Ao recusarem a reforma educacional de Adriano Naves de Brito, professores municipais de Porto Alegre fazem seu primeiro ato de desobediência e acendem o debate sobre o uso cultural do tempo e a democracia na escola.
Por Jorge Barcellos
A Câmara discute decreto as novas diretrizes para a organização da rotina diária nas escolas da rede pública de Porto Alegre. Na foto: Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito |
No ano em que se completa o centenário da Revolução Russa, uma outra revolução tomou as escolas de Porto Alegre. A ideia de desobediência no serviço público foi ressuscitada desde quando os professores municipais rejeitaram em Assembleia Geral da Categoria, no dia 9 de março passado, as determinações do Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito contra o novo regime do tempo escolar imposto. Os professores, contrariando o que estipula a Lei 133/85, o Estatuto dos Funcionários Públicos Municipais, recusam-se a atender o disposto no Decreto nº 19.655/2017, violando assim o Inciso VII do Art. 196, por se recusarem atender uma norma baixada pela Prefeitura. Para os professores, ao contrário, sua atitude é legal porque está embasada no próprio Estatuto que diz, no mesmo artigo, inciso VI, que o servidor deve ser leal as instituições constitucionais a que serve e o inciso IX, que faculta ao servidor desobedecer às ordens “manifestamente ilegais”.
O que é manifestadamente ilegal no Decreto? Para os professores, o decreto contraria disposições legais superiores que estabelecem o princípio da gestão democrática: ela contraria o que dispõe o Art. 206 da Constituição Federal que estabelece a gestão democrática como princípio fundamental do Ensino; contraria o inciso IX do Art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que enfatiza a gestão democrática como forma de garantir um padrão de qualidade (inciso IX) e contraria, finalmente, os princípios da Lei 13.005/2014, o Plano Nacional de Educação, que em seu artigo 2º, inciso VI, reforça a necessidade da vida escolar seguir o princípio da gestão democrática.
Brito está na ilegalidade porque violou o princípio da gestão democrática. Ele foi incapaz de estabelecer diálogo com professores para implementar suas propostas, preferindo substituir o discurso de proteção social pelo autoritarismo e pela defesa da “religião do mercado”. Sua reforma educacional é vista pelos professores como o seu contrário, repleta de conteúdos anti-educacionais: redução tempo dos períodos escolares, redução do tempo de recreio, retirada dos profissionais do ensino do contato com os alunos nos primeiros horários e nos intervalos de almoço, etc., “tudo deve continuar como está”, defendem os professores em uníssono chegando ao ponto de que o Presidente da Associação dos Moradores do Bairro Rubem Berta veio a público denunciar que a iniciativa “poderá abrir as portas das escolas para o tráfico de drogas”.
O gesto dos professores em recusar-se submeter-se as diretrizes do secretário de educação lembra em muito a ideias de Desobediência civil, obra do escritor Henry Thoureau: uma ação contrária à lei pode ser um instrumento de justiça e um ato de cidadania quando visa proteger um direito negado, no caso, o da gestão democrática do ensino. Os professores foram trabalhar, mas não do jeito que o Secretário de Educação queria e, é claro, reagiu: na sexta-feira (3/5) em edição extra do DOPA, publicou o Decreto Nº 19.695, introduzindo reformas na lei do ponto eletrônico; no dia 17 instalou sindicância contra as escolas Chico Mendes, Heitor Villa Lobos, Deputado Victor Issler e Marcírio Goulart Loureiro acusadas de protestarem contra as medidas do governo, argumento dissuasório com objetivo de perseguir os professores e no último dia 24 proibiu as escolas cederem espaços para realização de plebiscito dos seu Sindicato. Enquanto briga com professores, Brito aproveita-se do seu trabalho para inclui-lo na programação da Semana de Porto Alegre 128 atividades das escolas, ¼ da sua programação.
A reação da comunidade ao projeto de reforma de ensino reforçou os sentimentos de vinculo da comunidade escolar. As escolas municipais Marcilio Dias e Aramy Silva fizeram testes com as novas regras para provar o fracasso da iniciativa e o resultado foram enormes filas no almoço das crianças. Pais e alunos das escolas municipais fizeram passeatas no centro da cidade e na periferia contra as mudanças ”na hora de pedir votos, aparece com criancinha no colo”, diziam mães indignadas; criou-se o hastag #vemdialogarsecretario e #vemouviravozdacomunidade expressando os desejos de diálogo da comunidade escolar; o secretário municipal de educação foi ouvido duas vezes na Câmara Municipal (1º e 14/3) e a professora Regina Scherer resumiu: “na contramão de todo o debate pedagógico proposto por diferentes pensadores e pesquisadores, a SMED está atuando no sentido de romper com a ideia de trabalho coletivo, pois uns irão planejar e outros irão trabalhar”
O movimento de resistência recebeu inúmeros apoios. A Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil no Rio Grande do Sul (CTB), o Centro de Professores do Estado declararam seu apoio ao movimento; artigos de Melissa Ferraz e Alex Fraga rebateram posições de ZH e do jornalista Davi Coimbra; professores iniciaram campanhas de arte-educação nas escolas “quando os alunos (r)existem?” ; vereadores do próprio partido do Prefeito, como o ver. Maluco do Bem (PSDB) posicionaram-se contrários as iniciativas “não transformem a educação em briga política partidária” e pais e alunos disseminaram nas redes sociais inúmeros vídeos com testemunhos contrários à proposta.
Com tanta oposição, porque o secretário insiste em suas medidas? No último dia 18 de maio, novamente reunidos, agora na Câmara Municipal, o secretário municipal de Educação, Adriano Naves Brito, em reunião presidida Cassio Trogildo (PTB), e demais vereadores, debateram novamente o decreto municipal publicado em fevereiro pelo Executivo. Os professores fizeram reunião porque aguardam uma negociação com a SMED. Fizeram uma contraproposta e não tiveram resposta. Afirmou o Vereador Dr. Thiago Duarte (DEM): “Os diretores de escola são prepostos da Smed, não são representantes sindicais. As três diretrizes priorizadas pelo governo estão contempladas na contraproposta feita à Smed. Não podemos demonizar a compensação de horas trabalhadas. O argumento foi reforçado pela Vereadora Sofia Cavedon (PT), para quem a contraproposta feita ao governo “dá conta da demanda sobre a carga horária da quinta-feira”, pois os alunos não sairiam mais antes do final do turno. “É difícil compreender a rejeição à contraproposta. ” Até para vereadores que integram a base aliada, a recusa de negociação é estranha: para André Caros (PMDB), a Smed se mostra inflexível: “A contraproposta dos pais e diretores é de 890 horas/aula por ano e 270 minutos de aula por dia, contra 800 horas/aula e 240 minutos diários aplicados pela Smed. Fica difícil entender por que não foi aceita.” O mesmo argumento foi utilizado pelo vereador Professor Alex Fraga “A Smed foi procurada por um grupo de diretores e todas as propostas foram rejeitadas. Não há disposição ao diálogo por parte do governo. Não considero que a contraproposta seja inferior ao projeto da Smed.
A razão é que a iniciativa não é feita em nome de uma exigência universal, de estudantes e professores, mas do capital que o projeto da administração representa, mas seu verdadeiro caráter negativo é submeter o tempo escolar ao tempo da produção . Diz o professor Gerson Rocha: ”. Numa escola municipal da creche Porto Alegre, existem 600 crianças. O refeitório tem 60 lugares. A escola se organizou há mais de década para que todos os alunos possam, em segurança acompanhados dos professores, tomar seu café e almoçar. Alguns são alunos com deficiência, outros são muito pequenos e outros já na fase adulta, mas que precisam de apoio. A maioria precisa ser acompanhada, pois são desvalidos de tudo, vítimas da miséria de todas as formas, produzida pelo sistema que Junior[Nelson Marchezan Jr, prefeito de Porto Alegre] defende. Pelas contas de Junior, a fila de 540 aguardando o almoço dos demais 60, não lhes roubará tempo de estudos. Para o Junior, não há problemas em comer pouca carne, comer em cinco minutos, expor crianças de 6 anos a alunos adultos num recreio caótico, Junior nunca visitou um dia de uma escola municipal. Para Junior, importante é o número de horas do professor na escolasem necessariamente trabalhar. Júnior tem prazer em não pagar 15 minutos ao dia de intervalo (o recreio) para o professor.
Os professores sabem que estão por detrás da proposta os interesses de uma mentalidade de defesa da rentabilidade, ideologia produtivista que agora deseja invadir o universo escolar, como se sabe, “tempo é dinheiro”. Por esta razão nada mais natural para o secretário de educação do que iniciar sua reforma educativa pela disciplinarização do uso do tempo na escola. O tempo sempre cumpriu papel decisivo no capitalismo desde a introdução dos métodos de racionalização de Frederick Taylor (1856-1915) e tais métodos não param de se atualizar: a reforma do ponto eletrônico por Marchezan é apenas a etapa já prevista de seu plano de disciplinarização do espaço escolar.
Reunião com o Secretário Municipal de Educação. Na foto, o Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito. Reunião com o Secretário Municipal de Educação. Na foto, o Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito.
Porque disciplinar o uso do tempo é tão importante para a política educacional de Brito? Sabemos que definir o que se pode experiência e perceber do tempo é fonte de poder. A cultura tem seu próprio ritmo de tempo, produto de sua história, assim como a comunidade escolar. O problema é que o tempo que transcorre na escola é diferente da fábrica – “cada coisa tem seu tempo”, afirmam os professores. O que deseja Marchezan: desvincular a experiência do uso do tempo escolar de todo o contexto cultural estabelecido pela comunidade, de toda necessidade de alunos e professores. Seu ponto de partida é a abstração social do dinheiro, antes um meio marginal que foi transformado durante a modernidade num fim em si mesmo como descreve Robert Kurz em seu Dinheiro Sem Valor(Lisboa, Antígona, 2014). É a tentativa de inversão da relação da comunidade com o tempo escolar, expressão da necessidade de introduzir no mundo sensível da educação municipal a lógica do tempo da economia capitalista reificada pelo dinheiro. A lógica perversa do rendimento domina o pensamento de Brito e o levou a acreditar que os professores aceitariam livremente que o trabalho escolar pudesse ser convertido em trabalho abstrato, definido pelo tempo medido. Logo os professores vieram em uníssono, como os jovens de 2013, “não é por 15 minutos”, recusa a um projeto que pretende transformar o espaço funcional da escola em espaço funcional do capital.
A proposta de Brito quer impor um ritmo de tempo externo, morto e vazio, deseja levar a escola a seu pesadelo, absurdo pedagógico que acontece porque o secretario desconhecem que o tempo do trabalho escolar não é equivalente ao tempo da produção: há tempo para festas, encontros, almoços coletivos, tempos que são considerados desperdício na visão fetichista do capital das autoridades de plantão. A história está repleta de exemplos de usos diferentes do tempo e a disciplina capitalista do tempo é justamente a luta contra o tempo da comunidade de irmãos.
Brito tem um imperativo: professor, “use o tempo intensamente! ”, imperativo que é o sintoma do nível delirante da racionalidade empresarial cujo caráter neurótico está em substituir a busca da felicidade e desenvolvimento pleno pelo produtivismo e tecnologia, como é apontado por Dany-Robert Dufour em El Delírio Ocidental” (Barcelona, MRA Editores, 2014). A imposição desse sistema de aceleração permanente é sem sentido no universo escolar: é vazio porque é sem laços culturais e quer impor uma tecnologia do uso do tempo (Foucault) de uma estrutura (fábrica) sobre outra (escola). Sob o pretexto de aumentar o rendimento do tempo escolar, a proposta mata a qualidade da vida e do tempo vivido na escola, elimina o fim cultural e humano do tempo escolar: quanto mais tempo se economiza no interior da escola em nome do rendimento, menos tempo de aprendizagem e de convívio se dispõe. A irracionalidade desta concepção está no fato de considerar supérfluos tempos de convívio do professor com o aluno fora do ambiente de sala de aula, no refeitório e no recreio, cuja consequência é transformar os próprios trabalhadores em escravos a se consumirem numa espécie de servidão voluntária.
O conflito ainda está longe de ser resolvido. No ultimo dia 18 de maio, Brito esteve na Câmara Municipal de Porto Alegre para discutir as reformas: “Somos intransigentes a respeito de três diretrizes: a carga de quatro horas/aula por dia, que é a ideal para a aplicação do turno inverso, com períodos de 45 minutos; 17 períodos de aula semanais, e fim das reuniões pedagógicas no horário de aula”, disse o secretário. A respeito da contraproposta feita por pais de alunos e diretores da escola, que defende a ampliação das disciplinas de matemática e português no terceiro ciclo; 16 períodos de aulas de 50 minutos por semana, com carga de quatro horas e 30 minutos diárias (270 minutos) e 890 horas/aula por ano, o secretário afirmou que “Não houve acordo”. Segundo o secretário, 80% das escolas cederam a nova rotina.” Nas redes sociais, os problemas da rede de ensino municipal continuam, principalmente, o da carência de professores. No programa Jornal do Almoço, Brito garante que na próxima segunda feira, 100% como se já fosse um consenso a proposta do executivo. Não é. Uma convocatória do Movimento de Familias das Escolas chama uma paralisação em protesto no próximo dia 29 de maio. Manifestos continuam sendo apregados nas redes sociais, como a de uma professora, que prefere não ser identificada. É extenso, mas vale apena transcrever: “Por favor, a SMED e a prefeitura podem responder, por que, então, os Conselhos Escolares não estão sendo respeitados? Por que suas decisões referentes a nova rotina foram ignoradas? Como PROFESSORA, ou seja, faz parte do meu trabalho questionar, pensar acerca, sugerir, criticar, buscar soluções efetivas, sem superficialidade e paliativos, acerca da minha própria prática e de tudo que me é imposto sem contextualização; em prejuízo do meu trabalho, do funcionamento escolar; e/ou sem as mínimas condições para que se efetive. Desta forma, estou autorizada, tenho o direito de saber porque estão desrespeitando tanto esta rede, sua história, seu trabalho? A realidade dos Contextos escolares e as PESSOAS que realmente/cotidianamente ali estão?
Ainda vivemos, mesmo engatinhando, numa DEMOCRACIA, portanto, o papel da mantenedora é dar SUPORTE EFETIVO à Rede, às escolas, ao trabalho pedagógico, ao funcionamento escolar, a aprendizagem efetiva. Suporte que não se baseie em números e estatísticas, pois, a Comunidade escolar é feita por pessoas; não somos empresa e lidamos TODOS nós, na rede municipal, com algo muito sério e importante, com a Educação Popular, inclusiva, pública. Precisamos buscar realmente a amenização e a resolução dos problemas graves e concretos que já temos, evitando criar mais ou novos problemas mediante a disfunção burocrática numa gestão que não valorize a educação e não respeite seus profissionais. Sem valorização e respeito às Comunidades, à realidade e ao trabalho dos professores da rede, não melhoraremos índices de proficiência algum; não reduziremos problemas de RH e nossas crianças, continuarão apresentando/enfrentando dificuldades, pois sua aprendizagem efetiva depende de toda uma rede de apoio (ampliação e manutenção dos atendimentos e de saúde, SIR, no LA e nos projetos das escolas; assistência social, políticas públicas voltadas verdadeiramente para a educação pública e para estas Comunidades, entre muitos outros…) que realmente funcione.” A pressão do secretário é grande porque apropria-se dos Diretores das Escolas, mas nada garante que a luta dos professores por respeito as suas condições de trabalho irá diminuir.
Ainda vivemos, mesmo engatinhando, numa DEMOCRACIA, portanto, o papel da mantenedora é dar SUPORTE EFETIVO à Rede, às escolas, ao trabalho pedagógico, ao funcionamento escolar, a aprendizagem efetiva. Suporte que não se baseie em números e estatísticas, pois, a Comunidade escolar é feita por pessoas; não somos empresa e lidamos TODOS nós, na rede municipal, com algo muito sério e importante, com a Educação Popular, inclusiva, pública. Precisamos buscar realmente a amenização e a resolução dos problemas graves e concretos que já temos, evitando criar mais ou novos problemas mediante a disfunção burocrática numa gestão que não valorize a educação e não respeite seus profissionais. Sem valorização e respeito às Comunidades, à realidade e ao trabalho dos professores da rede, não melhoraremos índices de proficiência algum; não reduziremos problemas de RH e nossas crianças, continuarão apresentando/enfrentando dificuldades, pois sua aprendizagem efetiva depende de toda uma rede de apoio (ampliação e manutenção dos atendimentos e de saúde, SIR, no LA e nos projetos das escolas; assistência social, políticas públicas voltadas verdadeiramente para a educação pública e para estas Comunidades, entre muitos outros…) que realmente funcione.” A pressão do secretário é grande porque apropria-se dos Diretores das Escolas, mas nada garante que a luta dos professores por respeito as suas condições de trabalho irá diminuir.
Tudo isso acontece porque Brito tem um sonho: estabelecer na escola o modo de produção fordista, transformar o professor e os alunos quase em robôs, extorquir-lhe o máximo, sugá-los até a última gota, forma que vê para transformar a escola no espelho da fábrica. Cabe aos professores mostrar que este sonho é, em realidade, um pesadelo.
Jorge Barcellos é Historiador, Doutor em Educação, autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014), mantém a coluna Democracia e Política do Jornal O Estado de Direito
FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil
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