sábado, 28 de janeiro de 2017

MPT diz que reforma trabalhista contraria lei e fragiliza mercado. E propõe rejeição total


Procuradores criticam projetos que tratam de temas como negociado sobre legislado e terceirização. Reduzir direitos "terá como efeito imediato a ampliação do constrangedor nível de desigualdade social"

Por Vitor Nuzzi


Procurador-geral diz que argumento de que a "flexibilização
estimula a criação de empregos ", é falso
São Paulo – As alterações propostas pelo governo Temer na reforma trabalhista "contrariam a Constituição Federal e as convenções internacionais firmadas pelo Brasil, geram insegurança jurídica, têm impacto negativo na geração de empregos e fragilizam o mercado interno", afirma o Ministério Público do Trabalho. Ao analisar as medidas, em quatro notas técnicas, o MPT propõe a "rejeição por completo" do Projeto de Lei (PL) 6.787 (que inclui o princípio do negociado sobre o legislado), do Projeto de Lei do Senado (PLS) 218 (que trata do trabalho intermitente), do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 30 e do PL 4.302, ambos sobre terceirização.

O procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, contesta o argumento – recorrente, especialmente em tempos de crise – de que a flexibilização estimula a criação de empregos. "Todas essas propostas já existiam antes da crise econômica. Quando o Brasil surfava em uma situação altamente favorável, essas propostas já existiam e eram defendidas pelos mesmos grupos econômicos e políticos. Esse argumento cai por terra a partir do momento em que essas propostas idênticas foram apresentadas quando o Brasil tinha uma economia pujante", afirma.

Em reunião na última terça-feira (24), foi criado o Fórum Interinstitucional de Defesa do Direito do Trabalho e da Previdência Social. O MPT e 28 entidades assinam uma Carta em Defesa dos Direitos Sociais, na qual reconhecem a existência de crise, mas ponderam que os direitos "não devem ser compreendidos como obstáculo ao desenvolvimento do país". Afirmam, na sequência, que um enfraquecimento desses direitos "terá como efeito imediato a ampliação do constrangedor nível de desigualdade social verificado no Brasil". 

Entre as entidades, estão as associações brasileira e latino-americana de juízes trabalhistas e de advogados trabalhistas, a Faculdade de Direitos da Universidade de Brasília, o Fórum Nacional em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Terceirizados, CUT, UGT, Força Sindical, Nova Central, CSB, CSP-Conlutas, Intersindical, diversas confederações de trabalhadores e sindicatos dos Auditores-Fiscais do Trabalho, dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, dos Metalúrgicos de São Paulo e dos Metalúrgicos de São José dos Campos e região.

Objetivo: excluir direitos

Sobre o PL 6.787, ao comentar o tópico do negociado sobre o legislado, o MPT afirma que esse princípio já existe no ordenamento brasileiro, sempre que a negociação significar a criação de benefício ou ampliação de um já existente. Por isso, conclui que o único objetivo do projeto "é permitir a exclusão de direitos trabalhistas pela via negocial".

O Ministério Público fala ainda das limitações da estrutura sindical. "Outra premissa básica a respeito da proposta reside na suposição de que os sindicatos no Brasil possuem todos os instrumentos para realizar a contento a tarefa de defender os interesses da categoria profissional que representam. A realidade brasileira, no entanto, mostra-se muito distante disso", afirma o MPT, acrescentando que se depara, diariamente, "com a prática de atos antissindicais, tendentes a impedir a atuação livre e independente dos sindicatos, como embaraços ou mesmo impedimento ao direito de greve, demissão de sindicalistas e assédio a trabalhadores envolvidos nos assuntos do sindicato".

Por isso, o órgão considera, como providência anterior a qualquer mudança no modelo de negociação, a adoção de leis que contemplem repressão e prevenção de práticas antissindicais. "Não obstante o Brasil ser signatário da Convenção n. 98 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), mostra-se importante a previsão, em nosso ordenamento jurídico, de dispositivos repressores de quaisquer atos, condutas ou práticas que tenham por objetivo prejudicar de forma indevida os titulares de direitos sindicais no exercício da atividade sindical", afirma. "Além disso, mostra-se impossível discutir a prevalência do negociado sobre o legislado sem antes proceder à reforma da estrutura sindical brasileira, que apresenta gritantes e notórios problemas."

Entre esses problemas, o MPT aponta o "monopólio da representação sindical", referindo-se ao princípio da unicidade – um só sindicato por base territorial. E também critica o imposto (ou contribuição sindical), que para o Ministério Público perpetua "um ambiente que estimula a fragmentação da representação sindical, sem qualquer benefício ao empregado ou ao empregador, fator que compromete a legitimidade das entidades".

Efeito: mais demissões

O Ministério Público também analisa a proposta de representação no local de trabalho, contida no PL 6.787, e considera que o projeto não assegura "nem o mais reduzido grau de representação e de participação dos trabalhadores". Para o MPT, o representante teria um papel reduzido, apenas participando de negociações coletivas, sem poderes para firmar acordos ou convenções. Aponta outros itens que poderiam criar insegurança jurídica e conflitos entre empresa, sindicatos e trabalhadores.

Os procuradores criticam ainda o item sobre trabalho parcial, proposta que, avaliam, se afasta de qualquer propósito de criar empregos. "Ao invés disso, haverá demissões de trabalhadores contratados em regime integral e substituições dos meses por trabalhadores em regime parcial, que trabalharão jornada considerável, mas recebendo salário inferior e menos benefícios (como a duração de férias)."

Em outra nota técnica, eles analisam um projeto menos conhecido, o PL 218, do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), sobre trabalho intermitente, pelo qual o trabalhador recebe pelas horas efetivamente trabalhadas. "Em nossa ótica, a jornada intermitente institui sistemática prejudicial aos trabalhadores e à própria harmonia da relação capital-trabalho", afirmam. "Além de não proporcionar a alegada segurança jurídica – propalada por seus defensores –, agride normas fundamentais de regência de nosso modelo de produção, encerramento a real possibilidade de agravar o quadro de desemprego no nosso país." Para o MPT, o projeto viola princípios constitucionais, como o da valorização social do trabalho, e por não garantir o pagamento de qualquer remuneração mínima.

Sobre o controverso PLC 30, aprovado na Câmara sob o número 4.330, o procurador-geral do Trabalho afirma que o texto, "repleto de incoerências e inconstitucionalidades, permitindo a intermediação de mão de obra, quebrando a solidariedade social e a organização sindical brasileira e não trazendo qualquer benefício aos trabalhadores terceirizados, será o marco para amplos questionamentos judiciais e insegurança jurídica".

Fleury observa que o projeto não veda a terceirização na atividade-fim, permitindo a prática sem limites em todas as operações da empresa. Nesse sentido, diz, o PLC 30 "vai contra o próprio conceito de terceirização, desvirtuando a figura, que passa a ser mera intermediação de mão de obra".

O PLC permite a intermediação, mesmo afirmando que veda essa prática, "dado essencial que está em contradição com o restante do texto". O procurador cita norma prevista no artigo 14: "Na hipótese de contratação sucessiva para a prestação dos mesmos serviços terceirizados, com admissão de empregados da antiga contratada, a nova contratada deve assegurar a manutenção do salário e dos demais direitos previstos no contrato anterior". 

Segundo ele, essa regra só faria sentido em casos de fornecimento de mão de obra, quando ocorre uma sucessão de empresas "prestadoras", mas os empregados são os mesmos. Ele acrescenta que a norma é incompatível "com a propalada especialização da empresa prestadora de serviços, que possuiria atividade própria, pois se assim fosse, não repassaria toda uma equipe de trabalhadores especializados para uma outra empresa, que assumiu aquele posto". E conclui: "A intermediação de mão de obra é inconstitucional e iguala trabalhador à coisa".

O procurador-geral nota ainda que o projeto não estabelece qualquer parâmetro para aferir a especialidade de uma empresa, ainda que fale que as empresas contratadas devem ser especializadas. "O conjunto das normas torna bastante claro que se trata de um requisito meramente formal, bastando que a atividade conste do objeto social da empresa, não representando qualquer limitação das atividades passíveis de terceirização."


segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Dez medidas para sacudir o Sistema Prisional




Massacres expõe fracasso brutal da política de encarceramento maciço. Mudanças incluem penas alternativas, combate frontal à tortura, fim da prisão provisória e total revisão da Lei de Drogas




A morte brutal de 56 pessoas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM), e de pelo menos mais 33 na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR), novamente escancarou a falência do sistema prisional brasileiro e fez o país debater possíveis soluções para este gigantesco problema.

Na manhã desta sexta-feira, 6, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, apresentou seu novo plano de racionalização e modernização do sistema penitenciário, parte do Plano Nacional de Segurança Pública do governo federal. Embora o ministro qualifique as medidas como uma “uma nova filosofia”, a maioria delas repete receitas antigas e não ataca problemas estruturais que levaram à falência do sistema.

Enquanto o Estado não encarar com seriedade sua política de encarceramento em massa, as prisões continuarão sendo um dos principais focos de violações do país.

Diante deste quadro, e para contribuir com o debate, a Conectas apresenta 10 medidas urgentes para o sistema prisional, que resumem propostas pelas quais a organização vem trabalhando para tornar o sistema mais humano. Confira a seguir:

1) Redução drástica dos índices de encarceramento
O colapso do Sistema Prisional Brasileiro não é recente – trata-se de um problema de ordem estrutural decorrente de uma equivocada política criminal, operada por um modelo de polícia herdado da ditadura e incapaz de dar conta dos complexos desafios da segurança pública. Investir no Direito Penal para deter problemas de ordem social é prática ineficaz e contraproducente. Atualmente, o índice de aprisionamento no Brasil é de 307 presos por 100 mil habitantes – mais que o dobro da taxa mundial (144 por 100 mil habitantes). Dentre os países mais populosos do mundo, possuímos a sexta maior taxa de encarceramento. Temos a quarta maior população carcerária mundial, mas definitivamente não figuramos entre os mais seguros. A estratégia de prender mais, portanto, não tem sido capaz de reduzir a criminalidade. Ao contrário: falido, o sistema tem ajudado a reproduzir a violência e as violações de direitos humanos. É necessário reduzir o fluxo de entrada no sistema prisional e aumentar o fluxo de saída. Uma das mais importantes estratégias nesse sentido é o investimento em uma política de alternativas penais em detrimento da pena de prisão. Isso poderia ser feito, por exemplo, através da substituição de penas de prisão de até oito anos por medidas alternativas (hoje previstas somente para penas de até quatro anos), o que representaria redução imediata de cerca de 53% da população carcerária brasileira, e nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça. Outra importante medida é a promoção de reformas profundas na política de segurança pública, para que a atividade de inteligência policial seja priorizada e focada nos crimes mais graves e para que todas as polícias sejam desmilitarizadas.

2) Controle social do sistema carcerário
As mazelas que assolam o sistema penitenciário brasileiro vêm se multiplicando longe do escrutínio público. Isso acontece porque, apesar de concentrar violações, os presídios ainda são lugares quase inacessíveis para a sociedade civil. Essa caixa-preta que envolve o sistema não só impede a identificação e a construção de soluções para os principais problemas dos presídios, como ajuda a perpetuar práticas como a tortura. A criação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura abriu um importante caminho para o fim dessa blindagem, mas ainda há muito por fazer. Para efetivar o controle social do sistema carcerário é preciso que os estados criem seus próprios mecanismos de prevenção e combate à tortura (hoje, só Rio de Janeiro e Pernambuco possuem um órgão nesses moldes em operação). Esses mecanismos devem ser idependentes e seus integrantes, selecionados através de consulta pública, conforme parâmetros estabelecidos no ‘Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes’ da ONU, ratificado pelo Brasil em 2007. Esse processo deve ser acompanhado pela criação de norma federal que regulamente a inspeção de locais de privação de liberdade por entidades de proteção dos direitos humanos sem aviso prévio e com a possibilidade de utilização de recursos audiovisuais – desde que preservem a intimidade das pessoas envolvidas. Também é indispensável o fortalecimento da atuação dos Conselhos da Comunidade – órgãos da execução penal compostos apenas por representantes da sociedade civil – para que possam exercer seu papel de fiscalizadores das condições do cárcere. É necessário, além disso, criar e fortalecer as corregedorias e ouvidorias do sistema penitenciário, que devem ser externas, inspiradas em resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Por fim, é urgente a proibição das revistas vexatórias de familiares nos dias de visita. Isso garantiria a manutenção do direito à visita, tão indispensável à reitegração do preso, e a circulação de informações sobre o que acontece dentro das unidades.

3) Fim do uso abusivo da prisão provisória e ampliação da audiência de custódia
Um dos mais importantes sinais da falência do sistema carcerário brasileiro é o número de prisões provisórias: cerca de 40% dos 622 mil presos ainda não foram julgados5. Em geral, são pessoas com restrito acesso à Justiça que respondem por crimes sem violência e poderiam aguardar julgamento fora da prisão – o que, de uma só vez, melhoraria o acesso à defesa e desobstruiria o sistema, que hoje possui déficit de 250 mil vagas6. Uma lei que prevê penas alternativas à prisão provisória foi aprovada em 2011 (12.403), mas sua aplicação ainda é um desafio. Esse cenário é agravado pela inexpressividade da audiência de custódia, instrumento ainda ausente em boa parte do país, portanto longe de cumprir com seu duplo objetivo central – reduzir prisões ilegais, desafogando o sistema, e coibir a prática de tortura durante as abordagens policiais. Para enfrentar esse problema, recomenda-se o fomento e a cobrança do Poder Judiciário e dos ministérios públicos na aplicação efetiva da Lei das Medidas Cautelares, que estabelece um leque de penas alternativas para substituir a prisão provisória. Esse movimento deve ser complementado com incetivos às ações do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) no monitoramento do abuso na aplicação da prisão provisória. Também é fundamental a aprovação do Projeto de Lei que cria a audiência de custódia, impondo prazo de 24 horas para que o preso em flagrante seja apresentado presencialmente ao juiz, na presença de seu defensor, para a análise da necessidade de prisão, sem vídeoconferência.

4) Acesso à Justiça
O aumento substancial na quantidade de pessoas atrás das grades (da ordem de 575% entre 1990 e 20147) não foi acompanhado por uma melhora nos canais de acesso à Justiça. Segundo levantamento de 2013 da Anadep (Associação Nacional de Defensores Públicos) e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), faltam defensores públicos em 72% das comarcas do País. O desequilíbrio entre os diferentes atores do sistema de justiça também chama atenção: o Brasil conta hoje com 17,3 mil magistrados, 12,6 mil promotores9 e apenas 5,5 mil defensores10 – um balanço que coloca em risco o direito de defesa. Só no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, cada defensor é responsável por 2,5 mil processos criminais. Para melhorar o acesso à Justiça, recomenda-se o fortalecimento e autonomia financeira às Defensorias Públicas (estaduais e da União). Como parte desse esforço, é fundamental a ampliação do número de defensores públicos, priorizando sua lotação em estabelecimentos prisionais e delegacias de polícia, e do quadro de apoio (assistentes sociais, psicólogos, sociólogos). Outra medida que ampliaria a capacidade de acompanhamento do processo criminal e da execução da pena por parte dos presos é a instalação de um sistema eletrônico dentro das unidades prisionais. Esses terminais de auto atendimento devem estar em local de livre acesso aos presos e permitir a impressão do andamento processual.

5) Redução do impacto da Lei de Drogas no sistema prisional
A Lei de Drogas de 2006 (11.343) é hoje uma das principais ferramentas do encarceramento em massa no Brasil. Desde o início de sua aplicação, o número de pessoas presas com base na nova norma cresceu 348%. Segundo dados de 2014 do Ministério da Justiça, 64% das mulheres e 25% dos homens encarcerados respondem a crimes relacionados às drogas. Antes de sua aprovação, esses índices eram, respectivamente, de 24,7% e 10,3%. Ao contrário do que possa parecer, esse aumento não demonstra a eficiência da lei, mas o aprofundamento da penalização de jovens negros e pobres das periferias. Isso acontece porque, na prática, policiais e delegados definem precariamente quem é traficante e quem é usuário – definição, em geral, validada irrefletidamente pelo judiciário. A lei antidrogas brasileira funciona como instrumento da criminalização da pobreza e alimenta a lógica belicista da “guerra às drogas”, ao invés de tratar o tema como uma questão de saúde pública. Nesse sentido, a Conectas defende a aplicação de penas alternativas para o pequeno traficante (dependentes financeiros ou químicos que comercializam drogas por conta de sua vulnerabilidade social) e a construção de nova política sobre drogas, que seja menos violadora, encarceradora e seletiva

6) Tratamento digno às mulheres encarceradas
Aproximadamente 85% das mulheres presas no Brasil respondem por crimes decorrentes de sua vulnerabilidade social, ou seja, crimes patrimoniais e relacionados a entorpecentes. Além de ter consequências profundas sobre todo o tecido familiar, o encarceramento de mulheres é frequentemente associado à violações graves no direito à maternidade, Apenas 37 médicos ginecologistas atendem as 37 mil mulheres presas do País. E há inúmeros casos de bebês que são retirados de suas mães e enviados para abrigos sem que a genitora tenha ciência de todo esse processo. Elas também são especialmente afetadas pela falta de estrutura material nas unidades prisionais. Em algumas unidades de São Paulo, por exemplo, não há distribuição regular de absorventes íntimos. Para a Conectas, é fundamental que se considere as especificidades de gênero nas instalações e tratamento disciplinar. O exercício da maternidade adequado e convívio familiar devem ser assegurados com dignidade para mãe e filhos. A assistência material deve ser adequada, revertendo o de penúria atual.

7)  Valorização da educação e do trabalho
A fotografia do acesso à educação nos presídios é desoladora, apesar do ensino ser reconhecido como uma das principais ferramentas contra a reincidência (hoje ao redor de 25%). Em São Paulo, Estado que abriga 35% dos presos do País, apenas 7% frequentam as aulas. A falta de oferta contrasta com a demanda potencial: 75% dos internos não completaram sequer o ensino fundamental. No Brasil, o índice de engajamento de presos em atividades educacionais é de apenas 11%.A mesma situação é verificada no acesso ao trabalho. Segundo dados de 2014 do Ministério da Justiça, apenas 25% dos presos brasileiros realizam algum tipo de trabalho interno ou externo. Além de contrariar as garantias previstas na Lei de Execução Penal (7.210/1984) e em tratados internacionais assinados pelo Brasil, a falta de políticas estruturadas nessas duas esferas coloca em risco a capacidade de reitengração das pessoas encarceradas à sociedade – objetivo que deveria nortear o sistema prisional. Para reverter esse quadro, é preciso uma política estruturada de valorização da educação e do trabalho dentro do sistema prisional. Políticas públicas de incentivo e sobretudo de oferta devem ser implantadas, sempre evitando a exploração de trabalho indigno.

8) Políticas públicas para egressos
Apesar de constituirem instrumentos fundamentais para a interrupção do ciclo de violência e encarceramento, as política públicas para a reinserção de egressos ainda são limitadas.Programas federais e estaduais como o Pró Jovem, o Pró Egresso e o Começar de Novo têm se mostrados insuficientes para suplantar os estigmas que rodeiam a prisão. Outro problema grave é a dificuldade que muitos egressos encontram para pagar as multas estipuladas pela Justiça no momento de sua condenação. Por causa de sua vulnerabilidade econômica, ficam impedidos de regularizar sua documentação – o que dificulta o processo de busca por um emprego e sua reitegração total à sociedade. Por conta disso, Conectas pede a ampliação maciça de recursos que sustentem políticas públicas para os egressos das prisões, auxiliando o reingresso no mercado de trabalho e disponibilizando adequado atendimento psicossocial aos egressos e familiares. Nesse sentido, é necessária a aprovação do Projeto de Lei do Senado (153/2014) que prevê a criação de cota de 5% para egressos e apenados em regime semiaberto e aberto contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas jurídicas para a realização de obras e serviços. Além disso, é urgente extinguir a pena de multa após o cumprimento da pena privativa de liberdade.

9) Efetivação do direito à saúde
O quadro do acesso à saúde é grave no sistema prisional brasileiro. Hoje, os serviços são administrados pelas secretarias estaduais responsáveis pela administração penitenciária, e não pelo SUS. Segundo dados do Ministério da Justiça, em dezembro de 2014 havia apenas um clínico geral para cada 3 mil presos. Só 37% das unidades têm módulo de saúde. Para reverter essa situação, Conectas pede a efetivação do direito constitucional de acesso à saúde, transferindo ao SUS a gestão da saúde do sistema prisional, e prestação de assistência material aos presos em quantidade e qualidade suficientes, nos termos da Política Nacional de Saúde no Sistema Prisional, que institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do SUS.

10) Institutos Médicos Legais independentes
Outra questão preocupante é a falta de independência dos órgãos periciais, hoje vinculados às secretarias de segurança pública – uma situação clara de conflito de interesses que pode gerar uma atuação corporativista dos peritos, especialmente em casos de maus tratos. Dotá-los de autonomia não só daria mais transparência ao trabalho das polícias, como garantiria o cumprimento do Protocolo de Istambul, ratificado pelo Brasil, que senta as bases para a identificação e a investigação de crimes de tortura. Conectas recomenda, portanto, a independência dos Institutos Médicos Legais das Secretarias de Segurança Pública, garantindo autonomia aos peritos na realização dos exames competentes. Já há proposta de emenda constitucional (PEC 325/2009) com esse objetivo. O projeto tramita na Câmara dos Deputados.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Democracia e Capitalismo, divórcio definitivo



Por Antonio Martins


Num livro que diz muito ao Brasil, Wolfgang Streeck expõe mecanismos que
permitiram  à aristocracia financeira controlar Estado e mídia. Saída:
assumir a separação, pensar numa política livre do capital


Por Ladislau Dowbor | Imagem: Frida Kahlo, Última Ceia

RESENHA DO LIVRO:
Buying Time – The delayed crisis of democratic capitalism, de Wolfgang Streeck – Verso, Londres, New Left Books, 2014 (original: Berlin, 2013)

Streeck traz na sua mensagem central a nossa evolução para um capitalismo sem democracia. Segundo ele, não vivemos o fim do sistema, mas o ocaso do capitalismo democrático. Por meio do endividamento do Estado e de outros mecanismos, gera-se um processo em que os governos, obrigam-se cada vez mais, a prestar contas ao “mercado”, virando as costas para a cidadania. Com isso, o que conta, para a sobrevivência de um governo, já não é sua capacidade de responder aos interesses da população que o elegeu – e sim se o mercado, ou seja, essencialmente os interesses financeiros, sentem-se suficientemente satisfeitos para declará-lo “confiável”. De certa forma, em vez de república, ou seja, res publica, passamos a ter uma res mercatori, coisa do mercado. Um quadro-resumo ajuda a entender o deslocamento radical da política: (81)

Estado do cidadão
Estado do mercado
Nacional
Internacional
Cidadãos
Investidores
Direitos Civis
Direitos Contatuais
Eleitores
Credores
Eleições (periódicas)
Leilões (contínuos)
Opinião Pública
Taxas de Juros
Lealdade
“Confiança”
Serviços Públicos
Serviço da Dívida

Naturalmente, num dos casos, o Estado financia-se através dos impostos; no outro, do crédito. Um governo passa assim a depender “de dois ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o seu comportamento”(80). A opinião pública preocupa-se com a qualidade do governo; mas para o que chamamos misteriosamente de “os mercados”, o que importa é a “avaliação de risco”, as probabilidades de este mesmo governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida. A opção de sobrevivência política pende cada vez mais para o segundo lado. “Ao tentar entender o funcionamento do estado democrático regido pela dívida (democratic debt state), ficamos logo surpresos que ninguém parece saber quão importante é o ‘estado do mercado’ (Marktvolk).”(82)

Esta interpretação casa de maneira impressionante com o caso brasileiro. Na famosa Carta de Junho, de 2002, o então candidato Lula comprometeu-se a “respeitar os contratos”. Estive na leitura deste documento. “Vou ler esta carta”, disse Lula ao colocar o óculos, “porque quero ser eleito presidente da República”. Ou seja, ia respeitar os interesses financeiros. Os avanços da sua gestão foram indiscutíveis ao promover os interesses do andar de baixo do país, gerando uma dinâmica impressionante de transformações. Mas os juros foram se acumulando, e quando Dilma, na fase final do primeiro mandato, passou a reduzir os juros da dívida pública, os juros para pessoas jurídicas e para pessoas físicas, buscando restabelecer o equilíbrio financeiro indispensável, começou a guerra total.

Os interesses financeiros viam-se eles mesmos intocáveis, e partiram para recuperar o poder. “Em relação ao seu Marktvolk,” ou seja, aos mercados, “o governo precisa cuidar de ganhar e preservar a sua confiança, ao assegurar de maneira conscienciosa o serviço da dívida que lhes deve e ao fazer parecer seguro que pode fazê-lo e continuará a fazê-lo no futuro também.”(81) As impressionantes mamas da dívida pública devem ser mantidas, ou não haverá governo. Podemos ter democracia, conquanto esta democracia sirva dominantemente aos mercados. E quando, por esgotamento de recursos ou excessivo acúmulo de dívidas, é preciso escolher, ou o governo se dobra aos mercados, ou termina a experiência democrática de convívio entre os dois senhores.

Streeck tem em mente as dinâmicas europeias, mas é impressionante como o sistema se universalizou. Ao expor o que se exige dos governos para que mantenham a confiança dos mercados, e em consequência sobrevivam, o autor traça um excelente resumo do que hoje vivemos. “Os cortes de despesas propostos afetarão essencialmente pessoas cuja baixa renda torna-as mais dependentes de serviços públicos. O emprego será reduzido ainda mais, e os salários no setor público serão espremidos, o que será acompanhado de novas ondas de privatização, bem como de diferenças salariais mais amplas. O acesso aos serviços públicos universais – por exemplo, nos setores de saúde e de educação – será crescentemente diferenciado dependendo da capacidade de compra das diferentes clientelas. No conjunto, o corte de gastos e a redução dos níveis de atividade governamental reforçarão o mercado como principal mecanismo de distribuição de oportunidades na vida, estendendo e complementando o programa neoliberal de desmantelamento do estado de bem-estar.”(119)

As resistências tornam-se difíceis, em particular pela própria globalização, que gera instituições “isoladas da pressão eleitoral”: “As políticas domésticas tornam-se mediadas e neutralizadas ao se trancar os estados-nação em acordos supranacionais e regimes regulatórios que limitam a sua soberania”.(115) Por mais que seja voltado essencialmente para as dinâmicas da Europa, o estudo de Streeck mostra claramente a que ponto avançamos na globalização, e a que ponto se estendeu a visão chapa-branca do poder financeiro. Ela impõe ao mundo, e com raras exceções em qualquer país, o mesmo esquema: o estado transforma-se no sistema contemporâneo de captura dos recursos da sociedade, desviando nossos impostos por meio do sistema público.

Convencer governos de que é mais simples aumentar a dívida do que enfrentar a guerra contra o aumento dos impostos é relativamente fácil. “Os cidadãos passam a esperar cada vez menos do estado, e portanto se veem obrigados a desembolsar cada vez mais por serviços privados, tornando-se mais relutantes em pagar impostos.” (124) O processo de exploração dos trabalhadores, para gerar a mais-valia que conhecemos, não desapareceu, e continua válido nas empresas. Mas a mais-valia financeira, captada por meio de mecanismos da dívida, simplificou a tarefa dos grupos dominantes de sempre. Com isto, é o próprio governo que elegemos que passa a transferir para “os mercados” o dinheiro dos nossos impostos. Esta “terceirização” da extração da mais valia, em que o sistema financeiro utiliza a máquina do estado, coloca os governos em conflito direto com a sua missão constitucional de responder à vontade cidadã manifestada pelo voto. Mas se não o fazem, o que podem pesar meros 54 milhões de votos?

O que sobra da democracia? O poder dominante dos gigantes corporativos é exercido por pessoas não submetidas a voto. Os políticos são eleitos, cada vez mais, com o dinheiro das mesmas corporações. Os grupos de mídia já pertencem, com frequência, às corporações; mas de toda forma dependem vitalmente da publicidade que estas contratam. O judiciário é cada vez mais privatizado, com a expansão do sistema dos settlements (acordos) judiciais que colocam as corporações ao abrigo da lei: e os juízes não são eleitos. A democracia realmente existente constitui hoje uma chama frágil que sobrevive neste ambiente de maneira cada vez mais precária. Não se trata apenas de resgatar a política econômica – trata-se de resgatar a própria democracia.

Os desafios são claros: se este sistema “não pode mais sequer produzir a ilusão de crescimento com equidade, chegará o tempo em que os caminhos do capitalismo e da democracia têm de se separar…A alternativa ao capitalismo sem democracia é democracia sem capitalismo, ou pelo menos sem o capitalismo que conhecemos” (173), escreve Streeck. Hoje, prossegue ele, “democratização deveria significar construir instituições por meio das quais os mercados possam ser trazidos de volta para o controle da sociedade: mercados de trabalho que deixam espaço para a vida social, mercados de produtos que não destroem a natureza, mercados de crédito que não geram promessas insustentáveis em massa. Mas antes que algo deste tipo possa realmente entrar na agenda, no mínimo serão necessários anos de mobilização política, e a continuidade da ruptura da ordem social que hoje se aprofunda diante dos nossos olhos”.


domingo, 8 de janeiro de 2017

Presídios privatizados da Umanizzare mantêm o caos no sistema prisional


Pastoral Carcerária




Como a maioria das unidades prisionais brasileiras, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), encerrou 2016 superlotado, com 1.224 presos, 170% acima da capacidade de 454 vagas, e começou 2017 como notícia em todo país, com uma rebelião que culminou na morte de ao menos 56 pessoas, em cenário indescritivelmente terrível.

Inaugurado em 1982 como colônia agrícola para receber pessoas em regime semiaberto, com o tempo o Compaj se tornou um presídio comum e na primeira década dos anos 2000 se tornou um presídio privatizado, no modelo de cogestão. Até meados de 2014 era gerido pela empresa Auxílio Agenciamento de Recursos Humanos e Serviços Ltda.

Em março 2013, o Padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, visitou a unidade prisional e constatou que as “maravilhas” prometidas pelo modelo privatizado não aconteciam na realidade. “A população carcerária no presídio ultrapassa a capacidade: há 936 presos, mas a estrutura foi projetada para comportar 432 pessoas. A alimentação dos presos é ‘quarteirizada’ à empresa DPT Alimentos. Promotores e juízes realizam visitas trimestrais ao local, mas não têm contato com os presos. Há quatro salas de educação, mas a Secretaria de Educação ainda não deu início às aulas”, consta em reportagem publicada no Site da PCr à época, quando também foi relatada a falta de colchões nas celas, carências no atendimento médico e ausência de kits de higiene e roupas de banho para os encarcerados.

A partir de junho de 2014, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim passou aos “cuidados” da Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda, que à época prometia “empregar diversas práticas e ações já desenvolvidas em outras unidades prisionais geridas por ela e que amenizam a condição de cárcere do detento”, como descreveu a empresa em seu site.

No entanto, o que se viu ao longo do tempo, foi o aumento do encarceramento, precariedades na assistência jurídica aos presos e mais denúncias de maus tratos a que os presos estavam sendo submetidos, comprovando a falácia de que os presídios privatizados são capazes de “humanizar” o tratamento dado às pessoas presas: ou seja, o custo do preso para o estado é ainda mais caro que em uma unidade prisional com administração estatal e não há “ressocialização”. Aliás, “ressocialização” é inviável em qualquer modelo de prisão.

Mas como trabalha a Umanizzare?

Conforme dados levantados pela Pastoral Carcerária em 2015, a Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda era responsável por oito unidades privatizadas nas regiões Norte e Nordeste do país.

Nas eleições de 2014, a empresa doou R$ 750 mil para candidaturas ligadas à bancada da bala, bancada esta que tem impulsionado diversos projetos de lei cuja consequência imediata é o aumento da população prisional, e o consequente aumento do potencial de lucro das empresas que gerenciam presídios.

Em 2014, a Pastoral Carcerária lançou o documento “Prisões privatizadas no Brasil em debate”, no qual fez um mapeamento da atuação das empresas que administram as prisões no país. A Umanizzare não respondeu ao questionário enviado pela Pastoral para que descrevesse sua forma de atuação.

No entanto, foi possível entender a forma de trabalho da Umanizzare a partir da conversa feita no estudo com os gestores da Unidade de Tratamento Penal de Barra da Grota (TO), gerida pela empresa na época do estudo.

O estudo mostrou que a Umanizzare não preza pelo mínimo de capacitação de seus funcionários. “A contratação do Agente da Empresa Umanizzare se dá pelo interesse da pessoa, que envia o currículo para a Empresa, a psicóloga da empresa analisa, uma vez que é aprovado o currículo, a pessoa é chamada para uma entrevista. Aprovada na entrevista, é contrata e dá inicio à formação. A formação é feita pelo Estado, um curso de 30 dias”, diferentemente do que acontece com os agentes penitenciários do Estado de Tocantins, que são concursados, têm plano de carreira e passam por um treinamento inicial com a duração de cem dias, além de outros cursos de atualização. A formação exigida pela Empresa Umanizzare para ser agente penitenciário é do segundo grau completo.

Na época do estudo, a Unidade de Tratamento Penal de Barra da Grota contava com dois agentes penitenciários concursados, 33 policiais civis, 24 policiais militares e 154 funcionários da Umanizzare – um advogado (para uma população de 460 presos à época), 118 agentes penitenciários, 3 assistentes sociais, 6 auxiliares de serviço geral, 1 dentista (20h/semanais); 1 enfermeiro, 1 médico clínico geral, 3 motoristas, 1 gerente operacional, 1 pedreiro; 1 professor; 1 pedagogo, 2 psciólogos, entre outros.

Um dado preocupante é que de 2012 a 2014, 40% dos funcionários da empresa na unidade prisional haviam sido substituídos. No mesmo período, 18 foram afastados por suspeita de corrupção, por suposta facilitação para a entrada de materiais proibidos para os presos.

Com relação ao direito das pessoas presas de terem atendimento jurídico, o relato que segue consta no relatório de visita da equipe da Pastoral Carcerária em 8 de janeiro de 2014 na Unidade de Tratamento Penal de Barra da Grota.

“Encontramos presos que estão há mais de nove meses na unidade sem contato com advogado. O procedimento para ser atendido é escrever um bilhete, entregar para o agente penitenciário e este entrega para a Defensora Pública. A Defensoria Pública tem uma escala e vai chamando pela ordem de solicitação. A reclamação é a dúvida se realmente os agentes penitenciários entregam o bilhete à Defensora Pública e sobre o fato de eles somente conversarem com a Defensoria no dia do julgamento, no fórum, minutos antes de entrarem na audiência. Os advogados da empresa só podem realizar os trabalhos da própria empresa. Houve reclamações dos advogados particulares em relação aos advogados da empresa, por estes estarem dentro da unidade e os particulares terem de enfrentarem toda a burocracia da unidade para terem acesso aos seus clientes”.

Chamou a atenção, também, o fato de todos os presos preferirem estar em um presídio do Estado e não naquele privatizado. E por quê? “A resposta foi a mesma: ‘Aqui a repressão é maior. Não temos nenhuma liberdade. A nossa família passa por uma revista muito mais rigorosa que nas unidades do Estado. Aqui o que a família pode trazer para nós é muito limitado, tanto em quantidade quanto em variedade. Aqui até a visita íntima é mais rara e curta. O kit higiene é de material de baixa qualidade, gostaríamos de ter outro tipo de sabonete, de pasta de dente, a família não pode trazer. Gostaria de ter outra comida, a família só pode trazer bolacha e torradas. A assistência à saúde é muito ruim. No mês passado morreu um preso por falta de atendimento. Ele estava passando mal, pedindo para levarem ao hospital, só levaram quando ele não aguentava mais e morreu’. Esta informação sobre a morte de um preso doente foi confirmada pelo diretor. ‘Não podemos enviar cartas e nem receber. A empresa nos dá duas folhas de papel e uma caneta, aí, se queremos escrever, temos que pedir para os nossos familiares levarem, eles não nos dão envelope para pôr a carta no correio. Aqui o preso não pode receber sedex e nem carta. O preso que não tem família na cidade, não tem como receber qualquer ajuda da família’”.

Contra a privatização do Sistema Prisional

Toda a prisão é local de dor, sofrimento e torturas, portanto não há modelo ideal nem modelo humanizado. Seja estatal, PPP ou cogestão, prisão é prisão, e a realidade segue mostrando o que ela promove: mais violência.

Assim, a Pastoral Carcerária não defende nenhum modelo de sistema prisional, e denuncia a transformação da liberdade e da violência em objetos de lucro por meio da privatização do sistema carcerário. A privatização das cadeias significa a expansão de um sistema torturador, o aumento do encarceramento, maiores gastos dos cofres públicos, maior precarização das condições trabalhistas para as/os funcionárias/os e a manutenção das violações de direitos das pessoas presas e suas famílias. "Juntamente com outras organizações da sociedade civil e com a CNBB, nos opomos a qualquer medida privatizadora das prisões. A Pastoral Carcerária reforça seu posicionamento de contrariedade a qualquer modelo de encarceramento e anseia e luta por um mundo sem prisões".


terça-feira, 3 de janeiro de 2017

A intelectualidade negra do Império






Por Mauricio Puls 


Antes da Abolição, editores e homens de letras descendentes de escravos desempenharam papel social importante.

Romance do escritor Teixeira e Sousa. . .
Em novembro de 1831, o tipógrafo negro Francisco de Paula Brito (1809-1861) comprou a livraria de seu primo, o mulato Silvino José de Almeida, e a transformou em uma das maiores editoras do Segundo Reinado. Entre seus acionistas figurou o próprio d. Pedro II, que em 1851 lhe concedeu o título de impressor da Casa Imperial. A importância de Paula Brito não se limitou a seu êxito empresarial: ele imprimiu um dos primeiros periódicos em defesa dos direitos dos negros e, mais tarde, publicou as primeiras obras dos escritores Teixeira e Sousa e Machado de Assis.

Como explica Rodrigo Camargo de Godoi em sua tese Um editor no Império: Francisco de Paula Brito (1809-1861), defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) em 2014 e agora publicada em livro pela Edusp, a trajetória do editor não é um caso isolado: “Há toda uma intelectualidade negra que se forma no fim do século XVIII e no início do século XIX, integrada por figuras como o jurista Antonio Pereira Rebouças e o político Francisco Jê de Acaiaba Montezuma, o Visconde de Jequitinhonha. São filhos e netos de escravos que se afastaram do cativeiro, ascenderam socialmente e ocuparam cargos em áreas que vão da medicina até o jornalismo e a política”.

. . . e livro publicado pelo editor Paula
Brito: intelectuais negros  na década der 1840
A integração dos afrodescendentes à elite cultural do Império nunca foi fácil, pois o preconceito fechava muitas portas. Na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, diversos professores (como Avellar Brotero e Veiga Cabral) não escondiam suas tendências racistas – tanto assim que foi apenas em 1879 que um negro, José Rubino de Oliveira, conseguiu se tornar professor da instituição. A resistência, contudo, foi diminuindo com a expansão do estrato de afrodescendentes livres.

O percentual de escravos na população diminuiu bastante durante o século XIX, em parte pelas restrições crescentes ao tráfico negreiro, em parte pela expansão de outras relações de trabalho. Em 1818, segundo o historiador Jacob Gorender, no livro O escravismo colonial, de 1978, os cativos ainda representavam 50,5% da população. Esse percentual declinou para 34,5% em 1850 e atingiu 15,2% em 1872. Nesse último ano, de acordo com o professor da Unicamp Sidney Chalhoub (A força da escravidão, 2012), os negros e mulatos livres representavam 42,7% da população. À época, de cada quatro negros três eram livres. Muitos deles se destacavam nas instituições de ensino, nas artes e sobretudo na imprensa, como mostra Ana Flávia Magalhães Pinto em sua tese “Fortes laços em linhas rotas: Literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX”, defendida no IFCH-Unicamp em 2014 e que recebeu menção honrosa do Prêmio Capes de Teses em 2015.

Teixeira e Sousa. . .
Que fatores possibilitaram o aparecimento  desses intelectuais negros em uma sociedade ainda cindida pelo trabalho escravo? Segundo Ana Flávia, os esforços dos descendentes de africanos para superar as barreiras colocadas ao exercício da cidadania tiveram de se valer dos canais de poder e prestígio então vigentes. Como argumenta o crítico Roberto Schwarz em seu livro Ao vencedor as batatas (1977), em uma sociedade fundada nas relações de dominação pessoal (senhor-escravo), a distribuição dos cargos públicos e dos benefícios do Estado dependia de favores pessoais prestados pelos detentores do poder. A distribuição desses favores, contudo, não se processava apenas por meio “de relações verticais, hierarquizadas, de proteção pessoal”. Segundo Chalhoub, havia também “redes horizontais”, integradas por muitos indivíduos, que agiam de forma mais ou menos coordenada: “Por exemplo, quando começou a atuar como jornalista, Machado de Assis atendia a muitos pedidos de resenhas para divulgar livros de colegas iniciantes”.

. . .e Paula  Brito: frequentadores dos circulos intelectuais
do Império 
Dentre as redes de sociabilidade, uma das mais conhecidas é a maçonaria. Ligia Fonseca Ferreira, professora do programa de pós-graduação em letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e organizadora da edição crítica de Com a palavra, Luiz Gama: Poemas, artigos, cartas, máximas (2011), observa que dois importantes intelectuais negros, o advogado Luiz Gama e o escritor José Ferreira de Menezes, aderiram à Loja América, em São Paulo, fundada em 1868. Dois anos depois, a instituição já mantinha uma escola noturna de primeiras letras com 214 alunos: “Eles recebiam libertos e alforriados na escola. E, dada a carência de bibliotecas na cidade, criaram também uma biblioteca aberta à população”, diz Ligia. De acordo com ela, o próprio Luiz Gama atuou como professor na escola, e algumas classes funcionavam na casa dele.

Além da maçonaria, os partidos políticos também desempenharam um papel essencial. Enfrentando uma concorrência acirrada de livreiros franceses como Baptiste Louis Garnier, o editor brasileiro Paula Brito deveu parte do seu sucesso a alianças com os políticos liberais em fins da década de 1830 e com os conservadores de 1840 até o fim da vida. Como mostra Rodrigo Godoi, seus contatos políticos permitiram que ele fosse agraciado com os serviços de africanos resgatados de navios negreiros apreendidos. Esses trabalhadores (que na prática pouco se distinguiam dos escravos) eram entregues a particulares, que em troca deveriam vesti-los e alimentá-los. Como explica Godoi em seu livro, “receber tais concessões refletia antes de tudo o prestígio social […], tornando-se sinônimo de favor político”.

Mas a emergência da intelectualidade negra não se apoiou apenas em conexões com as classes proprietárias, sustenta Ana Flávia. “É comum explicar a ascensão de pessoas como Luiz Gama, José do Patrocínio e Machado de Assis a partir da identificação da presença de algum medalhão como protetor”, afirma a pesquisadora. “Sem negar a importância da lógica do favor entre ‘senhores’ e ‘livres dependentes’, a pesquisa tem me permitido acessar outras redes de proteção tão importantes quanto essas.” Ana Flávia destaca os casos de Arthur Carlos, Ignácio de Araújo Lima e Theophilo Dias de Castro, envolvidos com a edição dos jornais A Pátria e O Progresso, primeiros exemplares da imprensa negra em São Paulo, e que eram vinculados às irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora dos Remédios. Segundo Ana Flávia, cada indivíduo muitas vezes participava de diversas associações ao longo da vida: “Vicente de Souza, que estou pesquisando no pós-doutorado, participou de mais de 50 organizações, religiosas, políticas e literárias. Ele tem vínculos com a maçonaria e o positivismo. Era abolicionista, republicano e socialista. Vários líderes do movimento operário no Rio de Janeiro nas décadas de 1890 eram negros”.
Edição da Revista Ilustrada de 1880, mostra o escritor
Ferreira de Meneses (na janela à esquerda) e o jornalista
José do Patrocínio na Gazeta de Noticias da qual ambos
foram donos

Paula Brito criou uma espécie de clube, a Sociedade Petalógica, que se reunia em sua livraria para discutir assuntos da atualidade. Entre seus integrantes estavam os políticos Visconde de Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos), Eusébio de Queiroz e Justiniano Rocha, os escritores Joaquim Manuel de Macedo, Teixeira e Sousa e Machado de Assis, o jornalista Augusto Emílio Zaluar e o ator João Caetano. Segundo escreveu Machado de Assis na crônica Ao acaso, publicada em 1865, na Petalógica se conversava sobre tudo, “desde a retirada de um ministério até a pirueta da dançarina da moda”. Era um “campo neutro” no qual o estreante em letras se encontrava com o conselheiro, e o cantor italiano dialogava com o ex-ministro.

Neto de negros libertos que se alfabetizaram ainda no século XVIII, Paula Brito teve acesso às letras ainda muito jovem, o que permitiu que ele se tornasse tipógrafo em 1824. Também compunha poesias (um de seus poemas, a “Ode à imprensa”, foi escrito diante de dom Pedro II no Paço Imperial) e, após comprar a livraria de seu primo, passou a imprimir dezenas de jornais. Foi ele quem publicou um dos primeiros periódicos da imprensa negra no Brasil, O mulato ou O homem de cor, que criticava a ausência dos afrodescendentes nos cargos públicos.

Edição do Gazeta de Noticias anuncia a publicação
em forma de folhetim do primeiro  romance
brasileiro, O Filho do Pescador,  do escritor
negro Teixeira e Sousa

Uma vez inseridos em redes de sociabilidade, intelectuais negros conseguiam abrir caminho para outros. Paula Brito deu emprego a Teixeira e Sousa, do qual publicou Cânticos líricos em 1841 e O filho do pescador, o primeiro romance brasileiro, em 1843. Paula Brito também publicou os primeiros poemas e artigos de Machado de Assis em seu jornal Marmota Fluminense. Segundo Godoi, com Paula Brito nasceu no Brasil a figura do “editor moderno, aquele que compra o manuscrito e o publica”. Em uma época em que as editoras costumavam publicar traduções piratas de autores estrangeiros, ele decidiu comprar textos e direitos de autores nacionais.

Esses intelectuais, porém, eram alvo de muitas críticas. Alguns estudiosos, como o historiador Humberto Fernandes Machado (autor da tese “Palavras e brados: A imprensa abolicionista do Rio de Janeiro, 1880-1888”), afirmam que jornalistas como José do Patrocínio tinham “uma postura paternalista, conciliadora e reformista”, sintonizada com os interesses dos senhores. Acusações semelhantes eram feitas já no século XIX a Machado de Assis pelo gramático negro Hemetério José dos Santos. Na opinião de Ana Flávia, considerações desse tipo esquecem o fato de que os intelectuais negros eram obrigados a dialogar com um público muito diversificado, que incluía tanto senhores de escravos refratários a qualquer concessão quanto abolicionistas radicais.

Para Chalhoub, os intelectuais negros ganharam maior visibilidade a partir da década de 1870 porque o abolicionismo se tornou uma causa generalizada, agregando intelectuais de diferentes tendências (liberais, conservadores, republicanos). Mas, após o fim da escravidão, “houve um silenciamento do legado da escravidão: o regime republicano foi em grande medida criado em reação à percepção de que a Coroa, ao se aliar à luta contra a escravidão, prejudicara os interesses da cafeicultura”. A partir daí, a intelectualidade negra começou a perder espaço.


http://revistapesquisa.fapesp.br/autor/mauricio-puls/


FONTE: Controversia

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