quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Como arquitetar a escola pós-pandemia




Propostas para um ano desafiador, e de mudança nas prefeituras. Mera reposição de aulas não bastará. Será preciso criar nova sensibilidade pedagógica, que proponha aprendizagem capaz de vencer desigualdades e ajudar a reprojetar futuro



Por Roberto Rafael Dias da Silva


A recente posse das novas administrações municipais veio acompanhada de um conjunto de novos desafios ligados à gestão da pandemia, às possibilidade de retomada econômica e às inquietações que envolvem a escolarização e seus propósitos. Será um período bastante emblemático, como sabemos; porém, poderá servir para colocarmos em discussão alguns de nossos projetos educativos para este início de século XXI. Neste texto vou me deter as questões educacionais e priorizarei, ainda que indiretamente, um diálogo com os recém-empossados secretários e secretárias municipais de educação. Em perspectiva progressista, preciso reconhecer inicialmente que a retomada das atividades escolares por meio de um planejamento consistente e a alocação de equipamentos de proteção individual é um importante ponto de partida. Neste texto, bastante breve, vou defender que a questão precisa ser complexificada em pelo menos quatro direções, quais sejam: a) uma nova repactuação acerca dos propósitos e finalidades formativas; b) a diferenciação curricular e a abertura a diferentes modalidades de acesso a conhecimentos relevantes; c) o reconhecimento de que a escola pode contribuir para pensar sobre as formas econômicas emergentes, apostando na criatividade e no compartilhamento; d) e, por fim, um redirecionamento curricular para pensar sobre as novas demandas do século XXI, incluindo uma incontornável reflexão sobre a crise climática e seus efeitos.

O primeiro aspecto que gostaria de salientar remete-se a uma necessária revisão de nossas expectativas acerca da escolarização. Não resta dúvidas de que a questão do desempenho escolar e do engajamento acadêmico dos estudantes continua sendo fundamental. Todavia, o ano da pandemia exigiu uma nova sensibilidade pedagógica que nos permitiu revalorizar as práticas de cuidado mútuo, de socialização, de outras vivências formativas e os próprios rituais simbólicos da escola. Planejar o calendário letivo dos próximos anos nos impulsiona a ultrapassar a lógica da mera reposição de aulas e conteúdos que, com certo tom melancólico, é um discurso que tem predominado e que ambiciona renovar o passado da escola. Ultrapassando a lógica do desempenho e da acumulação de conteúdos, é momento de uma nova repactuação sobre as finalidades e os propósitos formativos da escola.

Para um diálogo com os secretários de educação de nossos municípios um segundo aspecto que pretendo destacar encontra-se na diferenciação curricular e na multimodalidade da organização curricular. Será importante a criação de planos de aprendizagem individualizados a serem negociados com as coordenações, com os professores e professoras e com as próprias famílias. À medida em que, provavelmente, ainda teremos encontros síncronos e assíncronos, as escolas precisam manifestar sua abertura ao desenvolvimento de certos dispositivos de diferenciação curricular – que sejam capazes de preencher as vivências escolares dos estudantes de conhecimentos e competências sintonizadas com seu potencial formativo, com os currículos escolares e com os planos individualizados. Tenho defendido que não se trata de uma mera “customização”; mas, de um ajuste das pautas coletivas às disposições formativas individuais. Organizar estes planos será uma tarefa urgente a ser conduzida pelas equipes pedagógicas, especialmente ao enfrentar a questão das desigualdades.

O terceiro ponto que considero central neste momento revela-se em uma preocupação com a questão do desenvolvimento econômico e das contribuições que a escola pode realizar com relação a esta finalidade. A pandemia colocou em evidência uma crise das formas organizativas do capitalismo, sejam aquelas ligadas à industrialização, sejam outras ligadas ao turismo e ao entretenimento, por exemplo. Os analistas internacionais têm nos informado que esta não será a última pandemia deste século e caso no futuro voltemos a nos preocupar com essa questão, precisamos iniciar um movimento de formação humana marcado por novas conexões entre escola e trabalho. Em diálogo com algumas secretarias de educação tenho proposto a organização de núcleos de experiências formativas que apostem em formas econômicas emergentes: a cooperação, o compartilhamento, uma relação artesanal com o trabalho, a busca pela criatividade, a promoção de novas relações de consumo, valorização de experiências comunitárias e a busca por propósitos e modos de vida mais conscientes.

Por fim, o quarto e último ponto a dialogar com as equipes gestoras das secretarias de educação é um redirecionamento curricular para as demandas do século XXI. As  migrações internacionais, a interculturalidade, a crise ambiental, o declínio das formas democráticas, a cidadania digital ou mesmo as políticas do bem-viver precisam ser levadas em consideração. Objetivamente, tenho insistido que as redes municipais mantenham fóruns permanentes para discutir a questão climática com os estudantes, de modo interdisciplinar, engendrando leituras críticas e criativas para esta problemática global. Estamos diante de uma geração de meninos e meninas empoderadas que, por meio de uma forte contribuição educativa, poderão construir alternativas viáveis para um futuro humano melhor.

A possibilidade de dialogar com as propostas desenvolvidas pelas secretarias municipais de educação, que se instaura por meio deste texto, direciona-me a repensar os modelos de governança escolar, tornando-os mais plurais, democráticos e abertos aos temas emergentes deste século. A pandemia nos ofereceu a oportunidade de repactuar os nossos propósitos educacionais e nos comprometeu com o desenvolvimento de planos individualizados de aprendizagem, delineados pelos variados usos das tecnologias digitais. Por outro lado, de modo complementar, temos a oportunidade de renovar as nossas pautas curriculares organizando núcleos de experiências formativas e alimentando esperanças para a construção de outros futuros. Desejo que as futuras secretárias e secretários de educação reafirmem o compromisso com a escola pública de qualidade e que consigam promover novos arranjos formativos – que renovem o diálogo com as comunidades e que assumam, com prudência e ousadia, a tarefa de redesenhar a formação humana no século XXI!


Referências:

COLLET, Jordi; TORT, Antoni (Orgs.). La gobernanza escolar democrática. Madrid: Morata, 2016.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? – como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2020.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Inovações permanentes e desigualdades crescentes: elementos para a composição de uma teorização curricular crítica. In: BOTO, Carlota et alli (Orgs.). A escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios. São Paulo: FEUSP, 2020, p. 169-182.Disponívelem: https://www.researchgate.net/publication/347511655_Inovacoes_permanentes_e_desigualdades_crescentes_elementos_para_a_composicao_de_uma_teorizacao_curricular_critica

 

FONTE:  FPAbramo

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