAMPE-Engenharia Representações Comerciais e Industriais, para trabalhar num canteiro de obras de um conjunto residencial localizado na Estância. Fiquei encarregado de organizar e controlar a entrada e saída dos materiais de construção. Um mês depois, uma amiga funcionária da Agencia Nacional de Navegação que conhecia minha situação, procurou-me no local de trabalho, para comunicar que o Bank of London & South America Ltd. estava selecionando pessoal para vagas como escriturário no setor de Conta Corrente. Aprovado na seleção  desliguei-me da Dampe-Engenharia e em junho de 1972 assumia meu novo emprego.

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Minhas atividades empregatícias não alteraram minha militância participando das reuniões e discussões na chamada “célula” do PCB na UNICAP. Juntamente com outros grupos de estudantes universitários (identificados com os socialistas e com a Igreja chamada progressista), participamos ativamente da politica estudantil, nos Diretórios Acadêmicos da Universidade e no Movimento Estudantil, a nível Estadual e a nível Nacional.

No inicio do ano de 1973, mês de abril/maio, se não me engano, um camarada responsável pela distribuição no Nordeste da Voz Operária, jornal da Direção nacional, tinha sido preso em Fortaleza, o que permitiu, a partir dos endereços encontrados com o militante, localizar vários camaradas da Bahia ao Maranhão. Entre tantos endereços, o meu.

Em maio, em decorrência desse fato, eu era procurado no Bank of London por um policial à paisana, convidando-me para ir ao DOPS dar uns depoimentos e que logo seria dispensado. Avisei aos companheiros do Banco e fui conduzido pelo policial até uma viatura onde já se encontravam dois homens, sentados entre dois policiais.

Ao chegar ao DOPS já se encontravam entre os presos Paulo Cavalcanti e Janiro Pontes técnico da SUDENE. Aliás foi o Paulo Cavalcanti que intermediou o contato do advogado Boris Trindade a fim de defender-me das acusações que pesavam contra mim: militante do PCB responsável pelo distribuição da Voz Operária em Pernambuco, bem como pelo pela feitura e distribuição do jornal mimeografado Avante.

Eis como Paulo Cavalcanti em “O caso eu conto como o caso foi: nos tempos de Prestes (Memórias política)””, o 3º volume relata minha “estadia” no DOPS:
Certa noite, puseram um rapaz perto da sala onde estávamos. Nem eu nem Janiro o conhecíamos. O rapaz parecia tenso, andando de um canto para outro. Um investigador nos transmitiu as recomendações do delegado: nenhum de nós poderia trocar palavra com o preso. 
 A minha experiência de frequentador de xadrez me levava a suspeitar da presença de uma pessoa completamente desconhecida entre nós. Às vezes, a policia utilizava elementos como esses para infiltrar-se no meio dos presos políticos, a fim de pescar o que se passava no coletivo.
Ao mesmo tempo, eu me condoía da situação do moço, calado, fumando muito, sem nos olhar diretamente.
Continua Paulo Cavalcanti:
Resolvi arriscar minha segurança. Numa madrugada, esgueirando-me pelo chão, quase rastejando como um réptil, acordei o jovem e me identifiquei. Perguntei-lhe a causa da prisão e fiquei sabendo que se tratava de um bancário acusado de participar da distribuição no Estado do jornal Voz Operária e da feitura do boletim mimeografado Avante, mantido pelo Comitê Estadual do PCB.
Dias depois eu e o Janiro fomos conduzidos por um jipe até o Bairro de Casa Forte e numa das dependências da Policia, tiraram fotos de frente e de perfil, além de imprimirmos nossas digitais num documento que nem se deram ao trabalho de deixar que lêssemos o conteúdo.

Ao contrário do que me dissera o policial por ocasião de minha detenção no Banco de Londres para que eu prestasse alguns esclarecimentos, eu não seria dispensado tão cedo. E não mais retornaria, por motivos óbvios, a trabalhar como escriturário naquela agência  bancária. 



sábado, 12 de novembro de 2016

O outono da nossa democracia


Como nas ditaduras, até os menores agentes se sentem livres para soltar as garras de repressão: um discurso que reconhece legítima defesa no massacre.


Por Marcelo Semer *





É comum que se diga que a esquerda, ou uma certa entidade abstrata, vez por outra alcunhada de bolivarianismo, governou o pais por treze anos.

A bandeira do Brasil não ficou vermelha.

Nenhuma empresa foi nacionalizada. Não houve desvio algum por meio de participação popular – nem um mísero plebiscito nesse tempo todo. Nenhuma alteração para aumentar mandatos próprios ou reduzir os alheios foi sequer proposta. Nenhum instrumento de censura foi criado, nem contra a mídia partidariamente ativa. Não houve polícia política –e se tivesse havido, certamente não seria para sustentar o governo. Até a remuneração do sacrossanto sistema financeiro foi mantida incólume –ou mesmo em ascensão. Nenhum torturador dos anos de chumbo, enfim, foi preso.

O tal bolivarianismo percorreu quatro eleições.

Em cerca de seis meses de governo interino e tampão, a Constituição já envelheceu vinte anos. A proteção social está sendo desfigurada por um teto orçamentário que deve travar o futuro de toda uma geração; a educação ideologicamente reformada por medida provisória; os longevos instrumentos de proteção da legislação trabalhista estão com os dias contados. Na política externa, dá-se o cavalo de pau em um transatlântico.

Para essas mudanças, que significam uma inversão expressiva de rumo, não foi preciso nenhuma eleição.

Só isso seria suficiente para que o conceito de normalidade democrática ficasse seriamente abalado. Afinal, se é possível uma mudança de tal porte sem eleições, para que mesmo elas seriam necessárias?

Infelizmente, o outono de nossa democracia não para por aí.

Vai sendo sentido nas grandes decisões e também nas pequenas atitudes.

Uma lei restringindo conteúdos que um professor pode dar em sala de aula, um espetáculo teatral interrompido pela polícia, por desrespeito ao país, a normalidade com que atos equiparados a tortura são admitidos como legítimos por autoridades incumbidas de garantir direitos. O esfacelamento do direito de greve faz par com a incessante criminalização dos movimentos sociais.

Como é comum nas ditaduras, até os menores agentes se sentem livres para soltar as garras de repressão. Um discurso judicial que reconhece legítima defesa no massacre, uma recomendação-mordaça que expulsa a política de espaços universitários, o estado de exceção admitido expressamente como fundamento para a exclusão da legalidade.

São pequenos estados de sítio incidentalmente declarados a cada dia.

O superpoder geral de cautela vai se tornando álibi para a supressão de liberdades e a solidez da cláusula pétrea desmancha no ar com a substituição de princípios por políticas abonadas pela mais alta Corte de justiça.

O encarceramento em massa que já fez nossa população prisional dobrar em uma década parece não ter sido ainda suficiente para aplacar tanta ira –apesar de combustível premium para o crescimento da própria criminalidade.

Embalado pelo sucesso midiático, o Ministério Público Federal apresenta um pacote de mudanças criminais que é um verdadeiro código da acusação –proposta de enorme potencial encarcerador e de vigor político para a própria instituição, amputando poder judicial e esmagando a defesa. Inúmeros mecanismos processuais norte-americanos são importados com entusiasmo, sem que se alerte que o encarceramento por lá resultou em 2,3 milhões de presos, majoritariamente negros, além de um altíssimo investimento no sistema penitenciário de que aqui nem se cogita.

Como conciliar 10 medidas encarceradoras com vinte anos de teto de gastos públicos, é uma pergunta que só faz calar.

Sim, é verdade, nós já vivemos crise pior que essa, seja na economia, seja na política.

Eu nasci em plena ditadura, entre o golpe de 64 e o AI-5. Quando fiz dezoito anos, estava nas ruas lutando por eleições diretas, que nos eram proibidas. Tínhamos ainda o porrete do Estado sobre nossas cabeças –Brasília sitiada por tanques, sindicalistas presos e um general no poder.

Havia, porém, um sopro de esperança no ar. A tarde caía como um viaduto, mas o futuro abria-se em um caminhão de perspectivas. Retomar a democracia, construir uma sociedade solidária, reduzir a enorme desigualdade que mantinha milhões em miséria.

Hoje quem tem dezoito anos é minha filha e saber que amanhã vai ser outro dia só nos remete a imagens ainda mais ameaçadoras.


* Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.



Créditos da foto: Tomaz Silva


FONTE: Carta Maior

domingo, 6 de novembro de 2016

Quatro jogadas e a batida: o jogo das eleições municipais


Apesar do quadro caótico da economia e da política, há uma luz no fim do túnel. As ocupações escolares dão o tom da virada onde o povo tenha vez e voz.


Por José Carlos Peliano*





Encerradas as eleições municipais por todo o país, os resultados apontam um quadro radical e diverso dos anos anteriores. A ascensão de eleitos de partidos da direita e o descenso de eleitos de partidos da esquerda. Por mais quatro anos a maioria dos municípios será governada por prefeitos de siglas que apoiaram o golpe travestido de impedimento da Presidenta e transgrediu a Constituição.

Direita e esquerda, variações em torno dos mesmos antigos temas: legalismo político, econômico e social de um lado e participação popular, políticas distributivas e direitos sociais de outro. Adicione-se à direita o autoritarismo próprio da meritocracia, da hierarquia social e da concentração de poder. À esquerda soma-se o protagonismo dos menos favorecidos, dos direitos das minorias e excluídos e da cobertura das necessidades básicas.

Enquanto o poder central hoje no país estiver distribuído entre golpistas, aos olhos beneplácitos da Justiça, o que esperar senão corte de direitos trabalhistas (greve, 13o salário, etc.), UTI ou funeral da Justiça do Trabalho, extensão do tempo para aposentadoria, congelamento dos investimentos sociais (PEC 241) por 20 anos, aumento de tributos, privatização do patrimônio nacional, abertura total da economia ao capital estrangeiro, disparada da dívida pública, entre outras cacetadas.

Por fim, mas não menos importante, o país verá piorar de maneira avassaladora a desigualdade de rendas. Aumento do contingente de pobres e integrantes dos meandros inferiores da classe média com a correspondente redução dos integrantes dos meandros superiores. Os ricos permanecerão revigorados com a revitalização do poder econômico discricionário que as medidas do governo a eles confere.

O cenário pós eleitoral indica quatro possíveis jogadas. Cada qual com objetivos distintos e resultados previsíveis. Estão em jogo os membros do governo, as propostas dos partidos políticos e a sociedade. Esta diferenciada pelos grupos que se expressam por suas classes sociais representativas. Do embate entre eles as jogadas terão atingido ou não seus objetivos.

A primeira jogada é a da vitória da vitória. Caso o autoritarismo prevaleça com o apoio inestimável da mídia conservadora, a “carcomídia”, e dos olhos vedados da Justiça, a vitória dos políticos à direita dos partidos nas eleições consagrará o maior saque jamais visto nos direitos individuais e sociais e no bolso dos brasileiros pobres e remediados.

A eliminação de direitos trabalhistas, o congelamento de investimentos sociais e o enfrentamento policial das manifestações públicas não só ferem direitos individuais e sociais como também afrontam a Declaração dos Direitos Humanos da ONU. O Brasil nesse cenário estará escoando ao ralo do mundo. O povo vai estar pagando mais uma vez pelo que não fez, enquanto os que fizeram ese locupletaram nadam de braçada.

A segunda jogada é a derrota da derrota. Enquanto o rolo compressor da Lava Jato de forma discricionária abateu pesadamente sobre o PT, a mídia igualmente enviesada bateu diuturnamente contra o governo legitimamente eleito e a Justiça permaneceu acomodada em berço esplêndido, os eleitores bombardeados se perderam e se deixaram levar pelo turbilhão das meias verdades. Resultado: os partidos de esquerda trombaram contra a pesada muralha autoritária e perderam vez e voz.

Terão, entretanto, que sair dos gabinetes, discursos e palestras e voltarem às ruas atrás do povo que os negou agora, não por pusilanimidade, mas por desinformação e falta de amparo político da própria esquerda. A batalha foi perdida sim, mas a vitória poderá ser novamente alcançada compartilhando com futuros eleitores noutros termos e soluções as ideias, informações e propostas democráticas.

A terceira jogada é a derrota da vitória. Tem tudo para desabar a austeridade implantada no país pelo atual governo de proveta, o qual defende, pasmem!, o ícone Margaret Thatcher. A Europa deu com os burros n’água e o próprio FMI já é contra políticas de austeridade em períodos de crise econômica. Condena-se a população pesadamente mais ao martírio do desemprego, aos cortes de salários e demais direitos sociais em prol do pagamento dos juros da dívida pública – por sinal, bem menor em relação ao PIB que vários países desenvolvidos.

Ocorre que quanto mais o lençol é puxado, mais as pernas ficam de fora. O trato econômico há de ser anticíclico, não pró cíclico, coisa que os neoliberais não querem ouvir falar. Por que? Porque seus amigos banqueiros querem receber primeiro e serem bem tratados, afinal, no capitalismo contemporâneo, os banqueiros e financistas é quem mandam. Não é por acaso que o ministro da fazenda e o presidente do banco central do Brasil vieram dos bancos.

A quarta e última jogada é a vitória da derrota. Quando a austeridade começar a doer no bolso, na barriga, no trabalho e na vida dos brasileiros, a reação contra a solução econômica do governo de proveta começará a mobilizar a população. Outra solução é possível, (ver http://www.socialistamorena.com.br/o-que-a-esquerda-faria/ ), onde o povo é resguardado da descomunal carga antissocial e os ricos e abastados são os que bancam e pagam as contas. 

As ruas certamente se encherão de sofridos insatisfeitos reclamando de seus direitos básicos e exigindo melhorias econômicas e sociais. Enquanto isso os partidos de esquerda terão a faca e o queijo nas mãos. Poderão ampliar e aprofundar seus contatos e laços com as ruas, escolas, sindicatos, hospitais, associações, terreiros, lajes e demais instâncias e agrupamentos profissionais e sociais.

E a batida? O final das jogadas, das quatro jogadas descritas, não vem do embate entre esquerda e direita. Não vem da politização partidária, embora possa até tangencialmente se nutrir dela. Vem, sim, da legítima defesa de direitos individuais e sociais. Vem da defesa de um presente honesto e de um futuro de esperança e conquistas. Vem do amanhã do Brasil.

A jogada que leva à batida final para vencer a partida dos destinos do país vem das escolas de ensino médio. Ana Júlia Ribeiro, a secundarista paranaense, conseguiu mostrar a ponta de lança do movimento de ocupação das escolas pelo país afora. Sua voz ecoou e chegou até a ONU onde irá falar e mostrar o que querem e pensam os estudantes secundaristas. Querem essencialmente ter o ensino pleno garantido ao contrário da “reorganização” draconiana pleiteada pelos governos federal e estaduais. No bojo da austeridade.

Mais de 1000 escolas ocupadas em todo o país mostra a força, a energia e a resistência cidadã dos estudantes secundaristas brasileiros. Defendem o direito de estudar e bem, não com os cortes indicados pelo ministério da educação, ou melhor, da deseducação. Afinal, são suas famílias que pagam os tributos e querem de volta a qualificação educacional correspondente. Não a que autoridades de plantão preconizam.

Apesar do quadro caótico da economia e da política nacional, há uma tênue luz no fim do túnel. As ocupações escolares dão o tom da virada onde o povo tenha vez e voz. Vem das meninas e meninos o vigor da luta pelos direitos humanos, vem exatamente das escolas onde se aprende a ler, escrever e entender o som ao redor! Cabe a nós todo o apoio, participação e luta!



*colaborador da Carta Maior


Créditos da foto: reprodução


FONTE: Carta Maior

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