Propostas para um ano desafiador, e de mudança nas
prefeituras. Mera reposição de aulas não bastará. Será preciso criar nova
sensibilidade pedagógica, que proponha aprendizagem capaz de vencer
desigualdades e ajudar a reprojetar futuro
Por Roberto Rafael Dias da Silva
A recente posse das novas administrações municipais
veio acompanhada de um conjunto de novos desafios ligados à gestão da pandemia,
às possibilidade de retomada econômica e às inquietações que envolvem a
escolarização e seus propósitos. Será um período bastante emblemático, como
sabemos; porém, poderá servir para colocarmos em discussão alguns de nossos
projetos educativos para este início de século XXI. Neste texto vou me deter as
questões educacionais e priorizarei, ainda que indiretamente, um diálogo com os
recém-empossados secretários e secretárias municipais de educação. Em perspectiva
progressista, preciso reconhecer inicialmente que a retomada das atividades
escolares por meio de um planejamento consistente e a alocação de equipamentos
de proteção individual é um importante ponto de partida. Neste texto, bastante
breve, vou defender que a questão precisa ser complexificada em pelo menos
quatro direções, quais sejam: a) uma nova repactuação acerca dos propósitos e
finalidades formativas; b) a diferenciação curricular e a abertura a diferentes
modalidades de acesso a conhecimentos relevantes; c) o reconhecimento de que a
escola pode contribuir para pensar sobre as formas econômicas emergentes,
apostando na criatividade e no compartilhamento; d) e, por fim, um
redirecionamento curricular para pensar sobre as novas demandas do século XXI,
incluindo uma incontornável reflexão sobre a crise climática e seus efeitos.
O primeiro aspecto que gostaria de salientar
remete-se a uma necessária revisão de nossas expectativas acerca da
escolarização. Não resta dúvidas de que a questão do desempenho escolar e do
engajamento acadêmico dos estudantes continua sendo fundamental. Todavia, o ano
da pandemia exigiu uma nova sensibilidade pedagógica que nos permitiu
revalorizar as práticas de cuidado mútuo, de socialização, de outras vivências
formativas e os próprios rituais simbólicos da escola. Planejar o calendário
letivo dos próximos anos nos impulsiona a ultrapassar a lógica da mera
reposição de aulas e conteúdos que, com certo tom melancólico, é um discurso
que tem predominado e que ambiciona renovar o passado da escola. Ultrapassando
a lógica do desempenho e da acumulação de conteúdos, é momento de uma nova
repactuação sobre as finalidades e os propósitos formativos da escola.
Para um diálogo com os secretários de educação de
nossos municípios um segundo aspecto que pretendo destacar encontra-se na
diferenciação curricular e na multimodalidade da organização curricular. Será
importante a criação de planos de aprendizagem individualizados a serem
negociados com as coordenações, com os professores e professoras e com as
próprias famílias. À medida em que, provavelmente, ainda teremos encontros
síncronos e assíncronos, as escolas precisam manifestar sua abertura ao
desenvolvimento de certos dispositivos de diferenciação curricular – que sejam
capazes de preencher as vivências escolares dos estudantes de conhecimentos e
competências sintonizadas com seu potencial formativo, com os currículos
escolares e com os planos individualizados. Tenho defendido que não se trata de
uma mera “customização”; mas, de um ajuste das pautas coletivas às disposições
formativas individuais. Organizar estes planos será uma tarefa urgente a ser
conduzida pelas equipes pedagógicas, especialmente ao enfrentar a questão das
desigualdades.
O terceiro ponto que considero central neste
momento revela-se em uma preocupação com a questão do desenvolvimento econômico
e das contribuições que a escola pode realizar com relação a esta finalidade. A
pandemia colocou em evidência uma crise das formas organizativas do
capitalismo, sejam aquelas ligadas à industrialização, sejam outras ligadas ao
turismo e ao entretenimento, por exemplo. Os analistas internacionais têm nos
informado que esta não será a última pandemia deste século e caso no futuro
voltemos a nos preocupar com essa questão, precisamos iniciar um movimento de
formação humana marcado por novas conexões entre escola e trabalho. Em diálogo
com algumas secretarias de educação tenho proposto a organização de núcleos de
experiências formativas que apostem em formas econômicas emergentes: a
cooperação, o compartilhamento, uma relação artesanal com o trabalho, a busca
pela criatividade, a promoção de novas relações de consumo, valorização de
experiências comunitárias e a busca por propósitos e modos de vida mais
conscientes.
Por fim, o quarto e último ponto a dialogar com as
equipes gestoras das secretarias de educação é um redirecionamento curricular
para as demandas do século XXI. As migrações internacionais, a
interculturalidade, a crise ambiental, o declínio das formas democráticas, a cidadania
digital ou mesmo as políticas do bem-viver precisam ser levadas em
consideração. Objetivamente, tenho insistido que as redes municipais mantenham
fóruns permanentes para discutir a questão climática com os estudantes, de modo
interdisciplinar, engendrando leituras críticas e criativas para esta
problemática global. Estamos diante de uma geração de meninos e meninas
empoderadas que, por meio de uma forte contribuição educativa, poderão
construir alternativas viáveis para um futuro humano melhor.
A possibilidade de dialogar com as propostas
desenvolvidas pelas secretarias municipais de educação, que se instaura por
meio deste texto, direciona-me a repensar os modelos de governança escolar,
tornando-os mais plurais, democráticos e abertos aos temas emergentes deste
século. A pandemia nos ofereceu a oportunidade de repactuar os nossos
propósitos educacionais e nos comprometeu com o desenvolvimento de planos
individualizados de aprendizagem, delineados pelos variados usos das
tecnologias digitais. Por outro lado, de modo complementar, temos a
oportunidade de renovar as nossas pautas curriculares organizando núcleos de
experiências formativas e alimentando esperanças para a construção de outros
futuros. Desejo que as futuras secretárias e secretários de educação reafirmem
o compromisso com a escola pública de qualidade e que consigam promover novos
arranjos formativos – que renovem o diálogo com as comunidades e que assumam,
com prudência e ousadia, a tarefa de redesenhar a formação humana no século
XXI!
Referências:
COLLET, Jordi; TORT, Antoni (Orgs.). La
gobernanza escolar democrática. Madrid: Morata, 2016.
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? –
como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do tempo,
2020.
SILVA, Roberto Rafael Dias da. Inovações
permanentes e desigualdades crescentes: elementos para a composição de uma
teorização curricular crítica. In: BOTO, Carlota et alli (Orgs.). A
escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios. São Paulo:
FEUSP, 2020, p. 169-182.Disponívelem: https://www.researchgate.net/publication/347511655_Inovacoes_permanentes_e_desigualdades_crescentes_elementos_para_a_composicao_de_uma_teorizacao_curricular_critica
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