domingo, 15 de dezembro de 2019

A emergência do fenômeno indígena na América Latina


Seu pensamento, ao contrário do ocidental, vê o mundo de modo não fragmentário. Cultiva e valoriza a reciprocidade. Influencia filósofos como Edgar Morin. À beira da catástrofe climática, seremos finalmente capazes de entendê-los?




Por Roberto Malvezzi (Gogó)


Há uns dez anos, nos encontros do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), já se falava na emergência do fenômeno indígena na América Latina. O próprio Vaticano enviava seu observador para essas reuniões, com foco particular nessa questão. Naquela época o que parecia novo eram as questões Mapuche no Chile, Guarani entre Brasil e Paraguai e Yanomami nas fronteiras de Brasil e Venezuela. Já se constatava que o fenômeno indígena tinha duas alavancas consideradas perigosas por muita gente: a reconquista dos territórios e a retomada de suas culturas, particularmente as teologias índias.

Nos últimos dez anos a questão deixou de ser um fenômeno surpreendente para converter-se em realidade. A defesa da bandeira dos povos originários na Bolívia – a Whiphala – confirma que esses povos sul-americanos vieram para reconquistar o lugar e o espaço usurpado quando da invasão ibérica no continente que lhes pertencia, mas também para retomar sua própria identidade.

O fenômeno indígena assusta uma elite branca, que conquistou esse continente, promoveu um verdadeiro genocídio durante séculos, escravizou ou marginalizou esses povos, deu-os por extintos em muitos lugares – como os índios do Nordeste do Brasil –, mas agora os vê reerguendo a cabeça, suas culturas, suas teologias e lutando pela reconquista de seu espaço.

As lutas repressoras, as tentativas de destruição moral, cultural e mesmo física desses povos também reemergem com mais violência. Assistimos à destituição do poder, como na Bolívia; ao avanço sobre seus territórios, como no Brasil; à tentativa da destruição moral e cultural como sempre foi durante os séculos; ou simplesmente à política integracionista que nunca deu resultado, como é o caso mais uma vez do governo brasileiro.

Qual a possibilidade concreta de que, finalmente, os que se consideram brancos e supremacistas possam realmente eliminar os povos originários? Praticamente nenhuma, a não ser promover uma enorme chacina nos tempos atuais. Mas também essas, ao longo da história, são incapazes de eliminar esses povos. Eles lidam com longos períodos, muitas vezes milenares. Estes não obedecem à lógica imediatista do capital internacional, que deseja suas terras e suas riquezas e os vê como inimigos do progresso.

Porém, nos tempos atuais esses povos não estão a sós. No documento do Sínodo para a Amazônia, a igreja católica faz uma virada copernicana. Eis um trecho:

“O pensamento dos povos indígenas oferece uma visão integradora da realidade, capaz de entender as múltiplas conexões entre tudo o que é criado. Isso contrasta com a corrente dominante do pensamento ocidental, que tende a se fragmentar para entender a realidade, mas falha em rearticular o conjunto de relações entre os vários campos do conhecimento. O gerenciamento tradicional do que a natureza lhes oferece foi feito da maneira que hoje chamamos de gerenciamento sustentável. Também encontramos outros valores nos povos nativos, como reciprocidade, solidariedade, senso comunitário, igualdade, família, organização social e senso de serviço” (Sínodo para a Amazônia, n0 44).

A crítica desse texto ao chamado pensamento ocidental é funda e de ruptura com sua matriz. O pensamento ocidental é necessariamente fragmentado, incapaz de rearticular o conjunto das relações. Já os povos originários têm uma visão integral e integradora da realidade.

Não é uma negação total do pensamento ocidental, mas uma crítica à sua incapacidade de integrar o todo. Portanto, como tantas vezes expressa o Papa Francisco, o futuro da humanidade e da Terra passa também pela epistemologia e pelos saberes desses povos. Sozinho, o pensamento ocidental não tem como resolver o drama humano, inclusive o da sobrevivência na face da Terra.

Diante dessa lacuna do pensamento ocidental, muitos pensadores já propõem, como novo paradigma das ciências, o “pensamento complexo”. Edgar Morin, um dos expoentes dessa linhagem, chega afirmar claramente que “a complexidade é uma palavra-problema e não uma palavra-solução” (MORIN, pg. 06). Portanto, não há respostas prontas, há que se fazer novos caminhos, e os povos originários das Américas têm muito a contribuir nessa busca. Provavelmente, há muito que se aprender com os povos originários de todo o mundo.

O diálogo com as teologias índias me pareceu a mais surpreendente e revolucionária das propostas advindas do Sínodo para a Amazônia:

“Teologia índia, teologia voltada para a Amazônia e piedade popular já são riqueza do mundo indígena, sua cultura e espiritualidade (n0 54)... Todos somos convidados a abordar os povos da Amazônia da mesma forma, respeitando sua história, suas culturas, seu estilo de ‘bem viver’ (n0 55)…. Especificamente, propõe-se aos centros de pesquisa e pastoral da igreja que, em aliança com os povos indígenas, estudem, compilem e sistematizem as tradições das etnias amazônicas para favorecer um trabalho educacional baseado em sua identidade e cultura, que ajudem a promoção e defesa de seus direitos, preservar e disseminar seu valor no cenário cultural latino-americano” (n0 56).

Um evento preparatório do Sínodo, em Macapá (AP), um indígena nos colocava sua teologia diante da proposta da Ecologia Integral. Tomando a palavra, sempre de forma muito educada e respeitosa, em outras palavras, ele nos disse:

“Essa proposta da Ecologia Integral é muito interessante, mas é para vocês que são brancos. Nós já vivemos assim. É que para a teologia de vocês, cada pessoa tem uma alma (espírito) individual. Para nós, não. Existe só um grande Espírito, que está em mim, está em cada um de vocês, está na onça, nas árvores, em cada ser vivo. Por isso, a onça é minha irmã, a árvore é minha irmã, cada um de vocês é meu irmão e minha irmã. Portanto, eu não posso matar uma onça, porque mato a minha irmã. Eu não posso derrubar uma árvore, porque estou derrubando a minha irmã. Quando é necessário, pedimos perdão e nos comprometemos a replantar essa árvore em algum lugar”.

Essa teologia será facilmente acusada de animista, de panteísta por nossas teologias cristãs. O problema não está aí – mas em nos nos recusamos a dialogar sobre a beleza e a profundidade nela escondidas, no que diz respeito ao cuidado, ao respeito por cada ser vivo, por cada criatura. Se formos capazes de ouvir o que essa teologia tem a nos dizer, já será um grande passo na compreensão do outro e na busca de caminhos fundamentais para uma verdadeira Ecologia Integral.

Ouvir esses povos, escutar suas teologias, aprender com eles, desaprender nossa hegemonia e nossos colonialismos, recusar o proselitismo, são todos elementos de uma nova postura, já tardia, mas ainda em tempo de acolher a contribuição desses povos para o bem da Amazônia, da humanidade e de toda a Terra.

Embora a tendência clara da humanidade atual seja na direção de um armagedon, pela agressão a Terra, pela ascensão da extrema-direita, pelo desprezo ao ser humano empobrecido e migrante, pela destruição em massa da vida na Terra, Leonardo Boff nos oferece um outro viés, talvez mais sutil e escondido, mas que reflete o mais profundo dos humanos solidários e conscientes da beleza e grandeza da vida. Escreve ele:

“Para ganhar alguma luz, convém pensar estas questões em termos da física quântica e da nova cosmologia. A evolução não é linear; ela acumula energias e dá saltos. Assim também nos sugere a visão elaborada por Niels Bohr e por Werner Heisenberg: virtualidades escondidas, vindas do Vácuo Quântico, daquele Oceano indecifrável de Emergia de Fundo, O Abismo Gerador de todos os seres que subjaz e pervade o universo, podem irromper e modificar a seta da evolução” (BOFF, pg. 159).

A Antropologia Cristã não alimenta ilusões a respeito do ser humano. Por uma questão de origem, cada ser humano carrega dentro de si as sementes do bem e do mal. Por isso, a verdadeira compreensão do ser humano não está entre os do “bem” e os do “mal”, como ficou vulgarmente divulgado nos últimos tempos, como se esse maniqueísmo existisse de fato entre seres humano. Na verdade, a guerra entre o bem e o mal – a pessoa humana velha e a pessoa humana nova – se trava dentro de cada um de nós, mas também se transforma em coletividade, em leis, em modelos políticos e econômicos, em tipos de civilização. Portanto, é preciso escolher também o que cada um quer ser e onde quer estar.

É dessa forma que podemos compreender o que se passa na América Latina. A tentativa de eliminar os povos originários, de extinguir seus territórios, suas culturas, assim como em relação aos negros insubmissos, às populações LGBTs, etc, soa apenas como um grito de agonia do supremacismo branco, europeu, norte-americanizado, colonizado e colonialista. Pessoas facilmente identificáveis, que agora ocupam o poder, não representam o futuro, mas o passado. Podem ser o suspiro final de um modo de civilização que vem do passado, mas não tem futuro, mesmo que o caos se aprofunde, porque o caos é criativo. O levante dos povos originários pode ser um sinal do futuro. A irmanação universal, de todas as formas de culturas e de vidas, será o contraponto ao processo destrutivo que se impõe nesse momento da história.

REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. Reflexões de um Velho Teólogo e Pensador. Petrópolis, RJ : Vozes, 2018.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Editora Meredional/Sulina, 2005.

VATICANO. #SinodoAmazonico – Documento finale del Sinodo dei Vescovi al Santo Padre Francesco. In 
<https://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2019/10/26/0820/01706.pdf> Acesso em 20/11/19



ROBERTO MALVEZZI (GOGÓ)
Músico e escritor católico. graduado em Estudos Sociais e em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena e em Teologia pelo Instituto Teológico de São Paulo. Foi coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) por seis anos. Reside em Juazeiro-BA e atua na Equipe CPP/CPT do São Francisco


sábado, 7 de dezembro de 2019

Por uma outra história das mulheres


Por Bárbara Castro 


Os Direitos das Mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937)
Autor: Glaucia Fraccaro
Ano: 2018
Editora: FGV Editora
Páginas: 236



Elizabeth Souza Lobo nos deixou uma rica herança teórica, metodológica e política. Em seu último texto, publicado postumamente em outubro de 1991 pela Revista Brasileira de Ciências Sociais, ela oferecia uma chave de análise preciosa para ampliar nossa compreensão do feminismo brasileiro e sofisticar a maneira como contamos sua história1. Para compreender sua emergência e formação seria preciso olhar para a participação das mulheres na vida política e em movimentos sociais que não são voltados às temáticas marcadas como “femininas” ou como pertencentes à “esfera da reprodução”. Afinal, as mulheres sempre estiveram presentes nas lutas sociais as mais diversas. Elas só não foram visibilizadas por aqueles e aquelas que contam nossa história.

O que a autora defendeu em seu artigo foi que ao participar e protagonizar lutas trabalhistas, ocupações de terrenos urbanos e rurais, movimentos de saúde, contra a carestia ou pela abertura democrática, as mulheres se construíram como agentes políticas. Elas se reconheceram e se produziram no coletivo, formulando demandas e reivindicações que passavam pela construção da ideia de direitos. Glaucia Fraccaro demonstra, em seu recém-publicado livro Os Direitos das Mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937), como esse processo histórico de produção de uma agenda de direitos das mulheres se constituiu entre os anos de 1917 e 1937.

Aprendi recentemente lendo Angela Alonso2 que o Brasil do início do século 20 já herdava uma tradição de participação política das mulheres que atuaram no movimento abolicionista e que se autonomizaram, nesse período, em associações voltadas apenas para mulheres, a despeito das interdições que existiam para o pleno exercício de sua cidadania política. Essa história nos permite elaborar como hipótese, em homologia ao que nos conta Angela Davis em Mulheres, Raça e Classe3, que o trânsito do privado para o público pode ter aberto uma fresta para as mulheres das elites disputarem um engajamento político mais direto, se desdobrando na luta pela cidadania política que ficou conhecida pelo direito ao voto e à educação. Como agenda de pesquisa, seria interessante reconstruir os percursos dessas mulheres.

Mas essa agenda, sozinha, é estreita. Se escolhermos olhar apenas para a participação política das mulheres de elite, invisibilizamos uma parte preciosa da história da luta das mulheres no Brasil. A inserção delas na arena pública, via trabalho livre, como já sabemos e é ponto de partida de Glaucia Fraccaro, já era a realidade de muitas mulheres na virada do século 19 para o 20, seja no trabalho doméstico, seja no trabalho industrial. Esses foram ricos espaços para sua participação política. É a história das mulheres trabalhadoras, articulada à história das mulheres de elite que transitavam na esfera político-parlamentar, o que Glaucia Fraccaro nos conta. Fruto de sua tese de doutorado em História Social, o livro reconstitui a história da luta das mulheres no intervalo de duas décadas, colaborando para reenquadrarmos a história do feminismo brasileiro. A autora apresenta como o processo histórico de produção das mulheres como agentes políticas se constituiu em uma intrincada trama que envolveu classe trabalhadora, mulheres de elite, Estado e instituições internacionais (como a OIT e organizações feministas internacionais).

A autora abre o livro nos convidando a revisitar as greves de 1917, destacando a participação das mulheres no movimento político da classe trabalhadora. Elas não apenas compunham a maioria dos trabalhadores das fábricas têxteis que pararam o país em 1917. Elas se organizaram fora dos sindicatos, fundando e atuando em ligas e associações operárias de bairros, articulando-se politicamente por meio de redes da família e vizinhança. Elas também tiravam proveito da percepção social sobre elas construída. Ser mulher possibilitava uma agência política diferenciada. Os encontros das ligas eram proibidos pela polícia. No entanto, alguns desses encontros eram autorizados desde que houvesse a participação apenas de mulheres. Elas exigiram, de 1917 até meados dos anos 19304, melhorias nas suas condições de trabalho, defendendo “salário igual para trabalho igual”, licença pós-parto com vencimentos, proibição do trabalho noturno para mulheres, e articulavam denúncias de assédio e abuso sexual dos patrões (na época, nomeados como processos por desonra). As greves resultaram, em um primeiro momento, em legislações estaduais de proteção do trabalho das mulheres e na adoção, pelo patronato, de uma gestão privada dos direitos sociais dentro das indústrias. Para reduzir os conflitos, o patronato buscava construir uma regulação trabalhista privadamente, sem interferência da fiscalização do Estado5.

Na segunda parte de seu livro, a autora articula a luta das mulheres trabalhadoras àquela empreendida pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), fundada em 1923 por Bertha Lutz. A FBPF é tratada pela bibliografia especializada como instituição que inaugura o feminismo brasileiro, largamente orientada pela luta pelo direito ao voto e pela educação das mulheres. O horizonte da instituição tem sido tratado, pois, como um horizonte de luta pela cidadania política. Ao destacar as diferentes pressões políticas sofridas por Bertha Lutz e pela FBPF entre os anos 1920 e meados da década de 1930, a autora nos oferece uma nova leitura do período e do movimento feminista em emergência. Ela joga luz no peso que teve a atuação das mulheres trabalhadoras e seu ativismo político para a construção da agenda da FPBF. O repertório de demandas e reivindicações das mulheres que atuavam nas greves do período vai reverberar na atuação da FBPF. Elas construíram ideias de direitos e de justiça social que se tornaram incontornáveis na luta feminista. Se a FBPF nos foi apresentada, até o momento, como um movimento voltado apenas à luta pela cidadania, Glaucia Fraccaro demonstra como o acúmulo das greves lideradas por mulheres e dos direitos por elas adquiridos influenciaram na atuação de Bertha Lutz junto ao Estado brasileiro e na mudança da agenda política que ela costurava junto às organizações feministas internacionais. A questão de classe articulada ao gênero vai se constituindo, aos poucos, como central à agenda da FBPF, especialmente nos anos 1930.

A terceira parte do livro nos traz uma nota sombria e atual. Após apresentar como o repertório de direitos das mulheres se cristalizou na Constituição de 1934 e na legislação do trabalho de Vargas, demonstrando a participação ativa de Lutz nesses dois processos, Fraccaro encerra o livro no golpe de 1937. Ela nos relembra de como a transição da agenda liberal para a conservadora fez água no acúmulo do debate que havia sido construído sobre os direitos das mulheres. As comissões parlamentares das quais Bertha Lutz fez parte e que subsidiavam o inovador Estatuto da Mulher foram substituídas por debates em torno do Estatuto da Família. Sob forte influência da bancada católica, a agenda política se deslocou da busca pela autonomia política e econômica das mulheres para a preservação do casamento e proteção das crianças. Tal deslocamento na compreensão de como os direitos das mulheres devem ser entendidos tem orientado os debates políticos do Brasil pós-golpe de 2016, em especial tem composto a agenda do presidente conservador recentemente eleito. Lembrar do golpe de 1937 e seus efeitos para a luta das mulheres nos relembra a fragilidade que essa agenda de direitos tem em nossa história. Mas ler o livro de Glaucia Fraccaro também nos dá a dimensão da potência que existe nas lutas sociais. Ao historicizar como a diferença é construída, nos ajuda a compreender os discursos e práticas que traduzem essa diferença em desigualdade. Seu livro chega em boa hora. Nos dá a dimensão de que a produção de alianças políticas entre as mulheres, articulando as demandas e reivindicações produzidas nas experiências de classe e raça, está por trás da construção e manutenção de nossos direitos. Que nos sirva, a todas, como um convite à luta política. E nos ensine que é a partir dela que nos produzimos enquanto portadoras de direitos. Mãos à obra, pois.


Bárbara Castro é professora do Departamento de Sociologia da Unicamp. E-mail: bgcastro@unicamp.br

Notas
1. LOBO, Elisabeth Souza. “O gênero da representação: movimento de mulheres e representação política no Brasil (1980-1990)”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 17, p. 7-14, out. 1991.

2. Refiro-me aos seguintes artigos: ALONSO, Angela. “Associativismo avant la lettre: as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista”. Sociologias, v.13, n. 28, p.166-199, dez. 2011. ALONSO, A. “A teatralização da política: a propaganda abolicionista”. Tempo Social, v. 24, n. 2, p. 101-122, 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-20702012000200006

3. DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

4. Há registros, por exemplo, de uma greve em uma tecelagem organizada por mulheres em 1935 (Fraccaro, 2018, p. 56).

5. “Para além do sistema de identificação de trabalhadores e trabalhadoras que causavam instabilidades na vida das fábricas, os empresários também impulsionavam a garantia de benefícios por eles patrocinados, como no caso das creches. A Companhia Nacional Estamparia de Sorocaba era uma referência nesse tipo de gestão empresarial por ter instituído um programa de aposentadorias, um seguro-saúde e auxílio por doenças, assistência dentária e material escolar para as crianças das operárias e um complemento salarial de 10% para aquelas que se tornavam viúvas e se mantinham ‘honestas’. As condições de acesso aos benefícios eram de não fazer greve e trabalhar na fábrica por certo período mínimo, que variava de acordo com a vantagem oferecida” (Fraccaro, 2018, p.108-109).


sábado, 30 de novembro de 2019

Educação Pública sob artilharia pesada


Com PEC do Pacto Federativo, governo promete verbas e autonomia a estados e municípios, mas só aprofunda retrocessos: desmantela o orçamento para políticas educacionais e extingue programas de combate a desigualdades no ensino


                                                                                      Foto: Igor Matias/ NINJA



Por Cleo Manhas, publicado originalmente no Inesc

Está ocorrendo o desmonte das políticas públicas garantidoras de direitos, em um ataque neoliberal ao Estado, como se pode constatar desde a aprovação da Emenda Constitucional do teto dos gastos e, mais recentemente, com a Proposta de Emenda Constitucional nomeada de PEC do Pacto Federativo.  Além de cotidianas manifestações públicas de gestores governamentais contra os direitos humanos, a ciência e o pensamento crítico.

Com relação à política de educação é notória a intensidade do ataque: propostas como “escola sem partido”, em reação ao que chamam de “ideologia de gênero” e imposição de militarização de escolas são alguns dos exemplos mais famosos. No âmbito orçamentário, vieram ataques por meio dos contingenciamentos e retirada de recursos, como propõe o projeto Future-se, apresentado às universidades como panaceia, mas que é uma forma de permitir que organizações sociais passem a gerir universidades públicas, com recursos vindos do mercado. Outra evidência do desmonte na educação é a proposta de junção das agências de fomento Capes e CNPQ, que ficariam sob a responsabilidade direta da Presidência da República e não mais do MEC ou Ministério da Ciência e Tecnologia, criando uma enorme anomalia para o sistema.

O ataque mais recente veio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188/2019, chamada de PEC do pacto federativo, que, entre outras coisas, propõe a unificação dos orçamentos da saúde e da educação. Hoje, os estados destinam para a saúde pelo menos 12% da receita corrente líquida (soma de receitas tributárias, contribuições patrimoniais, industriais, agropecuárias e de serviços, transferências correntes, entre outras — menos o que fica para estados e municípios por determinação constitucional), e 25% para educação. No caso dos municípios, os percentuais são 15% e 25%, respectivamente. A PEC agrega os percentuais (40%) de forma que um prefeito poderá, por exemplo, aplicar 20% em saúde e os outros 20% em educação. A proposta provocará uma disputa de recursos entre as áreas, enfraquecendo-as.

Antes de analisar as consequências disso, vamos relembrar como chegamos ao atual quadro de políticas públicas na área da educação:

Linha do tempo da educação

Com a Constituição de 1988 a educação passou a ser um direito de todas as pessoas e dever do Estado, que foi obrigado a oferecer vagas desde a educação infantil, até o ensino médio, ou educação básica. Direito incorporado de forma progressiva, em 1988, no texto constitucional, ampliado com a Lei de Diretrizes de Bases da Educação em 1996 e, mais tarde, com a Emenda Constitucional 59 de 2009.

Para se ter a medida da importância do texto constitucional, que está sofrendo o maior ataque desde a sua aprovação, siga o fio abaixo sobre o direito à educação ao longo da história do Brasil.

1) Até 1930 o ensino que ia além da alfabetização era para poucos. A maior parte da população recebia aprendizagens apenas para o trabalho nas fábricas e no campo.

2) A partir de 1930, o que era responsabilidade apenas dos estados, passa a ter uma centralidade maior no governo federal, que criou o Ministério da Educação e Saúde Pública, com verbas específicas para essas áreas. Apesar do avanço, o ensino público e gratuito não atinge as massas trabalhadoras, que fica bem distante do que é oferecido às elites.

3) Na década de 1950, quase metade da população acima de 15 anos se declarava analfabeta e apenas 15% dos matriculados concluíam a 1ª série.

3) Durante a ditadura militar a educação foi voltada para a profissionalização e o produtivismo, sendo a escola um aparelho de cerceamento do pensamento e reforço das concepções dos militares no poder. O ensino de filosofia foi proibido e em seu lugar nasce a “moral e cívica”. Do mesmo modo, geografia e história foram substituídas por “estudos sociais”. A obrigatoriedade de repasse de verbas do âmbito federal para estados não é perene e os recursos vão escasseando, indo de 7,6% em 1970 para 5% em 1978.

4) A Constituição de 1988 (CF/88) trouxe a educação como direito social, não mais como assistencialismo do Estado. E, por pressão popular, especialmente dos movimentos feministas, a etapa da educação infantil (creche e pré-escola) foi reconhecida.

5) A CF/88, em suas disposições transitórias, obrigava que o Estado universalizasse o ensino e erradicasse o analfabetismo em 10 anos.

6) A partir daí vieram as leis infraconstitucionais que mudaram a realidade da educação brasileira: o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996.

7) Na década de 1980, a taxa de analfabetismo (de acordo com o IBGE) era de 25,9%, hoje é de 6,8%.

Como se pode constatar, a partir da vigência da CF/1988, em termos educacionais, o país caminhou bastante, mesmo que com várias lacunas de qualidade ou de acesso com relação a raça e região, especialmente campo/cidade. Foi a partir daquele momento que se reconheceu até mesmo  as diferenças, como a importância da educação indígena, por exemplo, garantindo uma maior reflexão sobre a oferta de educação multifacetada.

Contudo, esse caminho nunca havia sofrido risco tão grande como agora, em seu conjunto, seja com relação aos modelos educacionais propostos, como aos recursos orçamentários destinados à política.

PEC do Pacto Federativo e disputa de orçamentos entre educação e saúde

A PEC do Pacto Federativo, além de propor a junção dos orçamentos, o que promoverá uma disputa entre áreas essenciais para a população, como são a saúde e a educação, abre flanco para a desvinculação dos recursos, ao flexibilizar a sua utilização.

Vejamos o exemplo do Salário-Educação

Hoje recolhido pela União e repassado para estados e municípios, de acordo com a proposta, o Salário-educação poderá ser integralmente repassado, não ficando nada na União, ou melhor, para o Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino (FNDE). O Fundo é essencial para amenizar as desigualdades regionais, por meio de programas que são, em parte, financiados com recursos do salário-educação.

A saber, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), até 2018 distribuído para todos os municípios; o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), garantindo alimentação escolar balanceada e de boa qualidade; o Programa Nacional de Transporte Escolar (Pnate), que entra como complementar para os municípios que o acessam, com padrões mínimos de segurança e conforto para crianças e adolescentes; e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), que visa ajudar escolas a resolver problemas estruturais, ou mesmo construírem quadras ou bibliotecas com esse recurso, sem burocracias, além de serem fiscalizados pelos conselhos escolares, garantindo participação na forma de utilização.

Até o final da primeira quinzena de novembro de 2019, o que havia sido executado, incluindo os restos a pagar, era um montante de R$ 6,07 bilhões, conforme mostra a tabela 1, que traz o orçamento desses programas administrados pelo FNDE, de maneira centralizada, garantindo tratamento equitativo entre os diferentes entes federados.


A promessa do Ministério da Economia com o pacto federativo é a de que estados e municípios teriam cerca de R$ 9 bilhões a mais em seus orçamentos. No entanto, quando se olha para a arrecadação dessa contribuição, os números não batem, conforme mostra a tabela 2, pois o que ficou na União foi um total de R$ 6,9 bilhões. E o que se precisa é acabar com o teto dos gastos, não com o FNDE e suas importantes políticas para amenização das desigualdades regionais.


Uma das inovações da Constituição de 1988 foi prever que o orçamento público teria a função  de redução das desigualdades, princípio este que a PEC do Pacto Federativo quer extinguir. Com relação à educação básica, desde os primeiros meses desse governo os repasses complementares para políticas tais como ensino integral vêm minguando. E agora deixam clara a intenção de não mais contribuir financeiramente para garantir equidade. A proposta retira, ainda, a obrigatoriedade de o governo gerar vagas em escolas onde houver falta. O que diz a CF/88: que o governo é obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede de ensino quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública em uma localidade. No entanto, se a proposta vingar, essa obrigação será retirada, o que passa a ideia de que em caso de falta de vagas, os estudantes precisam resolver por conta própria. O governo alega que há possibilidade de acessar bolsas de estudo na rede privada. E talvez o que esteja por trás da medida seja o favorecimento da educação privada em detrimento da pública.

Outro agravante é que o relator da matéria, senador Márcio Bittar (MDB/AC) quer aprofundar ainda mais o desmonte orçamentário, pois diz que, por ser um “super liberal”, acrescentará ao orçamento da saúde e educação os gastos com aposentados e pensionistas, reduzindo significativamente os montantes destinados a estas políticas e aprofundando a crise que já está instalada.

Portanto, o que se avizinha é um retrocesso de mais de 30 anos nas políticas públicas garantidoras de direitos no país. A reforma da previdência e as alterações na CLT já foram aprovadas e, se confirmada a PEC do Pacto Federativo, será ladeira abaixo. É preciso muita mobilização para dificultar e impedir essa perda de direitos.

domingo, 24 de novembro de 2019

Brasil é o 4º país que mais prende mulheres: 62% delas são negras




Por Maria Carolina Trevisan

O sistema prisional brasileiro é um dos que mais prende mulheres no mundo. Somos a quarta maior população carcerária feminina do planeta. Mantemos privadas de liberdade cerca de 42.355 mulheres, de acordo com o novo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias sobre Mulheres, o Infopen Mulheres, divulgado (sem alarde) na quarta-feira (9), pelo Ministério da Justiça. Estamos atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia.



A situação é grave e não há indícios de melhora: o Brasil mantém uma taxa de aprisionamento feminino de 40,6, o que representa um aumento de 455% entre 2000 e 2016, como informa a Conectas, organização social de direitos humanos. No mesmo período, a Rússia diminuiu essa população carcerária em 2%.

“A expansão do encarceramento de mulheres no Brasil não encontra parâmetro de comparabilidade entre o grupo de cinco países que mais encarceram mulheres no mundo”, diz o relatório.

Não existem vagas para todas. Há um déficit de mais de 15.300 vagas para receber essas mulheres, além de os presídios não serem adequados às mulheres e suas demandas. Um ponto escandaloso é que quase a metade das mulheres presas não foi condenada, o que configura um enorme descaso e descompromisso da Justiça e do Estado com essa população.

LEI DE DROGAS PARA PRENDER MULHERES NEGRAS
                  

O Brasil teve a mais longa e numerosa escravidão do mundo. Foi o último país a botar fim a esse regime e instituiu há exatos 130 anos a Lei Áurea, que em tese acabou com a escravidão. Mas a nova lei não promoveu a inserção dos ex-escravos na sociedade brasileira, nem reparou os anos de serviços forçados a que essas mulheres e homens foram submetidos, ou tampouco garantiu direitos aos afrodescendentes. Bem ao contrário.

O país não chegou a criar leis segregacionistas, como as Jim Crow, nos Estados Unidos, ou como as legislações da Jamaica e de Porto Rico. O Brasil fingiu ser cordial, alimentando o seu racismo de maneira sorrateira. “Serviu como um argumento para que o Estado dissesse que no Brasil não tem racismo, que a questão da escravidão está resolvida, é passado”, explica o historiador e professor Rafael de Bivar Marquese, do departamento de História da USP, que estuda “Escravidão e História Atlântica”. 

Marquese explica que foi por meio de regras informais que essa segregação racial se estruturou na sociedade brasileira, gerando consequências até hoje. “Abriu-se um amplo espaço para arbitrariedades por parte dos agentes públicos. Discriminação religiosa, criminalização do negro, desigualdades raciais no mercado de trabalho, tudo o que nós estamos vendo hoje é algo que vem historicamente desde o início da escravidão.”

Dessa forma, o Estado criou outras regras para controlar a população negra sem, no entanto, explicitar o componente racial. Não é por acaso que a maioria das mulheres presas (62%) é negra ou que a taxa de aprisionamento de negras (62,5) é muito superior à de brancas (40,1). Há, obviamente, uma seletividade racial que determina, por meio da Justiça, que mulheres negras são mais suspeitas que mulheres brancas.


O mecanismo que opera esse aprisionamento em massa é a nova Lei de Drogas, instituída em 2006. Nela, falta regulamentar de maneira mais explícita o que define quem é traficante e quem é usuário. Essa margem faz com que o racismo opere livremente: cabe primeiro ao policial/delegado e depois ao juiz (geralmente homem e branco) definir se a mulher se enquadra como traficante ou como usuária.



Dados os estereótipos do “suspeito” a que o Brasil está acostumado e a julgar pelas desigualdades que essas mulheres enfrentam, sendo, portanto, muito mais vulneráveis, sabemos quem será privada de liberdade na escolha da Justiça.

“As prisões modernas têm o ‘privilégio’ de ser o lugar onde se materializam as estruturas hierárquicas impostas pela lógica racial da desumanização do corpo negro. A desumanização na prisão abre caminho para a criminalização pelo Estado penal”, afirma a advogada e pesquisadora Dina Alves, em sua análise Rés negras, juízes brancos.

UM SISTEMA INADEQUADO ÀS MULHERES

Mesmo com uma população carcerária feminina tão grande, o Brasil não tem estrutura para dar conta das demandas das mulheres: a maioria dos estabelecimentos penais que as abriga é masculina ou mista. Significa que não tem espaço adequado para gestantes, berçários, locais de aleitamento materno, atenção à saúde da mulher ou visitas. A separação por gênero dos estabelecimentos destinados ao cumprimento de penas privativas de liberdade está prevista na Lei de Execução Penal e foi incorporada à Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional.

O relatório revela que apenas 55 unidades em todo o país declararam apresentar cela ou dormitório para gestantes. Os estados do Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima e Tocantins não possuem nenhum espaço para gestantes. As unidades que declararam ser capazes de oferecer esse local somam uma capacidade total para receber até 467 bebês. Apenas 3% das unidades prisionais femininas ou mistas que declararam ter creches dizem ter condições de receber crianças acima de dois anos.

É o direito à maternidade que está sendo violado. Assim como o direito da criança de conviver com a mãe.

INCOMPATÍVEL COM A VIDA E COM A DIGNIDADE

A chance de uma mulher cometer suicídio no sistema prisional é 20 vezes maior se comparada à população brasileira. “Entre a população total foram registrados 2,3 suicídios para cada grupo de 100 mil mulheres em 2015, enquanto entre a população prisional foram registradas 48,2 mortes autoprovocadas para cada 100 mil mulheres”, diz o relatório.


Esse quadro permite afirmar que o sistema penitenciário brasileiro é um “estado de coisas inconstitucional”, como reconheceu o Supremo Tribunal Federal. O plenário afirmou que o sistema produz “violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios converter-se-iam em penas cruéis e desumanas.”

Por tudo isso, não adianta construir mais e mais presídios. É preciso adotar políticas de desencarceramento. É urgente acelerar o processo dos presos provisórios. É necessário rever a Lei de Drogas.


Fonte: https://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br/2018/05/16/brasil-e-o-4o-pais-que-mais-prende-mulheres-62-delas-sao-negras/


FONTE: Controvérsia

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

“O Judiciário foi usado como vingança e impediu que a democracia siga seu curso”


                                                                 
   Lilia Schwarcz: Antropóloga, autora do livro "Sobre o autoritarismo brasileiro"



Por JOANA OLIVEIRA – Antropóloga, autora do livro ‘Sobre o autoritarismo brasileiro’, diz que o vazamento das mensagens de The Intercept Brasil mostra o Judiciário atuando em causas próprias.

O brasileiro é, antes de tudo, um autoritário. Depois de séculos escondendo-se por trás da ideia de de povo aberto, diverso, tolerante, pacífico e acolhedor —o conceito de “homem cordial”, cunhado pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda em 1936, em Raízes do Brasil—, ele tirou a máscara da cordialidade e revelou-se abertamente intolerante. Essa é a tese do recém-lançado Sobre o Autoritarismo Brasileiro (Companhia das Letras), livro da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz. Em um exercício de ir ao passado para pensar o presente, a autora destrincha as feições do autoritarismo à brasileira, que nasce na escravidão e nas mazelas do racismo e passa pelo patrimonialismo, violência, corrupção e pela desigualdade de gênero, resultando na polarização atual.

Schwarcz observa o autoritarismo presente já no nascimento da República Brasileira. “Os dois primeiros presidentes da nossa história foram militares que governaram em estado de sítio”, explica em seu escritório. A autora defende que essa cultura autoritária ganhou novos tons desde as manifestações de 2013 e do impeachment de Dilma Rousseff, que desencadearam uma grande crise sociopolítica. “Esses fatos destamparam o caldeirão da democracia. Valores que muitos brasileiros já tinham, mas se sentiam vexados de disseminar, começaram a aparecer e foram totalmente avalizados pelo atual governo”, diz ela. Foi precisamente a busca de razões que explicassem a eleição de Jair Bolsonaro que levou Schwarcz a escrever o livro.

A revelação pela série de reportagens publicadas por The Intercept, no domingo, de que o então juiz federal Sergio Moro, hoje ministro da Justiça, e o procurador da Deltan Dallagnol trocavam mensagens controversas sobre o andamento da Operação Lava Jato é, de acordo com Schwarz, o mais recente capítulo do autoritarismo à brasileira. “Esse episódio confirma a ideia de judicradura ou a ditadura do Judiciário, quer dizer, de um Judiciário que cumpre com sua liturgia, mas que cresceu de modo a não equiparar-se com os outros poderes. É um Judiciário que perde a medida do seu poder e põe em questão a prática da equanimidade”.

A historiadora e antropóloga também relaciona o episódios com outros ismos muito presentes na cultura e na história brasileira. O teor das conversas vazadas evidencia a atualidade do autoritarismo e do patrimonialismo no Brasil. Juntamente com a corrupção, seriam os grandes inimigos da República no país.

A subversão da “coisa pública”

Já dizia o historiador José Murilo de Carvalho que “nossa República nunca foi republicana”. Schwarcz concorda com ele, ao lembrar que a res pública —a coisa pública ou o bem comum— deveria opor-se aos interesses privados. Mas, no Brasil, observa, nunca foi assim.  “O patrimonialismo é resultado da relação viciada que se estabelece entre a sociedade e o Estado. É o entendimento, equivocado, de que o Estado é bem pessoal, ‘patrimônio’ de quem detém o poder. O que vimos ocorrer desde domingo [9], com o vazamento de informações sobre Sergio Moro, se chama patrimonialismo. O uso do Judiciário para causas particulares, como forma de vingança e de impedimento à que a democracia siga seu curso”, afirma Schwarz.

A autora também vê esse uso do poder para interesses particulares no Governo Bolsonaro (apesar de não citar diretamente o presidente no livro), que, segunda ela, tem características populistas e autoritárias similares aos governos de Donald Trump, nos Estados Unidos, de Viktor Orbán, na Hungria, de Rodrigo Duterte em Filipinas, ou de Nicolás Maduro, na Venezuela. “São governos que têm uma compreensão muito restrita da democracia. Propagam a ideia de que democracia se resume a ganhar eleição”.

No caso do atual Executivo brasileiro, Schwarz destaca o personalismo, a figura forte do Bolsonaro como “salvador da pátria”, como traço autoritário. “É essa coisa de ‘eu sou o poço da verdade’. Basta ver que a primeira manifestação de apoio ao presidente foi contra o Congresso e contra o Supremo, ou seja, a ideia é do Governo é ‘eu não preciso dos outros poderes, eu sou o poder’. É um governo que não sabe governar, que continua com falas de campanha, que não consegue ser propositivo e que não pratica o que é, na minha opinião, a melhor política: a arte de construir consensos. Ao contrário, ele [Jair Bolsonaro] vai cada vez mais apostando na polarização dos afetos”, diz.

Schwarcz também menciona a constante histórica que permitiu que diversas famílias se perpetuassem na vida política do país. “Isso de governar pela parentela é um costume aceito no Brasil. Mas agora temos um presidente e três de seus filhos que foram eleitos para outros cargos tomando decisões em Brasília. Houve um recrudescimento da bancada dos parentes, e os Bolsonaro exacerbam esse modelo de familismo muito vigente no país”, critica.

Ela pondera, no entanto, que o autoritarismo, pelo menos no Brasil, não se apega a ideologias. “Ele também cabe na esquerda”, afirma. O capítulo sobre corrupção —o maior do livro— está quase inteiramente dedicado ao caso do Mensalão[escândalo de compra de votos de parlamentares no Congresso durante o Governo Lula], à Operação Lava Jato e o papel do PT nela. “A polarização que vivemos hoje é consequência disso. Um lado só se radicaliza se o outro se radicalizar também. É com isso que os partidos de esquerda ou progressistas têm que lidar hoje”.

Apesar de interpretar o Mensalão como uma tentativa de perpetuação no poder, Schwarcz não considera os governos progressistas autoritários. “Tanto os governos do PT quanto do PSDB estavam muito preocupados em ampliar a educação, em fomentar a inclusão, não afastaram da sua pauta a questão das minorias que estavam ascendendo. A corrupção virou uma máquina de governar, mas a questão do autoritarismo é de outra ordem. O governo atual não tem nenhum apego à questão das minorias, não tem uma agenda progressista, a favor da diminuição das desigualdades, e deu provas de que não tem vocação nem vontade política de batalhar pela educação, a única coisa que pode desarmar o gatilho da desigualdade e da exclusão social”, argumenta.

Cicatrizes históricas e a “utopia” da Constituição de 1988

Em Sobre o autoritarismo brasileiro, Schwarcz resgata várias cicatrizes históricas que persistem como nós sem desatar no panorama atual do país. O colonialismo, baseado em um modelo de exploração, e a experiência de colonização portuguesa —uma coroa pequena, com poucos recursos para povoar o território e que baseou-se no sistema latifundiário, além de configurar uma metrópole ausente da vida social local— são responsáveis, segundo ela, pelas especificidades do autoritarismo brasileiro. A maior e mais profunda dessas cicatrizes é, no entanto, a escravidão. “Não é à toa que abro o livro com esse debate. Nem todos os países de governos populistas e autoritários contaram com mão de obra escrava como nós contamos. A escravidão virou uma linguagem entre nós e com graves consequências. Esse é um grande nó da história brasileira, um nó que a gente não desata e que gera esse racismo tão estrutural e institucional que vivemos hoje”.

A historiadora e antropóloga aponta que a Constituição de 1988 foi uma tentativa de mitigar esses danos históricos, mas falhou em não reconhecer uma parcela da população que não se sentiu atendida por ela. “A Constituição de 1988 é generosa com muitos dos nossos direitos, mas falhou em alguns pontos. Um deles foi não mencionar a situação dos militares. Outro foi não tratar dos privilégios de uma sociedade desigual. Minha geração falhou em não ver isso, em não ver essa parte da população que não se espelhava na utopia da Constituição”.

Para Schwarcz, esse é um dos fatores que explicam “como os brasileiros colocamos no poder um projeto autoritário”. As soluções para romper com a cultura de autoritarismo, afirma, passam pelo fortalecimento das instituições e pela educação. Mas não há garantias.  “História não é que nem bula de remédio. A tristeza da História é que, muitas vezes, em vez de irmos para frente, voltamos atrás”, diz.



domingo, 3 de novembro de 2019

5 países que apostam, e muito, na educação





Por Ana Luiza Basilio - Conheça a trajetória de nações que valorizam os professores e são exemplos de modelos educacionais do mundo.

Se é difícil encontrar paralelo no mundo com o que se passa no Brasil de maneira geral, é quase impossível detectar uma experiência semelhante quando se trata de educação. Na maioria dos países, ricos ou pobres, ao Norte ou ao Sul, a compreensão do ensino como esteio da civilização e da prosperidade é disseminada e defendida pela sociedade. Ninguém se atreveria a cortar o orçamento das universidades sob a alegação de “balbúrdia”, interromper o pagamento de bolsistas de mestrado ou doutorado sem critérios claros ou chantagear os eleitores com a possibilidade de secar as torneiras caso uma reforma da Previdência não seja aprovada. O mais provável destino de um governo que assim se comportasse seria uma breve temporada no poder – e o ostracismo político.

Na Europa, berço do Estado de Bem-Estar Social, o ensino, do maternal à universidade, é público e gratuito, salvo raras exceções, e não há líder populista de direita capaz de convencer a população de que o sistema prejudica a economia e estimula o privilégio. Ao contrário. A educação universal e às expensas do Estado é vista como uma condição básica para garantir a igualdade e o desenvolvimento. Nas nações em que escolas públicas e privadas convivem, o ensino pago é preenchido por uma minoria – ou filhos de milionários ou estudantes com dificuldades de adaptação.

Não bastasse, enquanto o governo Bolsonaro escolhe a educação e a ciência como os inimigos número 1, nações que há muito tempo atingiram a universalização do ensino preparam-se para a nova etapa do capitalismo: a revolução industrial e tecnológica chamada de 4.0, tsunami que destruirá milhares de profissões e milhões de empregos ao redor do mundo nas próximas décadas. Corrida para a qual, obviamente, o Brasil se torna cada vez menos competitivo.

A seguir, listamos cinco países que, em diferentes medidas, redobraram seus esforços para adaptar os cidadãos à nova fase do desenvolvimento:

Portugal
Desde que a OCDE, a organização das nações desenvolvidas, começou, em 2000, a aplicar um sistema de avaliação entre seus afiliados, Portugal registra melhoras constantes nos indicadores. Em 2015, os estudantes do país conseguiram notas acima da média em ciências, leitura e matemática. Um dos segredos é o maciço investimento nas famílias e nos primeiros seis anos de uma criança. Entre 2003 e 2015, o total de mães com ensino secundário completo subiu 41%. Quanto maior a escolaridade materna, mostram os estudos, maior o rendimento dos filhos na escola. Nem a crise econômica que devastou Portugal em 2008 interferiu nas políticas públicas.

A educação básica em Portugal é dividida em três ciclos e leva 12 anos para ser concluída. O Ensino Superior contempla dois sistemas: universitário e politécnico. No primeiro, são conferidos aos estudantes os graus de licenciatura, mestrado e doutorado. Os institutos politécnicos concentram-se na formação profissional prática.

Finlândia
Referência mundial, a Finlândia constantemente aparece no topo das avaliações de qualidade da educação. A revolução no ensino começou ainda nos anos 1960, quando os impostos gerados pela indústria de papel e celulose sustentaram a adoção das políticas de Bem-Estar Social. O ensino gratuito e universal foi adotado na década de 70 e desde então mira o conhecimento interdisciplinar e não estanque. Matemática, ciência e música são apresentadas aos estudantes por meio de projetos integrados, forma de combinar os conteúdos e adaptá-los ao cotidiano dos alunos. Como a individualidade é estimulada e não reprimida, uma sala reúne até cinco níveis de estudantes em torno de uma mesma tarefa.

Na Finlândia, é mais difícil virar docente do que médico. É preciso, no mínimo, mestrado para dar aula

O governo incentiva a adoção de novas tecnologias e modelos de aprendizagem. Os professores são valorizados e exigidos. É preciso mestrado para dar aulas em uma escola de Ensino Fundamental. Na Finlândia é mais difícil ser professor – em 2015, a taxa de aprovação nos cursos de formação de professores foi de 4,2% – do que médico, cujo índice de aprovação nas faculdades é de 8,8%.



A FINLÂNDIA mira o ensino multidisciplinar, o CANADÁ, a integração
e a igualdade de oportunidades

Canadá
Em 2015, o país ocupou o terceiro lugar do ranking da OCDE em leitura e ficou entre os dez melhores na avaliação geral. O sistema canadense organiza-se a partir de províncias autônomas, ou seja, não há um sistema nacional, mas políticas distintas em cada localidade. Um traço comum no sistema é, no entanto, a igualdade de oportunidades. Há um esforço para integrar o grande contingente de migrantes que todos os anos aporta no país. Em geral, um aluno de fora leva três anos para alcançar uma performance semelhante aos estudantes de origem canadense.

São também expressivos os investimentos em alfabetização, treinamento de professores, bibliotecas e reforço para alunos com dificuldade de aprendizagem.

Os bons índices refletem ainda a homogeneidade socioeconômica. Há pouca diferença de rendimento escolar entre os alunos mais e menos pobres. No último Pisa, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, a variação de notas causada por diferenças socioeconômicas foi de apenas 9%, em comparação aos 20% da França e 17% de Cingapura, para citar dois casos.

A rede pública abriga o maior número de estudantes. Em Ontário, 94% dos alunos estão matriculados em unidades públicas. De maneira geral, o sistema repele a lógica “academicista”, de fixação de conteúdos, e estimula a autonomia. Aos 14 anos, os canadenses podem escolher as disciplinas que mais interessam e montar a própria grade curricular. A educação obrigatória vai até os 16 anos.

Alemanha
Depois de um contingenciamento na última década causado pela crise econômica de 2008, a Alemanha anunciou a retomada dos investimentos públicos. Serão 160 bilhões de euros a mais entre 2021 e 2030 para universidades e centros de pesquisa científica independentes. “Com isso, estaremos garantindo a prosperidade do nosso país no longo prazo”, afirmou Anja Karliczek, ministra da Educação, durante o anúncio dos novos investimentos.

A Alemanha acaba de anunciar um incremento de 160 bilhões de euros no orçamento de universidades e centros de pesquisa

Além de mais dinheiro para a contratação de professores, as universidades terão acesso a um fundo de 150 milhões de euros destinado a projetos especiais.


Para "garantir a prosperidade no longo prazo", como afirmou a
Ministra da Educação, a ALEMANHA aposta no Ensino Superior

Estônia
Na última edição do Pisa, o ranking da OCDE, a Estônia apareceu em terceiro lugar, atrás apenas de Cingapura e Japão. O sucesso educacional recente do pequeno país báltico sustenta-se em um tripé: acesso universal e gratuito em todas as etapas do ensino, autonomia garantida a professores e escolas e valorização da educação pela sociedade.

O governo investe atualmente 6% do PIB em educação. Enquanto o Brasil gasta 6,6 mil reais com estudantes do Ensino Fundamental, a Estônia aplica o equivalente a 28 mil reais. Boa parte do dinheiro garantiu o aumento de renda dos professores, que cresceu 80% nos últimos dez anos. O piso salarial é de 1,2 mil euros, cerca de 5 mil reais.

Um currículo nacional orienta os ciclos de aprendizagem, mas as escolas têm autonomia para aplicá-lo da maneira que acharem melhor. Como na Finlândia, as disciplinas são integradas e não respeitam limites burocráticos. Ética e educação digital estão entre os temas mais explorados. Exige-se no mínimo mestrado dos professores.



Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...