sábado, 11 de abril de 2020

Educação em tempos de pandemia


Por Carolina Figueiredo Filho






As es­colas pú­blicas, en­quanto ins­ti­tui­ções so­ciais e braços do Es­tado, de­ve­riam se voltar por com­pleto, em termos de sua es­tru­tura fí­sica e de seu corpo de ser­vi­dores, para con­tri­buir com a su­pe­ração da maior emer­gência da so­ci­e­dade atual: a crise sa­ni­tária, econô­mica e so­cial. É ex­tre­ma­mente ir­ra­ci­onal, con­tra­pro­du­cente e ine­fi­ci­ente (para usar termos tão caros à eco­nomia ca­pi­ta­lista) que o prin­cipal papel das es­colas e dos pro­fis­si­o­nais da edu­cação neste mo­mento de ca­la­mi­dade pú­blica e de cres­cente abrupta de de­sem­prego, fome, ado­e­ci­mento e mortes seja dis­se­minar con­teúdos cur­ri­cu­lares to­tal­mente alheios à con­jun­tura, como se hou­vesse uma certa nor­ma­li­dade na ordem das coisas, que já foi rom­pida.

É como se en­trassem ati­rando na es­cola e o ex­clu­sivo cui­dado da Se­cre­taria de Edu­cação fosse não in­ter­romper as aulas a des­peito dos tiros, pâ­nicos e mortes. A ‘con­tri­buição’ da es­cola pú­blica pri­mor­dial agora seria atuar fe­chando os olhos para a re­a­li­dade, como se es­ti­vesse numa bolha, e re­pro­duzir de qual­quer jeito uma série de con­teúdos pen­sados em uma si­tu­ação com­ple­ta­mente di­fe­rente da que es­tamos vi­vendo?

A pre­o­cu­pação com as de­fa­sa­gens edu­ca­ci­o­nais e com o acesso da ju­ven­tude em iso­la­mento ao con­teúdo his­to­ri­ca­mente acu­mu­lado é fun­da­mental, muito le­gí­tima, justa e ne­ces­sária. No en­tanto, as me­didas em re­lação a esta questão pre­cisam ser dis­cu­tidas a fundo, cons­truídas, pla­ne­jadas, ela­bo­radas e im­ple­men­tadas quando o grave ce­nário da pan­demia tiver ce­dido e não houver mais a re­co­men­dação do iso­la­mento so­cial. O que fazer em re­lação a esse as­pecto não será re­sol­vido com re­ceitas sim­ples, ata­lhos ou fór­mulas má­gicas e nem serão vi­a­bi­li­zadas apenas no âm­bito mu­ni­cipal ou es­ta­dual. O ce­nário de pa­ra­li­sação das es­colas é global, de pro­por­ções nunca antes vi­ven­ci­adas. Se­gundo es­ti­ma­tiva da UNESCO, quase 1 bi­lhão de cri­anças e jo­vens estão sem aulas no mundo. As res­postas para isso também pre­ci­sarão ser fruto de re­flexão e ex­pe­ri­ên­cias co­le­tivas in­ter­na­ci­o­nais, res­pal­dadas em pes­quisas, aná­lises e di­ag­nós­ticos pós-epi­demia, sempre di­a­lo­gadas com cada con­texto es­pe­cí­fico.

A pro­posta do En­sino a Dis­tância e do ho­mes­cho­o­ling como meios por ex­ce­lência de re­so­lução do pro­blema não cum­prem nada do que mi­la­gro­sa­mente vem sendo ale­gado pelas au­to­ri­dades. A im­ple­men­tação goela abaixo do EaD é um tapa-bu­raco, não tem pro­posta pe­da­gó­gica séria fun­da­men­tada, é ir­re­a­li­zável ope­ra­ci­o­nal­mente em tão pouco tempo de forma pro­fis­si­onal, qua­li­ta­tiva e mas­siva, ig­nora que, de acordo com o IBGE, quase 60% da po­pu­lação não têm com­pu­tador em casa e em torno de 25% não têm in­ternet. Au­menta, por­tanto, as de­si­gual­dades.

Além disso, o EaD exige que estas cri­anças e jo­vens sejam su­per­vi­si­o­nadas e au­xi­li­adas pelos pais ou res­pon­sá­veis. E se estes pre­cisam sair porque exe­cutam um ser­viço es­sen­cial? E se, quando há um com­pu­tador e in­ternet, os pais pre­cisam dele para re­a­lizar o home of­fice? E se há al­guém in­fec­tado com o co­ro­na­vírus em casa, pre­ci­sando de cui­dados que de­mandam uma ver­da­deira ope­ração de guerra? E se al­guém pró­ximo à fa­mília fa­leceu por conta do co­ro­na­vírus? E se as cri­anças pre­cisam cuidar do ir­mão­zinho en­quanto a mãe está do­ente ou vai tra­ba­lhar? Qual a pri­o­ri­dade nestes casos? Re­a­lizar as ati­vi­dades on­line?

Tais in­da­ga­ções podem ser feitas em re­lação ao corpo do­cente também, que pre­ci­sará do com­pu­tador, da in­ternet, da saúde fí­sica e emo­ci­onal sua e de seus fa­mi­li­ares em meio a maior epi­demia dos úl­timos 100 anos para ela­borar um tra­balho para o qual nunca foi con­tra­tado, ou seja, ela­borar vídeo-aulas e ati­vi­dades on­line. Só há uma única razão pela qual o EaD pa­rece ser efe­tivo em meio ao caos: o con­trole pelo Es­tado do tempo das pro­fes­soras e pro­fes­sores e, junto com este, o as­sédio e ame­aças de corte de sa­lá­rios e rup­tura de con­trato se estes não per­ma­ne­cerem tantas horas por dia co­nec­tados em frente ao com­pu­tador ou se não en­tre­garem uma quan­ti­dade de­ter­mi­nada de vídeo-aulas ela­bo­radas in­di­vi­du­al­mente sem qual­quer dis­cussão co­le­tiva de pro­jeto po­lí­tico-pe­da­gó­gico.

O ato edu­ca­tivo ba­seado no con­tato pre­sen­cial e nas vi­vên­cias co­ti­di­anas entre as cri­anças e jo­vens da turma e destes com a pro­fes­sora e o pro­fessor con­ti­nuam im­pres­cin­dí­veis para o efe­tivo pro­cesso de en­sino-apren­di­zagem, para a ma­tu­ração cog­ni­tiva, emo­ci­onal e psí­quica e para a for­mação pes­soal e so­cial dos es­tu­dantes. Em tempos em que as ob­vi­e­dades pre­cisam ser re­a­fir­madas - como a pre­missa de que as vidas hu­manas estão acima da sanha pelo lucro e acu­mu­lação - , vale a pena dizer mais uma vez, su­bindo nos om­bros de grandes pen­sa­dores da Pe­da­gogia, da Psi­co­logia, da So­ci­o­logia, que a edu­cação está muito para além da sim­ples trans­missão de con­teúdos e que os es­tu­dantes não são meros de­po­si­tá­rios e re­pro­du­tores de in­for­ma­ções, fór­mulas, datas, re­gras e con­ceitos.

O iso­la­mento so­cial re­forçou a im­por­tância do mo­vi­mento, da brin­ca­deira, da con­so­li­dação de uma ro­tina, da in­te­ração entre as cri­anças como parte fun­da­mental do de­sen­vol­vi­mento hu­mano e da apren­di­zagem. O es­paço da es­cola é aquele que pro­por­ciona a mi­lhões de cri­anças e jo­vens bra­si­leiros o ali­mento diário, o en­contro, o livro, a quadra, pátio ou campo para correr, jogar, se di­vertir, o con­vívio com a di­fe­rença, a so­ci­a­li­zação. Por essas e muitas ou­tras, a prá­tica edu­ca­tiva não pode ser subs­ti­tuída como um todo por me­ca­nismos tec­no­ló­gicos. Ha­verá pre­juízo para a edu­cação dos es­tu­dantes do mundo e não há má­gica que dê conta deste im­passe na atual si­tu­ação.

A es­cola pú­blica deve estar ori­en­tada neste mo­mento para pro­teger a vida, a saúde e os meios de so­bre­vi­vência de seus alunos, fa­mi­li­ares e pro­fis­si­o­nais. O di­reito à edu­cação passa pela ga­rantia de que seja pú­blica, gra­tuita, de qua­li­dade e so­ci­al­mente re­fe­ren­ciada, isto é, pre­cisa res­ponder às de­mandas so­ciais.

A edu­cação tem função so­cial, que não se en­cerra nela mesma. Faltam más­caras? Falta ál­cool gel? Faltam ali­mentos? Faltam ou­tros itens de hi­giene? Faltam dados pre­cisos do es­pa­lha­mento do vírus? Falta um ma­pe­a­mento de sua dis­se­mi­nação? Faltam in­for­ma­ções se­guras? Faltam es­paços para abrigar os sem teto? Como a es­cola e os ser­vi­dores pú­blicos podem con­tri­buir di­ante destas ur­gên­cias?

A es­cola possui co­mu­ni­cação di­reta com muitas fa­mí­lias de um bairro e está na linha de frente do con­tato pri­mário com a po­pu­lação vul­ne­rável. É im­pres­cin­dível que a ins­ti­tuição es­colar seja um ponto de apoio do poder pú­blico pe­rante estas co­mu­ni­dades. O papel das pro­fes­soras, pro­fes­sores, fun­ci­o­ná­rios e ges­tores edu­ca­ci­o­nais agora pre­cisa ser rein­ven­tado e ade­quado às exi­gên­cias his­tó­ricas, a exemplo de: pro­mover um grande le­van­ta­mento dos casos lo­cais de pes­soas com sin­tomas do vírus e mo­ni­to­ra­mento de sua evo­lução; le­van­ta­mento dos casos lo­cais de fa­mí­lias sem renda, co­mida e itens de hi­giene; or­ga­nizar dis­tri­buição destes itens de forma se­gura e hi­gi­ê­nica, seja no pró­prio es­paço fí­sico da es­cola, seja em modo de mu­tirão pelas casas, sempre con­tando com equi­pa­mento de pro­teção; trans­formar os pré­dios es­co­lares, ora oci­osos, em hos­pi­tais de cam­panha ou pontos de co­leta e dis­tri­buição de man­ti­mentos e in­for­ma­ções se­guras, ou es­paços de mo­radia e aco­lhi­mento para pes­soas em si­tu­ação de rua ou de­sa­bri­gadas.

O En­sino à Dis­tância não re­solve ne­nhum dos pro­blemas, nem os mais ur­gentes em re­lação à epi­demia, nem os de médio e longo prazo das de­fa­sa­gens edu­ca­ci­o­nais ad­vindas desta crise. De­fi­ni­ti­va­mente, a prin­cipal emer­gência das cri­anças e jo­vens aten­didos pela es­cola pú­blica agora, em abril de 2020, em meio a uma epi­demia que tende a co­lapsar os sis­temas de saúde do mundo todo e a matar par­cela ex­pres­siva da po­pu­lação mun­dial, não é a de­manda por aulas à dis­tância que re­pro­duzam in­for­ma­ções e con­teúdos cur­ri­cu­lares. É hora de a es­cola pú­blica for­ta­lecer a re­lação com a co­mu­ni­dade de que faz parte - algo tão rei­vin­di­cado pela pró­pria le­gis­lação edu­ca­ci­onal -, con­ferir ca­ráter pe­da­gó­gico ao exer­cício prá­tico da ci­da­dania e dar sen­tido vivo, di­nâ­mico e in­te­gral à sua função e com­pro­misso so­cial.


Ca­ro­lina Fi­guei­redo Filho é pro­fes­sora da rede es­ta­dual pau­lista e mi­li­tante do Co­le­tivo Quinze de Ou­tubro.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...