Por Silvana B. G. da Silva
Dentre as vertentes do Movimento Feminista, existe aquele que foca nas especificidades próprias das mulheres negras, denominado de Feminismo Negro. No Brasil, essa vertente teve início propriamente na década de 1970 com o Movimento de Mulheres Negras (MMN), a partir da percepção de que faltava uma abordagem conjunta das pautas de gênero e raça pelos movimentos sociais da época.
A luta das mulheres negras
O Movimento Feminista não
tinha uma abordagem interseccional e racial, não pautando, dessa forma, a dupla
discriminação que as mulheres negras passam, tanto de gênero quanto
de raça. Além disso, dentro do Movimento Negro, liderado por homens, não
havia interesse em atuar nas lutas contra o sexismo.
As mulheres negras no trabalho
No ambiente profissional, as mulheres negras ainda
possuem menos garantias de direitos do que as mulheres brancas. De acordo com
o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA),
as desigualdades raciais são mostradas tanto na
busca por um emprego quanto nas competições sociais por espaços de poder, as
quais podem estar presentes nas condições de proprietários (as) de uma empresa,
posições de gestão e chefia.
No caso das mulheres negras, elas
estão inseridas em um contexto das desigualdades básicas provocadas pelo
racismo e pelo patriarcalismo. Se for presenciar uma reunião de
trabalho com gestores dentro de uma organização, na maioria das vezes não
existe a presença de uma pessoa negra e, no caso do recorte de gênero, a
situação segue mais complicada, não havendo a representação de uma mulher
negra, na maioria dos casos.
Historicamente, as reivindicações
pelos direitos das mulheres negras com relação ao trabalho tiveram
suas primeiras manifestações na década de 1940. A imprensa negra tinha, até
então, suas publicações voltadas ao universo do homem negro, abdicando de
qualquer intervenção e inclusão de gênero. Foi por meio do jornal Quilombo,
vida, problemas e aspirações do negro que a questão das mulheres
negras foi abordada na época, em um retrato que foi o início das mobilizações
de gênero e raça no Brasil.
Depois dessas primeiras manifestações na mídia
impressa, ocorreram outras por meio de congressos nacionais e das empregadas
domésticas. O trabalho doméstico era e ainda é a área que mais abrange
mulheres, principalmente as negras, por uma questão histórica de falta
de oportunidades que coloca essas mulheres em serviços operacionais. Foi a
partir de todo esse processo de reconhecimento de grupos que reivindicam
pautas específicas que surgiram organizações de lideranças negras
femininas.
As ações sociais das mulheres negras
As lideranças negras femininas em trabalhos sociais
vêm crescendo, com foco na pauta de direitos humanos direcionada às
especificidades das mulheres negras. Porém, muitas vezes, esses trabalhos
sociais são renegados ao segundo plano pelos homens, inclusive os negros.
O movimento feminista, que deveria destacar as
diferentes formas de discriminação e preconceito vivenciadas pelas mulheres,
por vezes considera que o sexismo supera o racismo e que todas passam pela
mesma forma de opressão e subordinação perante os homens.
A filósofa, pesquisadora e ativista do feminismo
negro Djamila Ribeiro sempre destaca a importância de
ter um movimento que trate de forma específica dos preconceitos e
discriminações que as mulheres negras passam. Para ela, existe uma
sociedade na qual opera a supremacia branca e que o movimento feminista
também acaba por fazer parte desse sistema.
A questão da não compreensão das especificidades
das mulheres negras pelas ativistas das demais vertentes do feminismo ocorre
desde tempos mais remotos e exemplos bem relevantes dessa situação
foram a atuação das sufragistas e a luta pela emancipação financeira
feminina na primeira onda do movimento feminista.
Com raras exceções, essas manifestações
eram lideradas por mulheres brancas da classe média alta, as quais
não pautavam as especificidades das mulheres negras, como as lutas
contra o racismo e por melhores condições de trabalho, tanto no Brasil
como em outros países. Faltou então, já nessa época, que todas as mulheres
lutassem em conjunto, pois além do sufrágio e da independência feminina, as
mulheres negras e a as mais pobres reivindicavam melhores condições de
trabalho.
Angela Davis, professora
universitária e filosofa estadunidense, em sua obra Mulheres, raça e
classe, afirma que as organizações de mulheres que lideraram o
movimento sufragista nada faziam pela pauta das população negra. Dentro desse
contexto, as mulheres negras não eram incluídas nessas organizações e nem mesmo
suas denúncias contra o racismo e a discriminação de gênero eram acatadas.
Segundo Davis, as feministas brancas de classe
média não se importavam sequer com a classe trabalhadora branca. Dessa forma,
com as manifestações das chamadas mulheres vetadas, ocorreram as divisões de
grupos feministas.
No contexto atual, essa disparidade continua. As
ativistas do feminismo brancocêntrico (centrado nas experiências e vidas das
mulheres brancas) ainda politizam as desigualdades apenas pelas questões de
gênero, sem um olhar para cada grupo de mulheres em particular.
Nesse ínterim, a antropóloga e professora Lélia
Gonzalez enfatiza de forma bem relevante que “a tomada de consciência
da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial“. Assim, determina-se que a
prioridade das lutas das mulheres negras é o combate ao racismo, pelo fato de
haver um grupo dominante dentro do movimento feminista, que é o das mulheres
brancas.
Contudo, mesmo com esses obstáculos, as mulheres
negras se destacam em lutas que atingem diretamente o próprio opressor, nas
diferentes formas de atuação. As ações acontecem em situações de posses de
terras que lhes são de direito (como no caso das comunidades quilombolas)
e uma funcional organização comunitária, principalmente nas questões
relacionadas às mulheres da periferia. Também destacam-se os
trabalhos na área de educação, por meio do processo de inclusão de pessoas
negras nas universidades e sua permanência nesses espaços e na área de saúde da
população negra.
Diante de todo esse contexto, percebe-se a
necessidade de representatividade da mulher negra dentro da sociedade e,
fazendo o recorte de gênero, de uma nova visão e conscientização do que é ser
racista, de se colocar no lugar do outro e de não colonizar seu lugar de
fala.
A mulher negra na mídia
Na mídia atual, as mulheres negras vêm conquistando
seu espaço, fato esse que pode ser observado nas telenovelas, comerciais e
séries nas quais negras e negros estão começando a ser representados por
personagens que fogem do papel de subordinação. Também se destaca que a cultura
negra, sua religião e danças estão sendo focadas na mídia como forma de
valorização da identidade do povo negro.
Porém, a mídia ainda peca na apresentação de
algumas personagens negras na TV. Observa-se que atrizes e atores negros, não
raramente, são ofendidos por causa de suas características físicas ou por
comparar pessoas negras aos comportamentos considerados “inadequados”, ou seja,
o assaltante, o usuário de drogas, o bêbado, a mulata
assanhada.
Uma outra forma racista de representação das
mulheres negras na mídia é a apropriação da imagem de negras consideradas
belas pelos padrões da sociedade, altas e magras, colocando esse perfil como
“aceitável”. Ainda nesse contexto, utiliza-se muito da hiperssexualização da
mulher negra, a colocando como objeto sexual e de satisfação masculina. Nesse
caso, ressalta-se que há um perfil de mulheres negras que são mais
sexualizadas, as de tom de pele mais claro e de cabelo cacheado ao invés de
crespo.
Muitas vezes a mídia enfatiza que as mulheres
negras não fazem parte dos padrões de beleza aceitáveis pelo senso comum da
sociedade, mostrando essa assimetria como algo normal, isento de uma
problemática. A mídia vincula as mulheres como algo de consumo, porém, no caso
das mulheres negras, a situação é ainda pior. Algumas propagandas de cerveja
deixam nítida a mensagem de que a mulher negra é aquela para expor de uma forma
sexual, focando a mercantilização e a estereotipação dessas mulheres.
Também há casos de racismo por parte da mídia ao
ridicularizar as pessoas negras, como no caso do desrespeito às
vestimentas das religiões de origem africana e do blackface, as associando aos
traços físicos e comportamentos exagerados, gerando piadas que ainda são
aceitáveis como entretenimento.
Como o movimento se organiza na atualidade: a
militância
Para entender como o Movimento de Mulheres Negras
(MMN) se organiza na atualidade, vale contextualizar a sociedade e a
forma como ela encara as questões raciais e de gênero. Dessa forma, destaca-se
que o patriarcado tem bases ideológicas semelhantes ao racismo, focando na
superioridade do homem e na inferioridade da mulher. Nesse ínterim,
prevalecem ideias hegemônicas de uma elite masculina branca, a qual detém a
maior parte dos direitos reconhecidos e goza de uma extensa esfera de
oportunidades.
Dentro das universidades, há pesquisadores que
tomam para si o lugar de fala do povo negro, o que é bastante problemático. Em
suas pesquisas, muitas vezes opinam sobre experiências pelas quais não passam,
deixando de lado a necessidade de vivenciar determinado tipo de discriminação
e de preconceito para que se possa tirar conclusões sobre a melhor forma
de atuação.
Dessa forma, ressalta-se que não há
como considerar apenas o conhecimento advindo do ambiente acadêmico, pois
muitas vezes, na prática, as mulheres negras pautam suas ações em
ambientes nos quais as pessoas apresentam diferentes formas de vulnerabilidade.
Assim, as importantes contribuições às organizações
do MMN são: as experiências diárias, as lideranças comunitárias, o trabalho das
escritoras, as manifestações das empregadas domésticas, a atuação de ativistas
pela abolição da escravidão e pelos direitos civis e as manifestações de
cantoras e compositoras de música popular.
As pautas do Movimento de Mulheres Negras se
caracterizam por cinco temas fundamentais, os quais são:
· Legado de uma
história de luta;
· Natureza
interligada de gênero, raça e classe;
· Combate aos
estereótipos ou imagem de controle;
· Atuação como
mães, professoras e líderes comunitárias;
· Política
sexual.
E é dentro desses temas que se estabelece as
premissas do Feminismo Negro Interseccional, vertente do movimento feminista
que atua na redução das desigualdades por razões raciais e de gênero, as quais
são pontos principais das condições econômicas e sociais de determinado grupo.
Novos contornos do Feminismo Negro no Brasil
O Feminismo Negro tem a experiência como base
legítima para a construção do conhecimento, enfatizando o ângulo particular de
visão do eu, da comunidade e da sociedade. Em sua construção há a necessidade
de interpretações da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem no
dia a dia e o reconhecimento de que a supressão ou aceitação condicional do
conhecimento das mulheres negras está dentro de um contexto machista e racista.
A atuação e concretização da ideologia do Feminismo
Negro parte da necessidade de contrapor a visão equivocada da sociedade de que
a mulher negra tem uma marginalidade peculiar e estigmatizada a uma
subordinação perante os demais indivíduos.
Também estimula um ponto de vista especial das
mulheres negras, em uma visão distinta das ideologias do grupo dominante
branco. Ressalta-se que a luta tem origem nas reflexões e nas ações
políticas.
O atual feminismo negro se configura no Brasil por
meio de estudos e ações concretas em diferentes áreas de atuação. As mulheres
negras se organizam em movimentos sociais, ONG’s e Conselhos por todo o país,
mobilizando-se contra a prática do racismo e do sexismo como foco para a
garantia de igualdade de direitos e de oportunidades. Como negras e mulheres,
elas se capacitaram para não mais aceitar de forma normal a subordinação
histórica e está tendo cada vez mais voz para mostrar e reivindicar contra o
racismo estrutural da sociedade.
REFERÊNCIAS
Dossiê
Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil
Mulher negra
brasileira: um retrato
Tudo é interseccional?
Sobre a relação entre racismo e sexismo
O Movimento
Feminista Negro e suas particularidades na sociedade brasileira
Mulheres
negras no Mercado de trabalho brasileiro: um balanço das políticas públicas
A
invisibilidade da mulher negra na mídia
Experiências
das mulheres na escravidão, pós-abolição e racismo no feminismo em Angela Davis
Graduada em Design de Produto e
acadêmica de Gestão Ambiental, atua profissionalmente na área de
sustentabilidade e como conteudista. Em suas pesquisas acadêmicas, elabora
projetos na área de tecnologia e inovação com foco social e no desenvolvimento
sustentável. Como ativista, segue a vertente do Feminismo Negro e integra a
Rede de Mulheres Negras do Paraná (RMN-PR).
https://www.politize.com.br/feminismo-negro-no-brasil/
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