terça-feira, 27 de novembro de 2018

Universidades vivem clima de denuncismo e temem repressão em sala de aula







Por Renata Cafardo – Essas são algumas das histórias que o Estado ouviu na última semana. Universidades públicas e privadas do País vivem um clima de denuncismo e medo. A reportagem conversou com dezenas de alunos e professores de instituições de vários Estados e constatou o receio da perda da liberdade nos ambientes acadêmicos.

Interferências autorizadas por juízes em universidades na semana anterior à do segundo turno das eleições tornou maior a tensão. Trata-se do reflexo a um dos momentos políticos mais polarizados da história do País. Outro motivo de apreensão para docentes e estudantes é a iminência da aprovação do projeto conhecido como Escola sem Partido, defendido pelo presidente eleito.

“A afronta à autonomia universitária e à liberdade de cátedra não acontece só pela intervenção do Estado ou poder político, como na ditadura militar”, diz o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Floriano de Azevedo Marques Neto. “Isso pode acontecer por meio de grupos que queiram impedir aulas, por exemplo, seja de direita ou esquerda”.

Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) uma lista com cerca de 15 nomes circulou na semana passada, intitulada “Doutrinadores e alunos que serão banidos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas”. Cada professor ou estudante era identificado com insultos específicos, como “comunista antidemocrático”, “socialista que faz apologia do uso de drogas”, “viado” e “feminazi”.

Na mesma instituição, o professor de Filosofia Rodrigo Jungmann, de 52 anos, teve cartazes no estilo “procura-se” pendurado pelo câmpus. “Eles me chamam de fascista e têm a fantasia de que eu quero ser reitor e privatizar a universidade”, disse. “Declarei meu voto ao Bolsonaro, mas nunca fiz campanha nas minhas aulas”. Jungmann chegou a ser impedido de sair da cantina e dar aulas porque alunos o cercaram com ofensas e ameaças de agressão.

A guarda universitária teve de escoltá-lo até em casa. A instituição divulgou nota repudiando o comportamento de ambos os lados e disse que vai comunicar os fatos ao Ministério Público e àPolícia Federal.

“Está muito difícil dar aulas, há pressão para que a gente não fale as coisas que pensa e passamos a ter medo dos alunos”, afirma um professor da Belas Artes, centro universitário particular com cursos de comunicação, artes e arquitetura. Ele não quer ter o nome divulgado por medo de represália. Segundo docentes, a reitoria da instituição declarou apoio ao projeto Escola sem Partido e pediu que não sejam feitos comentários sobre política.

Em texto no site da instituição, o reitor e proprietário da Belas Artes, Paulo Cardim, diz que “é público e notório” e “com crescimento considerável durante o governo petista”, que professores “usam a sala de aula como palanque para as suas pregações ideológicas”. O pró-reitor acadêmico Sydnei Leitediz que a posição do reitor é pessoal e não reflete o que ocorre na faculdade. “Muito pelo contrário, a recomendação é puxar a corda, levar os autores, os pensadores, queremos que os alunos tenham dúvidas.”

O polêmico projeto Escola sem Partido está em discussão em uma comissão especial da Câmara e sua votação vem sendo adiada. Em resumo, ele proíbe que atividades usem os termos gênero ou orientação sexual e que professores digam suas opiniões, preferências ideológicas, religiosas, morais e políticas. O texto afirma ainda que “o poder público não se imiscuirá (intrometerá) no processo de amadurecimento sexual dos alunos”. Se virar lei, as salas de aula do ensino básico ao superior terão cartazes com os deveres do docente.

“Me preocupa dizer que universidade não é lugar de discutir política, se não, vamos discutir aonde?”, diz o diretor do Direito da USP. Para ele, é muito difícil definir o que seria um conteúdo aceitável, segundo a lei. “A ideia do conhecimento neutro já foi demonstrada como falsa. O melhor antídoto para o conhecimento direcionado é a pluralidade.”

O reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Knobel, também se diz “completamente contrário” ao projeto. “Não é possível consolidar as bases de um ambiente acadêmico eficiente sem a garantia do livre debate de ideias, que garantem a todos o direito de assumir e externar livremente suas convicções.”

Redes sociais

Em uma universidade federal do Sudeste, professores que pediram para não serem identificados contam que os conflitos se intensificaram nas redes sociais. Estudantes fotografam a lousa em aulas das quais discordam do conteúdo e divulgam em grupos de WhatsApp, com acusações. Deixam também mensagens no Facebook de professores avisando que farão denúncias caso a “doutrinação” e a “idolatria a anticristãos” continuem. “Nosso temor é que alunos se sintam bem mais à vontade para expressar opiniões preconceituosas”, diz uma docente.

“Meu medo é que não fique só na ameaça”, diz a professora de Biologia do Norte do País cujo aluno afirmou que lhe daria um tiro. Dias antes, houve um debate na turma sobre biodiversidade na Amazônia e a docente chamou a atenção para os planos de governo dos candidatos sobre o assunto. “Mas ele não se manifestou nesse dia. Depois, quando recebeu a prova, me ameaçou e falou de Bolsonaro.”

“Algumas manifestações correspondem um pouco ao que se fazia antes”, diz o sociólogo e professor da USP  Brasilio Sallum, referindo-se ao período da Ditadura Militar. Sallum era aluno da instituição quando colegas foram presos e 24 professores foram compulsoriamente aposentados, em 1969. A decisão partiu do comando militar após o Ato Institucional Nº 5, que suspendeu garantias constitucionais e foi assinado por um ex-professor da USP, o então ministro da Justiça, Luiz Antônio da Gama e Silva.

Entre os colegas cassados, estavam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o sociólogo Florestan Fernandes e o próprio então reitor da USP, Helio Lourenço, que havia reclamado da medida. “Há temores, um clima de suspeita de que coisas arbitrárias virão, mas acho difícil. As estruturas estão muito consolidadas na universidade.”

Pesquisadores de gênero temem boicote de verbas

Professores e pesquisadores de áreas como gênero e sexualidade se preocupam com a diminuição de verbas para pesquisas. Agências federais são as grandes financiadoras da Ciência no País. “O que nos assusta é a falta de conhecimento básico, reduzir gênero a uma ideologia simplista. Pesquisamos situações de mulheres na sociedade, sexualidade, bullying”, diz a professora de uma universidade pública do Rio, que pediu anonimato.

Os estudos de gênero existem desde a década de 70, são reconhecidos como uma área importante da sociologia e têm crescido. Segundo outra pesquisadora, falar de gênero na escola significa ensinar as crianças a identificar uma violência sexual e respeitar umas as outras a despeito da diversidade. “Não se combate a pedofilia jogando a discussão sobre sexualidade para debaixo do tapete”, diz.

Há ainda temores de menos verbas para Humanas em geral e para a ciência básica. “O governo eleito parece querer favorecer a pesquisa aplicada, que dê mais resultado”, diz um aluno de doutorado em astronomia.


https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Universidades-vivem-clima-de-denuncismo-e-temem-repressao-em-sala-de-aula/54/42369



Fonte: Controversia

terça-feira, 13 de novembro de 2018

“Merlí”, Filosofia e reformas educacionais



Em série espanhola, professor irreverente interfere nos dramas dos alunos com
conceitos filosóficos - enquanto apresenta Aristóteles, Deleuze, Hobbes e muitos
outros. Como o ensino brasileiro poderia aprender com ele? 

Por Milena Buarque (*)


Um professor propõe a estudantes que reflitam sobre a disciplina enquanto caminham pela cozinha, elege como pupilo o aluno que nada anota em classe e para falar sobre a matéria do dia picha o tema da aula na parede da escola. Merlí Bergeron (Francesc Orella) é professor de filosofia, protagonista de uma série catalã homônima e tem muito a dizer em tempos de reformas educacionais.

Com a primeira temporada de 13 episódios disponível na Netflix, “Merlí”, do diretor Héctor Lozano, conta a história de um professor de uma escola pública que procura investir em métodos pouco ortodoxos para motivar e incentivar os questionamentos de seus alunos. No meio do caminho, Merlí se vê em conflitos com pais e com os próprios funcionários do Instituto Àngel Guimerà.

Tida como uma das séries de maior audiência do canal TV3 (Televisió de Catalunya) – estreou em 2015 no horário nobre –, “Merlí” é daquelas peças disponíveis no catálogo da Netflix (desde dezembro do ano passado) que, se não dispõe da mesma popularidade das grandes produções do serviço de streaming, certamente merece mais atenção.

A vã filosofia

A série não trata apenas de relacionar os arquétipos da adolescência com linhas e pensamentos da filosofia. A estrutura montada para que cada episódio aborde uma escola filosófica ou um pensador, como Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Thomas Hobbes, para citar alguns, acaba servindo não só de fio condutor para os acontecimentos da trama como também aproximando o público de temas ligados ao universo da filosofia.

No primeiro episódio, Merlí batiza seus alunos de “os peripatéticos”, como ficaram conhecidos os membros da escola de discípulos do grego Aristóteles, que “passeavam” e aprendiam ao ar livre.

Os dramas pessoais dos alunos retratados na série ganham no debate quando colocados à luz dos conceitos de alguns filósofos. É o que acontece no episódio dedicado ao francês Guy Debord e à exposição de um vídeo íntimo de uma das estudantes da classe. Merlí traz para a aula a ideia de “sociedade do espetáculo” e do acúmulo de imagens. Ou então na segunda temporada (ainda não disponível na Netflix) quando para falar sobre a nova professora trans que chega ao colégio acrescenta ao conteúdo programático (nunca seguido por ele, aliás) a contemporânea Judith Butler e suas ideias sobre construção cultural de gênero.

A série facilita essas conexões ao criar um professor que dialoga intensamente com os dramas dos alunos. Apesar de o comportamento gerar controvérsia, são inegáveis os impactos positivos das atitudes de Merlí, que ultrapassam as fronteiras da sala de aula: com o mito da caverna de Platão e muita cautela, o professor consegue fazer com que o aluno Ivan vença a agorafobia (o medo de estar em espaços abertos) e retorne ao ambiente escolar. Ou seja, a filosofia deixa de ser uma mera disciplina e torna-se ferramenta de transformação social.

A premissa do professor-amigo, no entanto, não é exatamente o que dá originalidade à série. Filmes como “Sociedade dos Poetas Mortos”, de Peter Weir, estão aí desde a década de 1990. A tematização de episódios com produções literárias – guardadas as devidas e evidentes diferenças – também já foi arriscada por séries competentes, como a brasileira “Tudo o que é sólido pode derreter” (2009), de Rafael Gomes e Esmir Filho.

O potencial de “Merlí” está na transgressão de todos os arquétipos (as tais das “imagens primordiais”) da adolescência apresentados logo no primeiro episódio (para citar só alguns: a aluna rebelde, o CDF, o garoto-problema) e na complexificação da trama por meio da filosofia. O próprio professor, por exemplo, tem o dissabor de fazer parte da dinâmica: sua inteligência, o desprezo pelas regras e a heterodoxia revelam, em diversas situações, um egocentrismo e um senso de autoimportância nocivo às relações pessoais. No episódio dedicado à Butler, Merlí exagera na tentativa de tornar a escola receptiva à nova colega trans. No dedicado à Kant, ele se vê confrontado por seu hábito de mentir. O líder inspirador, assim como os demais personagens, gera amor e ódio, fugindo do maniqueísmo e mostrando que todos nós circulamos constantemente entre o orgulho e a generosidade.

De(re)formas?

A série passa longe da arrogância e do academicismo na tentativa de mostrar a importância da filosofia – na vida e como disciplina em sala de aula. No decorrer do ano, os peripatéticos reveem o modo cruel como trataram Ivan, a forma como lidam diariamente uns com os outros e quais caminhos tomam para a compreensão de suas próprias responsabilidades.

Como uma boa ferramenta para investigar nossos mecanismos internos e externos, a filosofia ressignifica o papel do professor em sala de aula, o lugar dos estudantes e a relação deles com o colégio (episódios que abordam a questão do poder e da autoridade, como os dedicados a Michel Foucault e Hobbes, dão conta disso).

Em tempos de debates sobre reformas educacionais que repensem as diferentes etapas do ensino formal, como a do Ensino Médio brasileiro (aprovada em fevereiro deste ano), a série “Merlí” pode dar a sua contribuição. A medida provisória que instituiu o texto do projeto causou polêmica ao eliminar do quadro de conteúdos obrigatórios disciplinas como sociologia e filosofia.

Não há como saber se os peripatéticos da série sustentavam aquele tacanho pensamento juvenil (uma espécie de verdade oculta dos alunos em alguns colégios) de que “filosofia não reprova” antes de se tornarem os discípulos de Bergeron. E, na verdade, este é o fator menos relevante. O que o professor Merlí consegue com indiscutível êxito é despertar o interesse de todos – até de quem o assiste de casa – para as possibilidades da filosofia.

O que será que ele nos diria para convencer de sua importância nos currículos do ensino médio?



(*) Milena Buarque

Jornalista na Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), Milena é blogueira, atriz e apaixonada por artes. Já passou pela Editora Abril e já trabalhou como editora voluntária da Cruz Vermelha Brasileira. Paulistana, formada em jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pedestrianista. Também escreve para o site HuffPost Brasil e é especialista em Estudos Brasileiros - Ciências Sociais na Fundação Escola de Sociologia e Política


sábado, 3 de novembro de 2018

Uma feminista propõe repensar a esquerda






Diante do crescimento do populismo de direita em todo o mundo, Nancy Fraser sustenta: há revolta positiva no ar; é preciso dar-lhe sentido


Entrevista a Shray Mehta | Tradução: Inês Castilho


Quando emergem na cena política personagens como Jair Bolsonaro, parte da esquerda tende a uma atitude defensiva. Em face de um perigo corretamente associado ao fascismo e à violência, seria o caso de preservar a normalidade do sistema institucional, e mesmo de convocar alianças em seu favor. A repercussão que o discurso de ódio encontra entre parcelas amplas da sociedade indicaria que é hora de refrear o passo, até que a onda regressiva se esvazie.

Associada a um marxismo heterodoxo, a filósofa e feminista norte-americana Nancy Fraser julga que esta atitude não afastará o perigo — e pode, ao contrário, torná-lo maior. Uma visão particular sobre o chamado “populismo de direita” a faz  pensar assim. As maiorias, crê Fraser, têm boas razões para se revoltar contra a ordem. Ao longo das três últimas décadas, elas foram castigadas, na maior parte dos países, pelo desmonte dos direitos sociais. Em muitos casos, partidos associados à esquerda envolveram-se ativamente neste processo (no Brasil, vale lembrar a adesão do segundo governo Dilma ao “ajuste fiscal” proposto pela direita). Agora, há raiva e rancor. Enxergar os que nutrem estes sentimentos como “fascistas” só agravará o cenário.

O feminismo é, para Fraser, uma chave para encontrar outro tipo de resposta. A crise global da esquerda está associada à transição do capitalismo industrial ao financeirizado — e, portanto, à ineficácia das antigas estratégias de resistência, que se baseavam na ação dos trabalhadores organizados. Agora, o centro de geração de valor e acumulação de riqueza do próprio sistema deslocou-se: já não é a fábrica, mas a produção imaterial, que se espraia por toda a sociedade. Não bastaria isso para enxergar a relevância (e a potência transformadora) de formas de trabalho não-reconhecidas e não-remuneradas, secularmente associdas às mulheres?

Como fazê-lo? Na entrevista a seguir, concedida em março deste ano ao jornalista indiano Shray Mehta, Fraser oferece algumas pistas. “O que necessitamos”, diz “é o que André Gorz chamou de ‘reformas não-reformistas’. Elas melhoram a vida das pessoas aqui e agora, enquanto trabalham também numa direção contrassistêmica, em parte por desestabilizar o equilíbrio do poder de classe em detrimento do capital”. Porém, estas reformas, prossegue a filósofa, “não podem estar focadas exclusivamente na produção e trabalho remunerado. Precisam, igualmente, tratar da organização social da reprodução – a oferta de educação, moradia, saúde, cuidado das crianças, cuidado dos idosos, meio ambiente saudável, água, serviços, transporte, emissões de carbono – e o trabalho não remunerado que sustenta as famílias e os laços sociais mais amplos”.

Esta estratégia dá resultados concretos, mostra Fraser. A Inglaterra é o exemplo eloquente. Lá, boa parte dos votos de rancor dados ao Brexit, há dois anos, tem sido recuperada por Jeremy Corbyn, líder rebelde do Partido Trabalhista, que propõe precisamente um programa radical de recuperação e ampliação dos serviços públicos. Foi esta postura, aliás, que desarmou o partido xenófobo (UKIP) — líder do voto contra a União Europeia, mas hoje esvaziado e dividido.

E no Brasil: qual o melhor antídoto contra os Bolsonaro e os Alckmin? A equação de Fraser sugere que talvez não seja uma esquerda defensora da ordem — mas, ao contrário, capaz de desafiá-la por meio de medidas distributivas e antissistêmicas bem mais profundas que as praticadas pelo lulismo, em sua primeira experiência de governo. Fique, a seguir, com as ideias da filósofa (A.M.)



Muito obrigado pela oportunidade desta conversa. O mundo está assistindo a uma aumento alarmante de líderes populistas e o padrão parece repetir-se com frequência em todo o espectro político, não restrito apenas ao Norte ou ao Sul globais. Como se pode contextualizar essa expansão do populismo como um momento histórico mundial? Ele teria uma dinâmica sistêmica que vai além das nações e está localizado na economia internacional e crise do capitalismo?

O populismo está situado numa dinâmica histórica mundial. Ele sinaliza uma crise hegemônica do capitalismo – ou melhor, uma crise hegemônica de uma forma específica de capitalismo que temos hoje: globalizado, neoliberal e financeirizado. Esse regime suplantou a variedade anterior, do capitalismo gerido pelo Estado, e dizimou todos os ganhos que as classes trabalhadoras haviam conquistado no período prévio. O populismo é, em grande medida, uma revolta dessas classes contra o capitalismo financeiro e as forças políticas que o impõem. Para entender a revolta, é preciso entender o bloco hegemônico anterior que está sendo rejeitado. Eu chamei esse bloco de “neoliberalismo progressista”. Como formação dominante, o neoliberalismo progressista estava centrado nos Estados mais poderosos do Norte global, mas tinha também postos avançados em outros lugares. Exemplos incluem o “Novo Trabalhismo” de Tony Blair, na Inglaterra, o “novo” Partido Democrático de Bill Clinton, nos EUA, o Partido Socialista na França, e os últimos governos do Partido do Congresso, da Índia.

O que é específico do “neoliberalismo progressista” é que ele combina políticas econômicas regressivas, liberalizantes, com políticas de reconhecimento aparentemente progressistas. Sua economia política baseia-se em “livre comércio” (que em realidade significa livre movimentação do capital) e desregulamentação das finanças (que empodera investidores, bancos centrais e instituições financeiras globais para ditar políticas de “austeridade” para o Estado por meio de decretos e da chantagem da dívida). Entretanto, seu lado de reconhecimento centra-se na compreensão liberal do multiculturalismo, do ambientalismo e dos direitos das mulheres e LGBTQ [lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer]. Inteiramente compatível com o neoliberalismo financeiro, essa compreensão é meritocrática, oposta ao igualitarismo. Focados na “discriminação”, eles buscam assegurar-se de que uns poucos indivíduos “talentosos” de “grupos sub-representados” possam ascender ao topo da hierarquia corporativa e alcançar posições e remuneração paritárias com os homens heterossexuais brancos de sua própria classe.

O que não é mencionado, contudo, é que enquanto esses poucos “quebram o teto de vidro”, todo o resto continua preso no porão. De fato, o neoliberalismo progressista articulou uma política econômica regressiva com uma aparente política progressista de reconhecimento. O lado progressista de reconhecimento serviu como um álibi ao lado econômico regressivo. Isso possibilitou ao neoliberalismo apresentar-se como cosmopolita, emancipatório, inovador e moralmente avançado – em contraste com as classes trabalhadoras aparentemente paroquiais, atrasadas e incultas.

O neoliberalismo progressista foi hegemônico por umas duas décadas. Encabeçando vastos aumentos da desigualdade, foi uma grande bonança para o 1% global, mas também para o estrato gerencial profissional. Foram atropeladas as classes trabalhadoras do norte, que haviam se beneficiado da social democracia; os camponeses do sul, que sofreram desapropriação renovada por dívida, em escala maciça; e um vasto precariado urbano no mundo inteiro. O que se vem denominando populismo é uma revolta desses estratos contra o neoliberalismo progressista. Ao votar em Trump, no Brexit, em Modi (Índia) e no Movimento Cinco Estrelas na Itália, as maiorias declararam que se recusam a continuar desempenhando o papel que lhes foi atribuído, de cordeiros de sacrifício, num regime que não tem nada a lhes oferecer.

Os movimentos populistas são frequentemente apresentados como “fascistas”, assim que começam a articular suas demandas. Contudo, quando vistos como uma articulação das preocupações populares contra a apatia sistêmica, surge um cenário mais complexo. Por exemplo, a ascensão de Trump está baseada até certo ponto no apoio de uma base eleitoral que é apressadamente descartada como “homens brancos racistas”, embora possam ter votado em Obama nas duas últimas eleições. Num outro contexto, na Índia, a ascensão do nacionalismo hindu é taxada de fascista sem vê-la na perspectiva histórica, de reação às políticas neoliberais dos governos anteriores, do Partido do Congresso. Como perceber essa rejeição completa das preocupações populares no discurso público, por um lado, e a rotulagem da reação popular como fascista?

Concordo com sua visão nesse assunto. O liberalismo tem uma longa história de tentar deslegitimar a oposição a ele – estigmatizando seus opositores como, por exemplo, “stalinistas”, “fascistas”, o que seja. Isso é certamente o que está acontecendo agora com relação ao termo “populismo”. Essa palavra é hoje amplamente usada pelos liberais para desqualificar como ilegítimas as forças populares que estão se rebelando contra seu domínio. Mas você está certo, é uma tática defensiva por parte dos defensores do “neoliberalismo progressista”. Ao estigmatizar a oposição, eles esperam ressuscitar seu projeto. Nos Estados Unidos, estão procurando desesperadamente um novo líder, com mais apelo que Hillary Clinton, sob o qual possam restaurar uma nova versão do neoliberalismo progressista. Essa é a agenda de uma grande parcela da “resistência” anti-Trump. Não conheço o suficiente da política indiana para ter certeza, mas imagino que o Partido do Congresso está usando tática semelhante na esperança de retomar o poder.

Eu certamente jamais endossaria Trump ou Modi [o presidente da Índia] – isso é óbvio. Todavia, não estou infeliz com o fato de que quem foi massacrado pelo “neoliberalismo progressista” levante-se contra ele. Em alguns casos, é claro, a forma que esta rebelião assume é problemática. As populações frequentemente equivocam-se quanto à verdadeira causa de seus problemas, e fazem de bode expiatório os imigrantes, muçulmanos, negros, judeus e outros. Mas é contraprodutivo simplesmente desqualificá-los como racistas e islamofóbicos irredimíveis. É tolo assumir, de saída, que não há qualquer possibilidade de ganhá-los para a esquerda, seja para o populismo de esquerda ou para o socialismo democrático.

Além disso, a ideia de que todos esses eleitores não passam de racistas de carteirinha não bate com os dados. Nos EUA, como você disse, 8,5 milhões de pessoas que votaram para Obama em 2012 mudaram de posição e votaram em Trump em 2016. Muitos deles eram pessoas da classe trabalhadora em comunidades do “cinturão de ferrugem”, que sofreram maciçamente com a desindustrialização, precarização e uma grande epidemia de adição a opiáceos, orquestrada pela indústria farmacêutica. Foram eles que entregaram a presidência para Trump. Em ambas as eleições, 2012 e 2016, votaram contra a economia neoliberal – primeiro para Obama, que fez campanha à esquerda, adotando a retórica do “Ocuppy Wall Street”, e depois para Trump, cuja campanha baseou-se não somente no reconhecimento excludente, mas também na economia populista. O que isso mostra é que as questões identitárias não estavam, na mente desses eleitores, acima de tudo. Nessas questões, eles foram bastante volúveis, agindo de diferentes maneiras, conforme as opções oferecidas. Ao contrário, foram consistentes na rejeição da terceirização, “livre comércio” e financeirização; no apoio à proteção social, pleno emprego e salários dignos. O mesmo é verdade, aliás, no Reino Unido. Muita gente da classe trabalhadora do norte da Inglaterra que votou a favor do Brexit apoia agora, fortemente, Jeremy Corbyn. Na França também, houve grande troca de votos, de um lado pro outro, entre a Frente Nacional [de ultra-direita] e o candidato de esquerda, Jean-Luc Mélenchon.

Meu ponto é que todos esses eleitores (e outros!) têm queixas legítimas contra o neoliberalismo progressista. Ao invés de desqualificá-los como racistas, a esquerda deve validar suas críticas. Ao invés de assumir que eles não têm jeito, devemos partir da premissa de que muitos eleitores populistas à direita podem ser, em princípio, conquistados pela esquerda. Precisamos atraí-los, validando suas queixas e oferecendo-lhes uma análise alternativa da verdadeira causa de seus problemas e uma proposta alternativa para resolvê-los.

Sobre oferecer uma explicação e uma visão alternativas, não é a primeira vez que ocorre essa troca de eleitores entre a esquerda e a direita. Sabemos que há precedentes históricos. A direita é capaz de estabelecer nexos casuais entre os problemas sistêmicos e grupos sociais tais como judeus, muçulmanos ou imigrantes, para sugerir que transformá-los em alvos pode resolver os problemas de emprego – isso tem apelo para as pessoas. Ainda que a esquerda tente intervir, a visão alternativa parece muito utópica para as pessoas. Você sente que ainda há uma lacuna crucial, na esquerda, com relação a isso?

Sim, eu concordo. Há com certeza uma lacuna programática na esquerda. Isso se deve em parte ao fim do comunismo soviético, que teve o infeliz efeito de deslegitimar não apenas aquele regime esclerosado, mas também ideias de socialismo e igualitarismo social em geral. A atmosfera resultante beneficiou grandemente os neoliberais, enquanto intimidava e desmoralizava a esquerda.

Mas isso não é toda a história. Nesse clima, uma parte significativa do que poderia ter sido uma opinião à esquerda foi direcionada para o liberalismo. Pense por exemplo no feminismo liberal, no anti-racismo liberal, no multiculturalismo liberal, no “capitalismo verde” etc. Essas são as correntes dominantes, hoje, de parte dos novos movimentos sociais, cujas origens foram, se não diretamente à esquerda, ao menos esquerdizantes ou proto-esquerdistas. Hoje, porém, falta-lhes até mesmo a mais pálida ideia de uma transformação estrutural ou uma economia política alternativa. Longe de buscar a abolição da hierarquia social, sua mentalidade está voltada a atrair mais mulheres, gays e não-brancos para os altos escalões. Certamente, nos EUA mas também em outros países, a esquerda foi colonizada pelo liberalismo.

A meu ver, o melhor caminho para reconstruir a esquerda é ressuscitar a velha ideia de um “programa socialista de transição” e dar a ele um novo conteúdo, apropriado ao século 21. Hoje, não podemos começar dizendo às pessoas que vamos socializar os meios de produção e em seguida elas terão empregos seguros e bem pagos. Essa retórica está vencida. O que necessitamos, ao contrário, é o que André Gorz chamou de “reformas não-reformistas”. Elas melhoram a vida das pessoas aqui e agora, enquanto trabalham também numa direção contrassistêmica, em parte por desestabilizar o equilíbrio do poder de classe em detrimento do capital. Além disso, essas reformas não podem estar focadas exclusivamente na produção e trabalho remunerado. Elas precisam, igualmente, tratar da organização social da reprodução – a oferta de educação, moradia, saúde, cuidado das crianças, cuidado dos idosos, meio ambiente saudável, água, serviços, transporte, emissões de carbono – e o trabalho não remunerado que sustenta as famílias e os laços sociais mais amplos.

Embora longe da perfeição, a campanha de Bernie Sanders nos EUA teve algumas ideias que apontavam nessa direção. Acima e além do aumento do salário mínimo para 15 dólares a hora, Sanders fez campanha pelo “Medicare para todos”, ensino universitário gratuito, reforma da justiça criminal, liberdade reprodutiva e a quebra dos grandes bancos – tudo isso ligado ao emprego. Suas ideias não foram inteiramente desenvolvidas, é certo. E elas são possivelmente mais social democratas do que democráticas socialistas. Mas representam a primeira inspiração de uma alternativa populista à esquerda, nos EUA.

A esquerda precisa também pensar sobre finanças e bancos. Um dos pesadores mais interessantes nesse assunto é Robin Blackburn, que defende que as finanças deveriam tornar-se um bem público, como costumava ser a eletricidade — o que significa que devia pertencer a todos e ser alocada publicamente. Decisões sobre crédito, onde investir e quais projetos financiar deveriam ser tomadas com base não na taxa de retorno, mas no valor e utilidade social. E deveriam ser tomadas democraticamente – por meio de conselhos eleitos, encarregados de representar as comunidades e outras partes interessadas. Essa é uma ideia muito interessante, porque precisamos, é claro, de um sistema de crédito. Abolir os bancos e instituições financeiras globais não é a resposta. O que é necessário, ao invés disso, é socializar as finanças.

Aliás, esses são tempos perfeitos para desenvolver um programa de esquerda para as finanças. Muita gente está agora aberta para esse problema. Afinal, era exatamente este o ponto do Occupy Wall Street. Todo mundo sabe que os circuitos de investimento que causaram a crise estão de volta a seus velhos truques e que nada foi feito no sentido de uma reforma estrutural para prevenir um derretimento global, no futuro próximo. Os norte-americanos estão bem conscientes de que Obama usou os impostos para socorrer os bancos, cujos esquemas predatórios quase derrubaram a economia global — mas não fez nada para ajudar as 10 milhões de pessoas que perderam sua casa na crise de execução das hipotecas. Não há dúvidas de que muitos estão abertos a repensar esse sistema. Nessa questão, nem a direita nem o centro têm nada a oferecer, de modo que é uma grande oportunidade para a esquerda.

Gostaria agora de debater algumas preocupações teóricas. No seu artigo “A morada escondida de Marx” (“Marx’s HIdden Abode”), na New Left Review, você argumentou longamente sobre como o valor é produzido não apenas pelo trabalho produtivo, mas também pelo trabalho não remunerado. Este último seria o que, na verdade, suporta e sustenta o primeiro. A certa altura você sugere que uma parte da expansão do capitalismo é o “potencial emancipatório do capitalismo”. Esse “potencial emancipatório” é um tema muito debatido no pensamento marxista. Argumenta-se que frequentemente o trabalho não livre é ainda mais aprisionado, na dialética da “dupla liberdade” do capitalismo. Nesse contexto, como se pode entender o potencial emancipatório do capitalismo no que diz respeito ao trabalho não livre?

A expressão “dupla liberdade” é irônica. O lado positivo tem a ver com o fato de podermos circular e termos o direito de aceitar “voluntariamente” um contrato de trabalho. Mas, como você sabe, ela carrega um outro lado. Ao tornar-se livre para vender sua força de trabalho, uma pessoa também livrou-se de – quer dizer, foi privada de – ter acesso aos meios de subexistência e aos meios de produção. Marx ressaltava que os proletários haviam sido “libertos” do acesso à terra, ferramentas, matérias primas e outros bens de que necessitariam para organizar seu próprio trabalho e satisfazer suas necessidades. Em consequência, não têm escolha senão aceitar um contrato de trabalho com um capitalista. O lado bom da liberdade está severamente comprometido, quando não é simplesmente ilusório.

A liberdade no capitalismo é de fato uma faca de dois gumes. Se alguém é escravo ou servo, a possibilidade de tornar-se um trabalhador remunerado é certamente um passo adiante, como o próprio Marx frequentemente ressaltava. Mas isso não significa que essa pessoa se torne livre num sentido completo e robusto. Ao contrário, o proletariado torna-se sujeito de dominação. De modo que eu não superestimaria o potencial emancipatório do capitalismo, mas também não o ignoraria.

O ponto focal, contudo, é outro: o capitalismo não é um sistema uniforme. Ele não trata todo mundo do mesmo modo ao mesmo tempo. Mesmo quando “emancipa” alguns da dependência e trabalho forçado, transformando-os em proletários duplamente livres, ele deixa outros – muitos outros, de fato – em contextos e formas de dominação tradicionais. Ou, ainda, transforma aquelas formas e contextos tradicionais em formas novas, frequentemente muito opressivas.

De fato, argumentei recentemente, na palestra Contribuições ao Conhecimento Contemporâneo, que a exploração de “trabalhadores livres” está intimamente ligada — depende, na verdade — da expropriação de “outros” dependentes. O que quero dizer com expropriação é o sequestro de bens de pessoas subjugadas (seu trabalho, terra, animais, ferramentas, crianças e corpos) e o afunilamento desses bens sequestrados em circuitos de acumulação de capital. Compreendida dessa maneira, a expropriação difere nitidamente da exploração. A exploração é mediada por um contrato salarial: o trabalhador explorado troca “livremente” sua força de trabalho por salários que supostamente cobrem os custos sociais médios necessários a sua reprodução. A expropriação, ao contrário, dispensa a folha de parreira do consentimento e toma brutalmente propriedade e pessoas, sem contrapartida – seja por força militar ou por dívida. Minha visão é como a de Rosa Luxemburgo e David Harvey: a exploração por si só não poderia sustentar a acumulação de capital ao longo do tempo. Esta depende, antes, de contínuos movimentos de expropriação. Então, os dois “ex” estão interligados. E é o processo combinado de exploração e expropriação que cria o valor excedente.

Essa ideia é lindamente ilustrada numa frase de Jason Moore, relativa ao início da industrialização. Ele diz, “Atrás de Manchester fica Mississippi”. Isso significa que a indústria têxtil altamente rentável de Manchester, sobre a qual Engels escreveu, não seria rentável sem o algodão barato fornecido por meio do trabalho escravo das Américas. Sou tentada, por sinal, a acrescentar um terceiro M — para Mumbai, para assinalar o importante papel desempenhado no crescimento de Manchester pelo destruição calculada da manufatura têxtil da Índia pelos britânicos. Este é um caso em que a expropriação é condição para a possibilidade de exploração lucrativa. O capitalismo joga um jogo duplo com as pessoas, encaminhando alguns à “mera” exploração e condenando outros à brutal expropriação — uma diferença que historicamente tem sido associada com império e raça. De modo que eu rejeito a alegação, com frequência atribuída a Marx, de que o valor é produzido apenas pelo trabalho assalariado. Há muitos outros fatores não assalariados no processo, inclusive o trabalho social-reprodutivo das mulheres, sem o qual o trabalho assalariado não seria possível.

Para aprofundar isso, você poderia por favor explicar essa dinâmica do potencial emancipatório do capitalismo tendo em mente as economias “periféricas”? Você acha que pode-se continuar a pensar nelas como periféricas, num contexto do neoliberalismo que parece prover liberdade completa ao capital, ao restringir o trabalho em bases nacionais?

O conceito de “centro e periferia” faz menos sentido agora do que fez em períodos anteriores, mas estamos ainda lutando para encontrar uma alternativa satisfatória. Defensores da teoria de sistema-mundo falam de países semiperiféricos com estratégias para subir os degraus da escada de valor agregado baseados na produção de commodities. Mas mesmo isso não é inteiramente adequado para uma situação em que a indústria está sendo realocada em escala maciça. Dado o peso das economias de países como os membros do BRICS, é difícil chamá-los de “semiperiféricos”, quanto mais de periféricos. O que complica a situação ainda mais é que, a despeito de seu peso econômico, os países dos BRICS não estão (ainda?) em posição de afirmar-se como potências globais no cenário mundial. Ao contrário, uma potência econômica decadente (os EUA) ainda desempenha o papel de hegemonia global, a despeito de sua credibilidade moral que desaba e a mudança em seu status para uma nação devedora. Ainda não sabemos aonde tudo isso leva — e depende muito da China. Mas embora as coisas funcionem assim, precisaremos desenvolver um novo vocabulário e enquadramento para apreender a nova situação histórica.

Ainda assim, uma coisa já está clara: tem havido uma tremenda mudança no relacionamento entre exploração e expropriação no capitalismo financeiro. Isso ocorre em grande parte graças à realocação da indústria para longe de seu centro histórico e à universalização da expropriação pela dívida. Este último fator é óbvio no caso da desapropriação de terras e dos programas de ajuste estrutural, que impõem condicionalidades de empréstimo aos países do Sul global. Governos de todo lugar, da América Latina à África e à Grécia tiveram de cortar gastos sociais e abrir seus mercados ao capital estrangeiro, vampirizando seu povo para o benefício do capital. Nesses casos, a dívida é um veículo de expropriação na (ex) periferia e semiperiferia, mesmo que essas regiões também estejam se tornando locais primários de exploração.

Ao mesmo tempo, a expropriação está aumentando no “centro” histórico. À medida em que o trabalho precarizado e de baixos salários nos serviços ultrapassa o trabalho industrial sindicalizado, o capital paga seus trabalhadores menos do que o custo socialmente necessário para sua reprodução. No entanto, ainda precisa que esses trabalhadores cumpram o duplo dever como consumidores. Então, o que fazer? A solução é aumentar a dívida dos consumidores, que permite às pessoas comprar coisas baratas produzidas em outros lugares. Aqui, também, a expropriação alimenta aqueles que também são explorados em “McEmpregos”.

Ou seja, estamos diante de uma nova constelação, que mistura a velha divisão exploração/expropriação. A maior exploração costumava ocorrer no centro histórico, enquanto a maior parte das expropriações era feita na ex-periferia. Não é mais o caso. Agora os dois ex não formam um ou/ou, mas um ambos/e. Não mais alternativas mutuamente excludentes, eles encontram-se em grande proximidade; frequentemente as mesmas pessoas são submetidas a ambas.

Você perguntou sobre as implicações disso para a emancipação. Essa é, a meu ver, a questão chave para a esquerda em nossos tempos. O que se segue, politicamente, ao fato de que o capitalismo não mais atribui a exploração a um grupo social ou região e a expropriação a outro grupo ou região? Quanto era assim, os cidadãos-trabalhadores “livremente” explorados do centro podiam dissociar facilmente seus objetivos e lutas daqueles sujeitos subjugados, racialmente expropriados da periferia. E isso enfraquecia as forças da emancipação, pois permitiam o dividir-para-governar. Agora, contudo, quase todo mundo está sendo simultaneamente explorado e expropriado. Então, parece que a base material para aquelas divisões políticas intra-classe-trabalhadora está desaparecendo. Em teoria, isso poderia abrir perspectivas para alianças novas e ampliadas. Se aqueles que sofrem podem agora entender que exploração e expropriação são elementos — analiticamente distintos, mas praticamente enlaçados — de um único sistema capitalista, o qual é a própria causa raiz da maioria de seus sofrimentos, então podem concluir que compartilham um inimigo comum e deveriam unir forças. Mas esse resultado não é nem automático, nem assegurado. Por ora, ao menos, as mudanças associadas ao capitalismo financeiro estão gerando paranoia e ansiedade, que conduzem a formas exacerbadas de chauvinismo, inclusive nos populismos de direita que discutimos no início.

Na verdade, fechamos agora um círculo completo nesta conversa. Mas devo ressaltar novamente agora o que disse antes. Ainda que solidariedades ampliadas não sejam geradas automaticamente, pelo simples fato de que ocorreu uma mudança estrutural, elas ainda podem ser criadas politicamente, através de intervenções políticas de esquerda. Estas, como disse antes, precisam rejeitar firmemente os jogos táticos-assustadores que o liberalismo desempenha com a palavra “populismo”. Sem medo dessa palavra, e determinados a conquistar aqueles que estão agora atraídos por suas variantes de direita, devemos montar nossa própria crítica de esquerda estrutural-sistêmica do neoliberalismo progressista e nossa própria visão transformadora de uma alternativa emancipatória. Rompendo definitivamente tanto com a economia neoliberal quanto com as várias políticas de reconhecimento que ultimamente lhe deram suporte, devemos abandonar não apenas o etnonacionalismo excludente, mas também o individualismo liberal-meritocrático. Somente unindo uma política de distribuição fortemente igualitária a uma política de reconhecimento substancialmente inclusiva, sensível à classe, podemos construir um bloco contra-hegemônico capaz de nos levar além da crise atual, em direção a um mundo melhor.

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Esta entrevista foi realizada em março de 2018, quando Nancy Fraser foi convidada pelo Departamento de Sociologia da Universidade do Sul Asiático para fazer uma palestra sobre “Raça, Império, Capitalismo: teorizando os nexos”.
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Shray Mehta é um acadêmico do Departamento de Sociologia da Universidade do Sul Asiático, em Nova Deli.


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