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Primeiro: "adocicar" Bolsonaro, por meio do ultraliberal Paulo Guedes. Segunda: colonizar uma das candidaturas à esquerda, "sugerindo" um ministro da Fazenda como Joaquim Levy |
Por Paulo Kliass *
À medida que a conjuntura evolui, passam a ficar mais claras as probabilidades para o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais. As pesquisas de intenção de voto começam a convergir para um quadro em que Jair Bolsonaro e Fernando Haddad poderiam despontar como os dois primeiros colocados na apuração do próximo dia 7 de outubro.
A recusa do sistema que se articula junto à cúpula do Poder Judiciário em rever as injustiças e ilegalidades presentes no processo contra Lula, fez com que Haddad fosse apresentado como o candidato oficial do PT e Manuela d’Ávila (PCdoB) fosse guindada à posição de vice. Por outro lado, o atentado cometido contra o candidato do PSL ajudou na incorporação da estratégia de sua vitimização, permitindo que o mesmo mantivesse a campanha nas redes sem ser obrigado a enfrentar suas dificuldades e contradições nos debates.
A aguardada transferência de votos de Lula para seu substituto começa a se manifestar nas pesquisas de intenção de voto, fazendo com que a posição da chapa Haddad/Manuela passe a ser mais conhecida e indicada pela população. A rejeição elevada de Temer e o desastre do austericídio tornam ainda mais difícil a vida de Meirelles e Alckmin, favorecendo a migração de votos anti-petistas de forma antecipada já para Bolsonaro. A tendência é que essa polarização se consolide. Ciro e Marina dificilmente conseguirão fôlego para entrarem nesse jogo mais pesado.
O risco da perpetuação do golpe
No entanto, é importante perceber que a realização das próprias eleições parece não mais garantir a continuidade do processo democrático e institucional. Uma série de declarações e manifestações recentes de integrantes do alto escalão das Forças Armadas têm vocalizado o interesse e o desespero de setores do empresariado e do financismo. Frente à incapacidade dos candidatos mais afinados com a herança do golpeachment em conquistar a simpatia do eleitorado, a estratégia agora vai para a linha de fortalecer um suposto voto útil antecipado da direita, agora já no primeiro turno.
Ocorre que é bastante elevado o índice de rejeição de Bolsonaro e isso deve contribuir para que sua performance no segundo turno do pleito seja ainda mais difícil. Com isso, começa a se difundir a alternativa de perpetuação do golpe: qualquer resultado que não assegure a vitória de deputado-capitão será considerado como usurpação da vontade popular.
Essa tentativa de edulcorar o defensor da tortura, da pena de morte e da cultura do estupro não é tão recente como parece. Na verdade, começou a tomar forma há muito tempo, com a insatisfação de parcela da classe média mais radicalizada, que sempre se abrigou no discurso beligerante e intolerante que o tucanato praticou nesses anos todos de oposição no plano federal. Há poucos meses, a indicação do conservador Paulo Guedes para responder por seu programa econômico foi um passo importante nessa estratégia. Setores dos meios de comunicação começaram a divulgar uma imagem mais palatável daquele que faz apologia da violência, da homofobia e que se posicionava contra a privatização de empresas estatais até pouco atrás.
A tentativa de maquiagem de Bolsonaro
Com intuito de evitar declarações contraditórias e que o afastassem ainda mais da elite do financismo, Bolsonaro delegou ao seu liberal radical a função de responder às questões mais embaraçosas no domínio da economia. Uma das maiores revistas semanais de (des)informação chegou a postar em sua capa a foto do economista íntimo dos círculos do financismo, com a legenda de “Presidente do Brasil”. O recado era bastante claro, ao sugerir o voto útil no militar reformado. Uma espécie de reconfortante de consciência para os financistas mais recalcitrantes em aderir a essa aventura da barbárie contra os elementos básicos da civilização. Como se os editores dissessem: “Podem votar sem preocupação no Bolsonaro, pois o governante de fato será nosso companheiro Paulo Guedes”.
No outro front, os formadores de opinião do establishment abrem sua artilharia pesada contra qualquer tentativa de romper com a política de ajuste conservador, baseado no austericídio, nas reformas redutoras de direitos e no avanço da destruição do Estado. Para tanto, buscam encapsular e capturar a candidatura de Fernando Haddad para seu campo de atuação. Afinal, o ex ministro de Lula nunca escondeu suas tendências em direção a uma espécie de um confuso social-liberalismo tupiniquim. Não nos esqueçamos de que, no início do ano passado, o professor trocou a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP por uma instituição escancaradamente vinculada ao mercado financeiro – o INSPER. Isso dá bem a medida de sua indefinição em termos de uma vocação intelectual e ideológica.
Os operadores da banca tendem a ser muito pragmáticos em sua estratégia e o que eles querem mesmo é saber de compromissos com suas postulações. Não é por outro motivo que aqui e ali são lançados balões de ensaio para aferir a disposição de Haddad em aderir a esse projeto continuísta. Criam situações de embaraço e constrangimento para o candidato, pressionando pela manutenção da essência da política econômica em vigor, iniciada ainda por Joaquim Levy sob Dilma e levada cabo por Meirelles e Goldfajn.
Escapar da pressão do financismo
Esse é outro dos riscos envolvidos no processo eleitoral. No momento atual não há mais espaço econômico nem fiscal para que seja repetida a tática adotada por Lula durante seus dois mandatos. Acabou-se a bonança na esfera internacional e o “boom” das commodities não oferece mais a alternativa do jogo ganha-ganha, onde todos os setores eram beneficiados pela política econômica. Os grandes conglomerados do capital nacional e internacional ganharam muito dinheiro no período. Os bancos e demais instituições financeiras também nunca obtiveram tantos lucros. E ainda sobraram recursos para fazer políticas sociais importantes, que contribuíram de forma significativa para a redução das desigualdades e para promover inclusão social.
Agora o momento é outro. O cenário internacional não é lá tão favorável. O austericídio jogou o Brasil na maior recessão de sua História. Os desempregados estão na casa dos 13 milhões. Os números de falências de empresas são impressionantes. O desastre da crise trouxe a fome e a miséria para o cotidiano de nossa sociedade. A carência fiscal provocada pela queda da atividade econômica aponta para um novo ano de dificuldades para as contas públicas: 2019 deve apresentar um déficit superior a R$ 140 bilhões.
Em situações como essa, a máxima de que “governar é realizar escolhas e estabelecer prioridades” vale em toda a sua plenitude. O financismo já tem pronta e definida a sua pauta, nossa velha conhecida. Isso significa nada mudar em relação aos estragos que Temer & Meirelles já realizaram. A lista é longa: i) manter o tripé da política econômica; ii) preservar a busca desenfreada pelo superávit primário; iii) manter intocáveis os ganhos do setor financeiro associados às despesas com juros no Orçamento; iv) dar continuidade à política de concessões e privatizações; v) aprofundar a entrega do Pré Sal às multinacionais do setor petroleiro; vi) manter a EC 95, que congela as despesas públicas por longos 20 anos; vii) manter as deformações e maldades da mudança da CLT; viii) dar seguimento à Reforma Previdenciária redutora de direitos encaminhada por Temer & Meirelles ao Congresso Nacional; ix) autorizar a venda da Embraer à Boeing; entre tantos outros pontos advindos do lado sombrio da força.
O dilema de Haddad: semi-continuidade ou mudança de fato?
Nessas condições, resta imaginar como deverá se comportar um eventual governo Haddad. Para além das declarações ao longo do debate eleitoral, deve ser objeto de preocupação e controle por parte das forças progressistas como se pautará sua relação com o establishment financeiro. O perfil das nomeações para Ministério da Fazenda e Banco Central serão sinalizações importantes nesse sentido. Ao votar contra Bolsonaro, general Mourão e Paulo Guedes, a população estará sinalizando o desejo expresso de abandono da pauta golpista da austeridade e do desmonte do Estado. Haddad não pode se submeter a esse tipo de chantagem do povo das finanças, sob pena de cair mais um vez no canto de sereia do servilismo e do bom mocismo. A experiência catastrófica do estelionato cometido por Dilma em 2015 ainda está bem fresco em nossas memórias.
Felizmente, o debate eleitoral já proporcionou a criação de alguns consensos importantes. Por exemplo, a convergência em torno da promoção de um referendo revogatório contra a emenda constitucional do congelamento. A necessidade de desfazer o mito do superávit primário e não conceder tratamento privilegiado às despesas de natureza financeira. A urgência em retomar o protagonismo do setor público como motor da retomada do crescimento e desenvolvimento econômicos. A compreensão de que, em um primeiro momento, o Estado deverá mesmo aumentar seus gastos e que isso retornará aos cofres públicos nas etapas seguintes, quando houver a retomada das atividades e aumento da capacidade de arrecadação tributária.
Por outro lado, isso significa também desfazer um conjunto de malfeitos perpetrados desde meados de 2016. Trata-se de anular os monstrengos criados pela extinção/fusão de Ministérios como Trabalho + Previdência; Ciência Tecnologia e Inovação + Comunicações; retirada de Comércio Exterior e BNDES da estrutura do MDIC; Desenvolvimento Agrário + Desenvolvimento Social; Secretarias de Direitos Humanos, Mulheres e Igualdade Racial. Ou seja, trata-se de restabelecer os instrumentos do aparelho governamental para implementar as necessárias políticas sociais.
Enfim, o cenário está montado. Falta apenas a coragem política para enfrentar as dificuldades e confiar na capacidade da população em apoiar o novo governo nas medidas que deverão impor sacrifícios também ao chamado andar de cima. As elites sempre foram deixadas à margem de qualquer contribuição econômica para tirar o País de seus momentos mais difíceis. 2019 poderá vir a ser o ano da mudança. Ou então tudo continuará como dantes.
* Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal