terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Governo articula o próximo ataque ao SUS


Sob pandemia, e com vasta vacinação necessária, orçamento da saúde em 2021 tem corte de R$ 43 bi e afeta diretamente os municípios. Maia articula a criação dos “planos de saúde populares”; governo quer retomar privatização das UBSs

 


Por Marta Salomon, na Piauí


Quando os casos notificados de coronavírus no Brasil ainda se contavam em centenas, o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta adotou o colete azul com o logotipo do Sistema Único de Saúde. Não era apenas um uniforme de trabalho, mas “um símbolo da defesa ao sistema único e universal de saúde pública”, ele diz, num livro sobre sua experiência no ministério, recentemente publicado.

Dois ministros depois, sem previsão de desfecho para a pandemia e com uma campanha de vacinação contra o coronavírus pela frente, o SUS enfrenta a perspectiva de redução de gastos em 2021 – uma redução que decorre inclusive de medidas que Mandetta adotou ou apoiou. O orçamento do Ministério da Saúde chegou ao Congresso com quase 43 bilhões de reais a menos do que os gastos autorizados neste ano. 

Como se não bastassem os possíveis cortes, há pressões no Congresso Nacional para ampliar o espaço da iniciativa privada no sistema de saúde, em debate que aguarda o fim das eleições municipais. Os prefeitos eleitos serão diretamente atingidos pelos resultados porque as prefeituras respondem atualmente pelos atendimentos básicos do SUS.

Objeto de um decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro no final de outubro e revogado dois dias depois, a construção e a ampliação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) terão menos verbas federais em 2021, de acordo com o projeto de lei orçamentária enviado pelo governo ao Congresso (500 mil reais a menos). O mesmo acontece com os investimentos federais na estruturação da rede de atenção primária à Saúde, a porta de entrada no SUS, hoje bancada majoritariamente pelos próprios municípios. Nesses investimentos, a redução chega a 30%, um corte de 15 milhões de reais.

A oferta e a formação de médicos para a atenção primária também têm a proposta de gastos corrigida abaixo da inflação em 2021, com a implementação do Programa Médicos pelo Brasil, que substitui o Programa Mais Médicos. Com menor investimento em formação, os médicos passam a ser contratados por uma entidade sem fins lucrativos, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS).

E o novo modelo de financiamento da atenção primária, introduzido em novembro de 2019 por Mandetta e pautado por critérios de produtividade, também representará um reajuste abaixo da inflação nos repasses aos municípios, mostra estudo feito por Francisco Funcia, consultor técnico do Conselho Nacional de Saúde. O estudo compara os projetos de lei orçamentária de 2020 e de 2021, no nível mais detalhado de gastos. A inflação considerada pelo governo é de 2,13%.

O maior vilão da redução de gastos é a emenda constitucional 95, do novo regime fiscal, que limitou gastos públicos, inclusive com a Saúde. A aprovação da emenda constitucional do teto de gastos, em 2016, contou com o apoio de Mandetta, quando era deputado federal. Procurado pela piauí, Mandetta não quis se manifestar.

Uma campanha do Conselho Nacional da Saúde (CNS) lançada em agosto, intitulada “O SUS merece mais em 2021”, reivindica gastos adicionais entre 35,34 bilhões e 44,9 bilhões de reais no próximo ano. O primeiro valor garantiria o mesmo volume de despesas autorizadas extraordinariamente para a Saúde em 2020, por causa da pandemia. O maior deles ainda corrigiria esse valor pela inflação e pelo percentual de crescimento da população idosa. O CNS é composto por usuários, trabalhadores, gestores e prestadores de serviço do SUS. A petição pública, com mais de 550 mil assinaturas, chama atenção para os custos de uma campanha de vacinação contra o novo coronavírus e de procedimentos que tiveram que ser adiados por causa da pandemia, com o número de contaminados se aproximando dos 6 milhões de pessoas.

“Como vai ter mais dinheiro para financiar a Saúde sem aumentar impostos?”, questiona Claudio Lottenberg, presidente do Instituto Coalizão Saúde. A entidade, formada por representantes da cadeia produtiva do setor de atendimento médico – como laboratórios farmacêuticos, planos de saúde e hospitais –, também apresentou a sua “agenda prioritária” para a Saúde. A proposta tem como pilar o aumento da participação da iniciativa privada no setor. Lottenberg já teve reuniões com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Em julho, Maia lançou como uma de suas prioridades até o final da gestão, em fevereiro, votar um projeto de fortalecimento e modernização do SUS. A coordenação dos trabalhos foi delegada por ele à deputada Margarete Coelho (PP-PI). “A ideia é fazer ainda na gestão dele (Maia), tem muita gente trabalhando, não precisamos sair do zero”, disse a deputada à piauí. Sem adiantar detalhes da proposta que fará depois das eleições municipais, Margarete Coelho avaliou que a atenção primária é “um grande nó”.  

Para Lottenberg, a atenção primária é uma oportunidade de expansão para os planos de saúde. Com planos mais baratos, ele explica, usuários do SUS poderiam recorrer a serviços privados e, dessa forma, “desafogariam” o sistema público, que ficaria responsável pelos casos mais graves. “O setor privado tem muito interesse em trabalhar na atenção primária”, resume.

A ideia de planos de saúde mais baratos e com cobertura reduzida recicla proposta feita em 2016 pelo ex-ministro da Saúde e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). “Quanto maior for o sistema privado, melhor será para o país”, insiste o presidente do Instituto Coalizão Saúde. Ele alega que os planos populares precisam de uma regulação que dê às empresas mais segurança jurídica para operá-los, limitando a sua atuação à atenção primária e livrando as empresas de se verem obrigadas, por eventuais ações na Justiça, a fornecer serviços e procedimentos mais complexos, como internação hospitalar, por exemplo.

A reação da opinião pública ao decreto presidencial editado no final de outubro – que abria caminho à ampliação das parcerias privadas na construção e na gestão das Unidades Básicas de Saúde – leva Nésio Fernandes, secretário de Saúde do Espírito Santo e integrante do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), a acreditar que uma tentativa de reforma do SUS perdeu força, assim como as parcerias público-privadas. O conselho divulgou nota crítica ao decreto, no qual enxergou a imposição de uma lógica de mercado ao SUS: “O decreto não trata de um modelo de governança, mas é uma imposição de um modelo de negócio”. O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, também condenou o decreto pela suposta intenção de privatizar as Unidades Básicas de Saúde.

Questionada pela piauí, a secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República (PPI) informou que espera restabelecer o decreto editado e suspenso pelo presidente Jair Bolsonaro em outubro. “O PPI espera rediscutir a agenda, que é importante para o país. A ideia é que o parceiro privado faça a gestão operacional, mas a condução da política pública continuará sendo feita pelo Ministério da Saúde, mantidos os preceitos de universalidade e gratuidade do SUS”.

O principal argumento do governo é que haveria 4 mil Unidades Básicas de Saúde em obras ainda não concluídas nos municípios. O decreto foi criticado sobretudo por ter sido editado sem uma discussão prévia.

A iniciativa privada já participa da atenção primária por meio de parcerias público-privadas. O município de Belo Horizonte, por exemplo concedeu à iniciativa privada a construção e a manutenção de quarenta Unidades Básicas de Saúde em 2016. A primeira concessão administrativa na área da saúde funciona desde 2010 no Hospital do Subúrbio de Salvador. 

Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) indicam que mais de 97% dos 47.407 estabelecimentos de atenção primária do país são administrados pelos municípios. Nesse número estão incluídos os estabelecimentos que funcionam em parceria com a iniciativa privada, nos municípios. Estudo em curso no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base no Sistema de Informação sobre Orçamento Público em Saúde (Siops), mostra, no entanto, que 15% dos gastos com a atenção primária têm como destino instituições privadas ou filantrópicas.

O modelo previsto pelo polêmico decreto de Bolsonaro tem avançado na construção e operação de creches públicas. Teresina (PI) estrutura projeto para até quarenta novas creches no município. Em Alagoas, uma consultoria irá estruturar um projeto-piloto para a concessão à iniciativa privada de 67 creches na capital e na região metropolitana de Maceió, informa a secretaria do PPI.

Especialistas indicam que o principal obstáculo às parcerias público-privadas para as Unidades Básicas de Saúde seria a falta de dinheiro nos municípios para bancar os pagamentos ao setor privado pela prestação de serviços. Transferir a gestão à iniciativa privada não resolve se continua faltando dinheiro aos municípios. 


FONTE: Outras Palavras

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Como arquitetar a escola pós-pandemia




Propostas para um ano desafiador, e de mudança nas prefeituras. Mera reposição de aulas não bastará. Será preciso criar nova sensibilidade pedagógica, que proponha aprendizagem capaz de vencer desigualdades e ajudar a reprojetar futuro



Por Roberto Rafael Dias da Silva


A recente posse das novas administrações municipais veio acompanhada de um conjunto de novos desafios ligados à gestão da pandemia, às possibilidade de retomada econômica e às inquietações que envolvem a escolarização e seus propósitos. Será um período bastante emblemático, como sabemos; porém, poderá servir para colocarmos em discussão alguns de nossos projetos educativos para este início de século XXI. Neste texto vou me deter as questões educacionais e priorizarei, ainda que indiretamente, um diálogo com os recém-empossados secretários e secretárias municipais de educação. Em perspectiva progressista, preciso reconhecer inicialmente que a retomada das atividades escolares por meio de um planejamento consistente e a alocação de equipamentos de proteção individual é um importante ponto de partida. Neste texto, bastante breve, vou defender que a questão precisa ser complexificada em pelo menos quatro direções, quais sejam: a) uma nova repactuação acerca dos propósitos e finalidades formativas; b) a diferenciação curricular e a abertura a diferentes modalidades de acesso a conhecimentos relevantes; c) o reconhecimento de que a escola pode contribuir para pensar sobre as formas econômicas emergentes, apostando na criatividade e no compartilhamento; d) e, por fim, um redirecionamento curricular para pensar sobre as novas demandas do século XXI, incluindo uma incontornável reflexão sobre a crise climática e seus efeitos.

O primeiro aspecto que gostaria de salientar remete-se a uma necessária revisão de nossas expectativas acerca da escolarização. Não resta dúvidas de que a questão do desempenho escolar e do engajamento acadêmico dos estudantes continua sendo fundamental. Todavia, o ano da pandemia exigiu uma nova sensibilidade pedagógica que nos permitiu revalorizar as práticas de cuidado mútuo, de socialização, de outras vivências formativas e os próprios rituais simbólicos da escola. Planejar o calendário letivo dos próximos anos nos impulsiona a ultrapassar a lógica da mera reposição de aulas e conteúdos que, com certo tom melancólico, é um discurso que tem predominado e que ambiciona renovar o passado da escola. Ultrapassando a lógica do desempenho e da acumulação de conteúdos, é momento de uma nova repactuação sobre as finalidades e os propósitos formativos da escola.

Para um diálogo com os secretários de educação de nossos municípios um segundo aspecto que pretendo destacar encontra-se na diferenciação curricular e na multimodalidade da organização curricular. Será importante a criação de planos de aprendizagem individualizados a serem negociados com as coordenações, com os professores e professoras e com as próprias famílias. À medida em que, provavelmente, ainda teremos encontros síncronos e assíncronos, as escolas precisam manifestar sua abertura ao desenvolvimento de certos dispositivos de diferenciação curricular – que sejam capazes de preencher as vivências escolares dos estudantes de conhecimentos e competências sintonizadas com seu potencial formativo, com os currículos escolares e com os planos individualizados. Tenho defendido que não se trata de uma mera “customização”; mas, de um ajuste das pautas coletivas às disposições formativas individuais. Organizar estes planos será uma tarefa urgente a ser conduzida pelas equipes pedagógicas, especialmente ao enfrentar a questão das desigualdades.

O terceiro ponto que considero central neste momento revela-se em uma preocupação com a questão do desenvolvimento econômico e das contribuições que a escola pode realizar com relação a esta finalidade. A pandemia colocou em evidência uma crise das formas organizativas do capitalismo, sejam aquelas ligadas à industrialização, sejam outras ligadas ao turismo e ao entretenimento, por exemplo. Os analistas internacionais têm nos informado que esta não será a última pandemia deste século e caso no futuro voltemos a nos preocupar com essa questão, precisamos iniciar um movimento de formação humana marcado por novas conexões entre escola e trabalho. Em diálogo com algumas secretarias de educação tenho proposto a organização de núcleos de experiências formativas que apostem em formas econômicas emergentes: a cooperação, o compartilhamento, uma relação artesanal com o trabalho, a busca pela criatividade, a promoção de novas relações de consumo, valorização de experiências comunitárias e a busca por propósitos e modos de vida mais conscientes.

Por fim, o quarto e último ponto a dialogar com as equipes gestoras das secretarias de educação é um redirecionamento curricular para as demandas do século XXI. As  migrações internacionais, a interculturalidade, a crise ambiental, o declínio das formas democráticas, a cidadania digital ou mesmo as políticas do bem-viver precisam ser levadas em consideração. Objetivamente, tenho insistido que as redes municipais mantenham fóruns permanentes para discutir a questão climática com os estudantes, de modo interdisciplinar, engendrando leituras críticas e criativas para esta problemática global. Estamos diante de uma geração de meninos e meninas empoderadas que, por meio de uma forte contribuição educativa, poderão construir alternativas viáveis para um futuro humano melhor.

A possibilidade de dialogar com as propostas desenvolvidas pelas secretarias municipais de educação, que se instaura por meio deste texto, direciona-me a repensar os modelos de governança escolar, tornando-os mais plurais, democráticos e abertos aos temas emergentes deste século. A pandemia nos ofereceu a oportunidade de repactuar os nossos propósitos educacionais e nos comprometeu com o desenvolvimento de planos individualizados de aprendizagem, delineados pelos variados usos das tecnologias digitais. Por outro lado, de modo complementar, temos a oportunidade de renovar as nossas pautas curriculares organizando núcleos de experiências formativas e alimentando esperanças para a construção de outros futuros. Desejo que as futuras secretárias e secretários de educação reafirmem o compromisso com a escola pública de qualidade e que consigam promover novos arranjos formativos – que renovem o diálogo com as comunidades e que assumam, com prudência e ousadia, a tarefa de redesenhar a formação humana no século XXI!


Referências:

COLLET, Jordi; TORT, Antoni (Orgs.). La gobernanza escolar democrática. Madrid: Morata, 2016.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? – como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2020.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Inovações permanentes e desigualdades crescentes: elementos para a composição de uma teorização curricular crítica. In: BOTO, Carlota et alli (Orgs.). A escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios. São Paulo: FEUSP, 2020, p. 169-182.Disponívelem: https://www.researchgate.net/publication/347511655_Inovacoes_permanentes_e_desigualdades_crescentes_elementos_para_a_composicao_de_uma_teorizacao_curricular_critica

 

FONTE:  FPAbramo

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