sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Quem sabe faz a hora, não espera receber



Por Frei Betto


                                                                                                                                                                              Greves ABC  1979 

        

O in­cons­ci­ente his­tó­rico bra­si­leiro é re­pleto de mitos. Como o bra­si­leiro “cor­dial”, su­jeito à in­ter­pre­tação equi­vo­cada do que as­si­nalou Sérgio Bu­arque de Hol­landa. Cor­dial sim, de cordis, co­ração, por agir mais mo­vido pelo co­ração do que pela razão. O que ex­plica o pa­ra­doxo de os de­fen­sores “da fa­mília” serem os mesmos que in­cen­tivam a ho­mo­fobia, a ex­clusão e os pre­con­ceitos. 
         
Alar­deia-se que somos um povo pa­cí­fico, no es­forço de fa­vo­recer o me­mo­ri­cídio que en­cobre as inú­meras re­voltas que marcam a his­tória do Brasil. Saiba a ver­dade his­tó­rica ao ler “Brasil: uma bi­o­grafia”, de Lilia M. Schwarcz e He­loísa M. Star­ling. 
         
O fra­casso da ten­ta­tiva de es­cra­vizar nossos in­dí­genas é atri­buído à be­ne­vo­lência dos por­tu­gueses. Padre Vi­eira as­sumiu-lhes a causa e não tran­sigiu em de­fesa deles. Pouco se con­si­dera a pró­pria re­sis­tência in­dí­gena, que se es­tende aos nossos dias.
         
A abo­lição ofi­cial da es­cra­va­tura, em 1888 (a úl­tima a ser de­cre­tada nas três Amé­ricas!), teria sido um pre­sente da ge­ne­rosa prin­cesa Isabel. Ora, basta um pouco mais de atenção à his­tória para cons­tatar como foi árdua a luta dos ne­gros es­cra­vi­zados, dos qui­lombos e das forças po­lí­ticas abo­li­ci­o­nistas que ou­saram se po­si­ci­onar contra o pe­lou­rinho.
         
A Re­pú­blica teria sido outra dá­diva dos mi­li­tares, assim como mais tarde Ge­túlio Vargas, pai dos po­bres e mãe dos ricos, teria nos dado a le­gis­lação tra­ba­lhista que al­for­riou o nosso ope­ra­riado do re­gime de se­mi­es­cra­vidão. Assim, si­len­ciam-se acir­radas lutas, desde a se­gunda me­tade do sé­culo 19, de anar­quistas, co­mu­nistas e sin­di­ca­listas.
         
A di­ta­dura mi­litar teria con­ce­dido aos idosos da zona rural a apo­sen­ta­doria com­pul­sória. E pouco se fala das dé­cadas de lutas pela re­forma agrária e do papel li­ber­tário das Ligas Cam­po­nesas.
         
Os go­vernos Lula te­riam im­plan­tado pro­gramas so­ciais, como o com­bate à fome, a de­mar­cação de terras in­dí­genas, os be­ne­fí­cios a idosos, es­tu­dantes, pes­soas por­ta­doras de de­fi­ci­ên­cias etc. 
      
Ora, o PT, fun­dado em 1980, re­sultou da con­fluência das Co­mu­ni­dades Ecle­siais de Base, do sin­di­ca­lismo com­ba­tivo e dos re­ma­nes­centes das es­querdas que en­fren­taram a di­ta­dura. Por­tanto, eleito pre­si­dente em 2002, Lula sim­bo­li­zava o re­sul­tado de pelo menos 40 anos de lutas po­pu­lares.
         
Na his­tória não há di­reitos re­ga­lados e sim con­quis­tados. O que pre­va­lece, en­tre­tanto, é a versão de quem está por cima. Versão que visa a en­co­brir a cru­el­dade da re­pressão, os crimes he­di­ondos das forças po­li­ciais e mi­li­tares, a chi­bata, o pau-de-arara, o choque elé­trico, as greves e mo­bi­li­za­ções, enfim, rios de sangue der­ra­mados para que, ao menos na letra da lei, fossem con­quis­tados di­reitos mí­nimos de ci­da­dania, agora ne­gados pelo go­verno gol­pista de Temer. A pro­pó­sito, quando serão abertos os ar­quivos da Guerra do Pa­ra­guai?
         
A versão do poder im­pregna o in­cons­ci­ente co­le­tivo e tende a imo­bi­lizar. So­bre­tudo quando o go­verno agarra o vi­o­lino com a mão es­querda e toca com a di­reita. As mo­bi­li­za­ções ar­re­fecem, em­bora a in­sa­tis­fação se am­plie. É o que ocorre hoje. Em nome do “podia ser pior”, se­tores pro­gres­sistas ficam a ver “a banda passar”. A banda podre da eco­nomia bra­si­leira as­fixia os po­bres com o ajuste fiscal, pre­serva os pri­vi­lé­gios da elite, e põe a culpa do zika vírus no mos­quito, sem ad­mitir que 50% da nação não dis­põem de sa­ne­a­mento bá­sico. 
         
Talvez uma par­cela con­si­de­rável da es­querda tenha de­sa­pa­re­cido, e eu ainda co­meta o erro de ter fé na sua exis­tência. Foi so­ter­rada sob os es­com­bros do Muro de Berlim, co­op­tada pelo ne­o­li­be­ra­lismo, ali­ciada por ali­anças pro­mís­cuas, des­mo­ra­li­zada pela cor­rupção. Quem sabe isso ex­plique por que há, nas redes di­gi­tais, tantos pro­testos, sem porém ne­nhuma pro­posta, ex­ceto a de Lam­pe­dusa, “mudar para que tudo fique como está”. 
         
O Brasil se pa­rece ao Ti­tanic. Em­bora à de­riva, muitos acre­ditam que ele apor­tará em solo firme em 2018. A or­questra do “vai me­lhorar” con­tinua a soar aos nossos ou­vidos, em­bora a água já nos atinja a cin­tura...
         
Duas li­ções aprendi em minha pas­sagem pelo Pla­nalto: o poder não muda nin­guém, faz com que a pessoa se re­vele. E go­verno é como feijão, só fun­ciona na pa­nela de pressão. Sem a mo­bi­li­zação dos mo­vi­mentos so­ciais, como no pas­sado fi­zeram os in­dí­genas, os es­cravos e os tra­ba­lha­dores, não ha­ve­remos de con­quistar di­reitos e am­pliar o es­paço de­mo­crá­tico. E isso exige algo raro hoje em dia: uma es­querda ca­pa­ci­tada na te­oria e en­ga­jada junto aos seg­mentos po­pu­lares na prá­tica.




Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")
Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

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