Na pandemia, divulgação científica assume protagonismo — mas ataques vêm, principalmente de ultraliberais e fascistas, temerosos de mudanças. Porém, insistir em “produção neutra”, com receio de parecer partidário, é erro grave…
Por Rafael Evangelista
Imagem: Science for the People |
Desde o início da pandemia, aumentaram exponencialmente os ataques a pesquisadores e divulgadores de ciência. Isso aconteceu assim que foram implementadas medidas de distanciamento social e paralisação de atividades, providências recomendadas por autoridades científicas e endossadas e justificadas por divulgadores. Ameaças de violência física, tentativas de invasão de contas em mídias sociais e plataformas, ataques de conotação sexual (misoginia e homofobia), jornalistas de ciência e comunicadores científicos passaram a ser alvo do mesmo tipo de perseguição que profissionais da informação política já vem sofrendo há algum tempo.
Esse ataques, obviamente lamentáveis, são um sinal de que, neste momento importantíssimo, a divulgação científica está cumprindo o seu papel, está falando para além da bolha que, ironicamente, criou para si mesma. Mais importante, alguns estão assumindo um protagonismo necessário em defesa da precaução, do cuidado e da vida, acima das demandas de um sistema produtivo que se recusa a parar a despeito das mortes que produz.
A divulgação científica entrou em rota de colisão com o neofascismo, que hoje é a tropa de choque do neoliberalismo. É isso que explica os ataques, não o argumento boboca contra a polarização. Justamente o contrário, se há algo que imobiliza a divulgação científica, que a torna inerte para a sociedade, é a incapacidade que ela vez ou outra demonstra de apontar quando a ciência está sendo instrumentalizada contra o social. Quando pretende falar de um lugar “neutro”, acima da política e longe dos corpos que a sustentam e consomem, ela acaba iludindo a si mesma de que está assumindo uma posição objetiva. Então, de fato começa a falar pelos objetos, a falar em favor de um sistema mais dedicado a produzir coisas e valor financeiro do que sustentar uma vida decente dos sujeitos.
Isso não significa demandar uma ciência e uma divulgação panfletária ou algo do tipo. É natural que se module a mensagem, que se busque falar para um público diverso, social e politicamente. É parte do esforço de ser o mais abrangente possível. Mas isso não pode nos fazer embarcar na onda da negação da política, que é justamente o efeito que o neofascismo busca produzir. Nem tampouco nos fazer relutar em condenar o abominável ou examinar racionalmente o que é absurdo. Isolamento vertical não faz sentido, ponto, não precisamos de vinte mil experimentos para apontar isso.
A intersecção entre o negacionismo da covid-19 e o negacionismo climático é brutal e isso não é fortuito. O negacionismo climático só tem espaço na mídia e ecoa por setores não científicos porque responde aos interesses da indústria de combustíveis fósseis, aquela que se resiste a alterar a rota de seus lucros. Do mesmo modo, o negacionismo da pandemia repousa em um neoliberalismo que se recusa a parar, que por um lado busca restaurar a “normalidade” a todo custo, conclamando as pessoas a irem às ruas. Por outro, busca a criação de um novo normal acelerado por tecnologias de vigilância e controle social. Elas permitiriam a continuidade do sistema, ainda que por outros meios, viabilizando uma abertura-distante, uma vida que se isola socialmente e só entra em contato mediada por sistemas de informação cibernética de comando e controle. São dois lados de uma mesma moeda, que não endereça o que a ciência sociológica e a economia política já apontavam estar na fonte do problema: a desigualdade social e econômica, que inviabiliza os controles sanitários especialmente nos lugares mais pobres.
Alguns setores passam a promover controvérsia (onde não há) porque desejam obstaculizar certas medidas e mudanças necessárias, que são contrárias a seus interesses. E esses setores, em especial esses novos conservadores neofascistas, atuam numa “língua” e num padrão de comportamento, promovendo conflito, que é diferente das controvérsias costumeiras do meio científico. Historicamente, esses grupos radicais, que normalmente vivem na margem, ganham força justamente no momento em que emerge uma parceria com os grandes negócios. É a indústria do combustível fóssil, por exemplo, patrocinando negacionistas climáticos que, aos olhos dos neofascistas, aparecem como adversários de políticas internacionais de caráter global. Foi o que aconteceu no Reino Unido da Era Thatcher, a ascensão do neoliberalismo britânico pode ser explicada em parte pela atração de votos vindos do National Front, que se deu assim que os conservadores abarcaram o discurso anti-imigração. No microcosmo brasileiro acontece o mesmo: setores conservadores impulsionaram ou foram coniventes com movimentos neofascistas, numa aliança pelos interesses do mercado.
Com força política, os neofascistas vão agir como neofascistas, ou seja, vão entrar no debate público tratando o adversário político como alguém a ser, no limite, fisicamente eliminado. É esse curto-circuito que causa estranhamento.
A divulgação científica está habituada com uma prática de debate que tem duas fontes principais. Uma é emprestada de uma imagem da tradição científica e se dá pela contraposição de argumentos considerados como factuais pelos diferentes campos científicos e ancorados em publicações de respeito. Outra é a do nicho, o que encerra uma ironia. Embora a divulgação científica se proponha a falar “para fora”, para o público, ao longo dos anos elas constituiu um fora que é um dentro de si: a sua audiência cativa, que conhece os principais nomes e polêmicas do meio.
Não é com essa cortesia que o neofascimo se porta. Sua lógica não é a da guerra constante, com adversários sendo transformados em inimigos, devendo ser vencidos (e não convencidos), calados e eliminados. Ele seduz e atrai e busca coesão interna pelo ódio, pela morte, e não pelo encantamento ou pela transformação.
As redes sociais fizeram da comunicação um palco em que seus agentes se personalizaram e ganharam status de celebridades. Não por culpa ou necessariamente vaidade dos sujeitos, mas porque isso é da natureza da nova estrutura do mercado de informação. Antes a produção da informação aparecia como um processo mais coletivo, com os veículos ganhando a linha de frente no imaginário público. Hoje a fragmentação dos canais levou a uma disputa que reforça a personalização e a exposição de si. Quando tudo está bem a confiança dos sujeitos fica energizada. Mas, na hora dos ataques neofascistas, são esses sujeitos que física e emocionalmente correm riscos.
Dá pra culpar o modelo, no qual as redes sociais são a melhor imagem e as grandes plataformas Big Tech os principais agentes? Dá, criou-se uma estrutura que isola múltiplas iniciativas e favorece uma competição imediatista por cliques em decorrência da exposição. Sem falar no quanto as empresas de tecnologia e informação, com seus algoritmos, impulsionam aquilo que está “quente” ou é “tendência” em detrimento de critérios mais qualitativos. Mas também é preciso reconhecer que a insistência em pensar uma divulgação científica neutra/inerte, como se fosse ela mesma uma “ciência” acima de tudo e de todos, dá a falsa impressão de que é possível fazer comunicação sem política.
Para o problema das plataformas podemos nos mirar pelas experiências históricas. Quando a mídia broadcast surgiu, lá no início do século XX, houve um esforço regulatório importante, fruto de conflitos políticos e de debate na sociedade, que estabeleceu regras tendo em vista a idealização de um debate público racional. Em alguns países, em especial os europeus, essas regras foram muito bem desenhadas e aplicadas, e são países que em geral tem as melhores políticas públicas. Outros, como EUA, até construíram regras importantes de regulação do mercado de mídia, porém essas normas foram gradualmente sendo abandonadas por pressão de grandes grupos econômicos. O mundo já viveu uma onda fascista e medidas de regulação de mídia foram tomadas também em reação a isso. As nossas ações precisam se inspirar nas experiências exitosas do passado.
Quanto às reações violentas típicas do neofascismo, a solução de curto prazo é se proteger e fortalecer os laços solidários, lembrando que podemos ter divergências, mas o campo antifascista é um só — até porque eles nos veem assim. O que não podemos fazer é nos curvar, deixar de dizer o que é necessário e essencial porque temos medo de desagradar ou parecermos partidários. Ao contrário, a ascensão do neofascismo deve muito à negação da política, muitas vezes um subterfúgio para calar oponentes. A raiz do problema está nesse pacto obscurecido e obscurantista entre neoliberalismo e neofascismo, ao qual infelizmente foi dada legitimidade pública. Tempos de pandemia exigem que não douremos a pílula.
Rafael Evangelista
Rafael de Almeida Evangelista é graduado em Ciências Sociais (1998), mestre em Linguística (2005) e doutor em Antropologia Social (2010), todos os títulos pela Unicamp. Também é especialista em Jornalismo Científico (2000). Como pesquisador tem trabalhado com os temas: história e ideologias das tecnologias da informação; utopias da cibernética e cultura do Vale do Silício; gameficação; redes sociais, internet e trabalho não remunerado; regulação da internet e vigilância em sistemas informacionais. E-mail: rae@unicamp.br
FONTE: Outras Palavras
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