Por Carolina Figueiredo Filho
As escolas públicas, enquanto instituições sociais e braços do Estado, deveriam se voltar por completo, em termos de sua estrutura física e de seu corpo de servidores, para contribuir com a superação da maior emergência da sociedade atual: a crise sanitária, econômica e social. É extremamente irracional, contraproducente e ineficiente (para usar termos tão caros à economia capitalista) que o principal papel das escolas e dos profissionais da educação neste momento de calamidade pública e de crescente abrupta de desemprego, fome, adoecimento e mortes seja disseminar conteúdos curriculares totalmente alheios à conjuntura, como se houvesse uma certa normalidade na ordem das coisas, que já foi rompida.
É como se entrassem atirando na escola e o exclusivo cuidado da Secretaria de Educação fosse não interromper as aulas a despeito dos tiros, pânicos e mortes. A ‘contribuição’ da escola pública primordial agora seria atuar fechando os olhos para a realidade, como se estivesse numa bolha, e reproduzir de qualquer jeito uma série de conteúdos pensados em uma situação completamente diferente da que estamos vivendo?
A preocupação com as defasagens educacionais e com o acesso da juventude em isolamento ao conteúdo historicamente acumulado é fundamental, muito legítima, justa e necessária. No entanto, as medidas em relação a esta questão precisam ser discutidas a fundo, construídas, planejadas, elaboradas e implementadas quando o grave cenário da pandemia tiver cedido e não houver mais a recomendação do isolamento social. O que fazer em relação a esse aspecto não será resolvido com receitas simples, atalhos ou fórmulas mágicas e nem serão viabilizadas apenas no âmbito municipal ou estadual. O cenário de paralisação das escolas é global, de proporções nunca antes vivenciadas. Segundo estimativa da UNESCO, quase 1 bilhão de crianças e jovens estão sem aulas no mundo. As respostas para isso também precisarão ser fruto de reflexão e experiências coletivas internacionais, respaldadas em pesquisas, análises e diagnósticos pós-epidemia, sempre dialogadas com cada contexto específico.
A proposta do Ensino a Distância e do homeschooling como meios por excelência de resolução do problema não cumprem nada do que milagrosamente vem sendo alegado pelas autoridades. A implementação goela abaixo do EaD é um tapa-buraco, não tem proposta pedagógica séria fundamentada, é irrealizável operacionalmente em tão pouco tempo de forma profissional, qualitativa e massiva, ignora que, de acordo com o IBGE, quase 60% da população não têm computador em casa e em torno de 25% não têm internet. Aumenta, portanto, as desigualdades.
Além disso, o EaD exige que estas crianças e jovens sejam supervisionadas e auxiliadas pelos pais ou responsáveis. E se estes precisam sair porque executam um serviço essencial? E se, quando há um computador e internet, os pais precisam dele para realizar o home office? E se há alguém infectado com o coronavírus em casa, precisando de cuidados que demandam uma verdadeira operação de guerra? E se alguém próximo à família faleceu por conta do coronavírus? E se as crianças precisam cuidar do irmãozinho enquanto a mãe está doente ou vai trabalhar? Qual a prioridade nestes casos? Realizar as atividades online?
Tais indagações podem ser feitas em relação ao corpo docente também, que precisará do computador, da internet, da saúde física e emocional sua e de seus familiares em meio a maior epidemia dos últimos 100 anos para elaborar um trabalho para o qual nunca foi contratado, ou seja, elaborar vídeo-aulas e atividades online. Só há uma única razão pela qual o EaD parece ser efetivo em meio ao caos: o controle pelo Estado do tempo das professoras e professores e, junto com este, o assédio e ameaças de corte de salários e ruptura de contrato se estes não permanecerem tantas horas por dia conectados em frente ao computador ou se não entregarem uma quantidade determinada de vídeo-aulas elaboradas individualmente sem qualquer discussão coletiva de projeto político-pedagógico.
O ato educativo baseado no contato presencial e nas vivências cotidianas entre as crianças e jovens da turma e destes com a professora e o professor continuam imprescindíveis para o efetivo processo de ensino-aprendizagem, para a maturação cognitiva, emocional e psíquica e para a formação pessoal e social dos estudantes. Em tempos em que as obviedades precisam ser reafirmadas - como a premissa de que as vidas humanas estão acima da sanha pelo lucro e acumulação - , vale a pena dizer mais uma vez, subindo nos ombros de grandes pensadores da Pedagogia, da Psicologia, da Sociologia, que a educação está muito para além da simples transmissão de conteúdos e que os estudantes não são meros depositários e reprodutores de informações, fórmulas, datas, regras e conceitos.
O isolamento social reforçou a importância do movimento, da brincadeira, da consolidação de uma rotina, da interação entre as crianças como parte fundamental do desenvolvimento humano e da aprendizagem. O espaço da escola é aquele que proporciona a milhões de crianças e jovens brasileiros o alimento diário, o encontro, o livro, a quadra, pátio ou campo para correr, jogar, se divertir, o convívio com a diferença, a socialização. Por essas e muitas outras, a prática educativa não pode ser substituída como um todo por mecanismos tecnológicos. Haverá prejuízo para a educação dos estudantes do mundo e não há mágica que dê conta deste impasse na atual situação.
A escola pública deve estar orientada neste momento para proteger a vida, a saúde e os meios de sobrevivência de seus alunos, familiares e profissionais. O direito à educação passa pela garantia de que seja pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, isto é, precisa responder às demandas sociais.
A educação tem função social, que não se encerra nela mesma. Faltam máscaras? Falta álcool gel? Faltam alimentos? Faltam outros itens de higiene? Faltam dados precisos do espalhamento do vírus? Falta um mapeamento de sua disseminação? Faltam informações seguras? Faltam espaços para abrigar os sem teto? Como a escola e os servidores públicos podem contribuir diante destas urgências?
A escola possui comunicação direta com muitas famílias de um bairro e está na linha de frente do contato primário com a população vulnerável. É imprescindível que a instituição escolar seja um ponto de apoio do poder público perante estas comunidades. O papel das professoras, professores, funcionários e gestores educacionais agora precisa ser reinventado e adequado às exigências históricas, a exemplo de: promover um grande levantamento dos casos locais de pessoas com sintomas do vírus e monitoramento de sua evolução; levantamento dos casos locais de famílias sem renda, comida e itens de higiene; organizar distribuição destes itens de forma segura e higiênica, seja no próprio espaço físico da escola, seja em modo de mutirão pelas casas, sempre contando com equipamento de proteção; transformar os prédios escolares, ora ociosos, em hospitais de campanha ou pontos de coleta e distribuição de mantimentos e informações seguras, ou espaços de moradia e acolhimento para pessoas em situação de rua ou desabrigadas.
O Ensino à Distância não resolve nenhum dos problemas, nem os mais urgentes em relação à epidemia, nem os de médio e longo prazo das defasagens educacionais advindas desta crise. Definitivamente, a principal emergência das crianças e jovens atendidos pela escola pública agora, em abril de 2020, em meio a uma epidemia que tende a colapsar os sistemas de saúde do mundo todo e a matar parcela expressiva da população mundial, não é a demanda por aulas à distância que reproduzam informações e conteúdos curriculares. É hora de a escola pública fortalecer a relação com a comunidade de que faz parte - algo tão reivindicado pela própria legislação educacional -, conferir caráter pedagógico ao exercício prático da cidadania e dar sentido vivo, dinâmico e integral à sua função e compromisso social.
Carolina Figueiredo Filho é professora da rede estadual paulista e militante do Coletivo Quinze de Outubro.
FONTE: Correio da Cidadania
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