Sob pandemia, e com vasta vacinação necessária, orçamento da saúde em 2021 tem corte de R$ 43 bi e afeta diretamente os municípios. Maia articula a criação dos “planos de saúde populares”; governo quer retomar privatização das UBSs
Por Marta
Salomon, na Piauí
Quando
os casos notificados de coronavírus no Brasil ainda se contavam em centenas, o
então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta adotou o colete azul com o
logotipo do Sistema Único de Saúde. Não era apenas um uniforme de trabalho, mas
“um símbolo da defesa ao sistema único e universal de saúde pública”, ele diz,
num livro sobre sua experiência no ministério, recentemente publicado.
Dois
ministros depois, sem previsão de desfecho para a pandemia e com uma campanha
de vacinação contra o coronavírus pela frente, o SUS enfrenta a perspectiva de
redução de gastos em 2021 – uma redução que decorre inclusive de medidas que
Mandetta adotou ou apoiou. O orçamento do Ministério da Saúde chegou ao
Congresso com quase 43 bilhões de reais a menos do que os gastos autorizados
neste ano.
Como
se não bastassem os possíveis cortes, há pressões no Congresso Nacional para
ampliar o espaço da iniciativa privada no sistema de saúde, em debate que
aguarda o fim das eleições municipais. Os prefeitos eleitos serão diretamente
atingidos pelos resultados porque as prefeituras respondem atualmente pelos
atendimentos básicos do SUS.
Objeto
de um decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro no final de outubro e
revogado dois dias depois, a construção e a ampliação de Unidades Básicas de
Saúde (UBS) terão menos verbas federais em 2021, de acordo com o projeto de lei
orçamentária enviado pelo governo ao Congresso (500 mil reais a menos). O mesmo
acontece com os investimentos federais na estruturação da rede de atenção
primária à Saúde, a porta de entrada no SUS, hoje bancada majoritariamente
pelos próprios municípios. Nesses investimentos, a redução chega a 30%, um
corte de 15 milhões de reais.
A
oferta e a formação de médicos para a atenção primária também têm a proposta de
gastos corrigida abaixo da inflação em 2021, com a implementação do Programa
Médicos pelo Brasil, que substitui o Programa Mais Médicos. Com menor
investimento em formação, os médicos passam a ser contratados por uma entidade sem
fins lucrativos, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde
(ADAPS).
E
o novo modelo de financiamento da atenção primária, introduzido em novembro de
2019 por Mandetta e pautado por critérios de produtividade, também representará
um reajuste abaixo da inflação nos repasses aos municípios, mostra estudo feito
por Francisco Funcia, consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde. O estudo
compara os projetos de lei orçamentária de 2020 e de 2021, no nível mais
detalhado de gastos. A inflação considerada pelo governo é de 2,13%.
O
maior vilão da redução de gastos é a emenda constitucional 95, do novo regime
fiscal, que limitou gastos públicos, inclusive com a Saúde. A aprovação da
emenda constitucional do teto de gastos, em 2016, contou com o apoio de
Mandetta, quando era deputado federal. Procurado pela piauí, Mandetta não quis
se manifestar.
Uma
campanha do Conselho Nacional da Saúde (CNS) lançada em agosto, intitulada “O
SUS merece mais em 2021”, reivindica gastos adicionais entre 35,34 bilhões e
44,9 bilhões de reais no próximo ano. O primeiro valor garantiria o mesmo
volume de despesas autorizadas extraordinariamente para a Saúde em 2020, por
causa da pandemia. O maior deles ainda corrigiria esse valor pela inflação e
pelo percentual de crescimento da população idosa. O CNS é composto por
usuários, trabalhadores, gestores e prestadores de serviço do SUS. A petição
pública, com mais de 550 mil assinaturas, chama atenção para os custos de uma
campanha de vacinação contra o novo coronavírus e de procedimentos que tiveram
que ser adiados por causa da pandemia, com o número de contaminados se
aproximando dos 6 milhões de pessoas.
“Como
vai ter mais dinheiro para financiar a Saúde sem aumentar impostos?”, questiona
Claudio Lottenberg, presidente do Instituto Coalizão Saúde. A entidade, formada
por representantes da cadeia produtiva do setor de atendimento médico – como
laboratórios farmacêuticos, planos de saúde e hospitais –, também apresentou a
sua “agenda prioritária” para a Saúde. A proposta tem como pilar o aumento da
participação da iniciativa privada no setor. Lottenberg já teve reuniões com o
ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia
(DEM-RJ).
Em
julho, Maia lançou como uma de suas prioridades até o final da gestão, em
fevereiro, votar um projeto de fortalecimento e modernização do SUS. A
coordenação dos trabalhos foi delegada por ele à deputada Margarete Coelho
(PP-PI). “A ideia é fazer ainda na gestão dele (Maia), tem muita gente
trabalhando, não precisamos sair do zero”, disse a deputada à piauí. Sem
adiantar detalhes da proposta que fará depois das eleições municipais,
Margarete Coelho avaliou que a atenção primária é “um grande nó”.
Para
Lottenberg, a atenção primária é uma oportunidade de expansão para os planos de
saúde. Com planos mais baratos, ele explica, usuários do SUS poderiam recorrer
a serviços privados e, dessa forma, “desafogariam” o sistema público, que
ficaria responsável pelos casos mais graves. “O setor privado tem muito
interesse em trabalhar na atenção primária”, resume.
A
ideia de planos de saúde mais baratos e com cobertura reduzida recicla proposta
feita em 2016 pelo ex-ministro da Saúde e líder do governo na Câmara, Ricardo
Barros (PP-PR). “Quanto maior for o sistema privado, melhor será para o país”,
insiste o presidente do Instituto Coalizão Saúde. Ele alega que os planos
populares precisam de uma regulação que dê às empresas mais segurança jurídica
para operá-los, limitando a sua atuação à atenção primária e livrando as
empresas de se verem obrigadas, por eventuais ações na Justiça, a fornecer
serviços e procedimentos mais complexos, como internação hospitalar, por
exemplo.
A
reação da opinião pública ao decreto presidencial editado no final de outubro –
que abria caminho à ampliação das parcerias privadas na construção e na gestão
das Unidades Básicas de Saúde – leva Nésio Fernandes, secretário de Saúde do
Espírito Santo e integrante do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde
(Conass), a acreditar que uma tentativa de reforma do SUS perdeu força, assim
como as parcerias público-privadas. O conselho divulgou nota crítica ao
decreto, no qual enxergou a imposição de uma lógica de mercado ao SUS: “O
decreto não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo
de negócio”. O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto,
também condenou o decreto pela suposta intenção de privatizar as Unidades Básicas
de Saúde.
Questionada
pela piauí, a secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos da
Presidência da República (PPI) informou que espera restabelecer o decreto
editado e suspenso pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro. “O PPI espera
rediscutir a agenda, que é importante para o país. A ideia é que o parceiro
privado faça a gestão operacional, mas a condução da política pública
continuará sendo feita pelo Ministério da Saúde, mantidos os preceitos de
universalidade e gratuidade do SUS”.
O
principal argumento do governo é que haveria 4 mil Unidades Básicas de Saúde em
obras ainda não concluídas nos municípios. O decreto foi criticado sobretudo
por ter sido editado sem uma discussão prévia.
A
iniciativa privada já participa da atenção primária por meio de parcerias
público-privadas. O município de Belo Horizonte, por exemplo concedeu à
iniciativa privada a construção e a manutenção de quarenta Unidades Básicas de
Saúde em 2016. A primeira concessão administrativa na área da saúde funciona
desde 2010 no Hospital do Subúrbio de Salvador.
Dados
do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) indicam que mais de
97% dos 47.407 estabelecimentos de atenção primária do país são administrados
pelos municípios. Nesse número estão incluídos os estabelecimentos que
funcionam em parceria com a iniciativa privada, nos municípios. Estudo em curso
no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base no Sistema de
Informação sobre Orçamento Público em Saúde (Siops), mostra, no entanto, que
15% dos gastos com a atenção primária têm como destino instituições privadas ou
filantrópicas.
O
modelo previsto pelo polêmico decreto de Bolsonaro tem avançado na construção e
operação de creches públicas. Teresina (PI) estrutura projeto para até quarenta
novas creches no município. Em Alagoas, uma consultoria irá estruturar um
projeto-piloto para a concessão à iniciativa privada de 67 creches na capital e
na região metropolitana de Maceió, informa a secretaria do PPI.
Especialistas
indicam que o principal obstáculo às parcerias público-privadas para as
Unidades Básicas de Saúde seria a falta de dinheiro nos municípios para bancar
os pagamentos ao setor privado pela prestação de serviços. Transferir a gestão
à iniciativa privada não resolve se continua faltando dinheiro aos
municípios.