Os neoliberais sonham
privatizá-las. Os fascistas não escondem seu rancor pela Ciência. E
os patrimonialistas rejeitam sua democratização política e racial.
Indispensável à reconstrução do país, ensino superior é acossado. Como
resistir?
Por Thiago R. Rocha
Nos
últimos anos, em meio à programação diária de absurdos com a qual nos
habituamos a viver no Brasil contemporâneo, a educação, infelizmente, tem tido
um grande destaque, sempre nos fazendo confrontar com discussões sazonais sobre
dois temas centrais: do final de 2020 para o início do ano, o recorde no corte
de verbas em relação ao exercício anterior e, alguns meses depois, as denúncias
sobre o risco de as universidades pararem por – justamente – falta de verba.
Mas
existem sempre também, obviamente, os eventos “extraordinários” que refletem a mencionada
falta de financiamento e revelam o quanto o projeto de destruição, a “boiada da
barbárie”, avança a todo vapor. O último deles veio à tona com a recente “pane”
nos servidores do CNPq que tirou do ar a plataforma Lattes e cujos dados não
sabemos ainda se poderão ser recuperados. Esses eventos, por mais que
absolutamente graves, representam apenas a ponta do iceberg. O fenômeno em si
não é novo no Brasil, mas o nível de aceleração da degradação parece sê-lo.
O
projeto de destruição da universidade pública no nosso país – e,
consequentemente, das condições de se fazer ciência – vem de longa data e
sempre operou, de modo geral, a partir de duas grandes frentes de ataque:
a neoliberal, que nos acompanha mais fortemente desde o final do
século passado, mas que tinha arrefecido ao longo dos governos do PT para
retornar fortemente com Temer; e a ideológica que, também com
seus “vai e vens” históricos, ganha uma força nunca vista antes com a eleição
de Jair Bolsonaro. Nos dois casos, como em quase todos os outros temas, Temer
representa apenas uma ponte para Bolsonaro, mais ou menos como uma jogada
ensaiada em uma partida de vôlei, em que um levanta na medida para o parceiro
cortar.
Porém,
justamente porque essas duas frentes de ataque normalmente andam juntas e se
complementam, essa definição acaba sendo ainda um tanto imprecisa, pois, além
de não se tratar de coisas separadas, o pretexto neoliberal não é menos
ideológico do que o nível “ideológico” propriamente dito. Se quisermos ser mais
exatos, portanto, precisamos reorganizar e renomear essas categorias, incluindo
também uma outra questão, que aparentemente contradiz as duas mencionadas, mas
é quem em última instância cria uma conexão entre ambas as frentes e as
transforma em uma coisa só, ao proporcionar o salto que vai do rancor à negação
absoluta. Neste caso, recolocando o problema, teríamos:
1) A ideologia neoliberal, que sempre viu o
investimento em educação como gasto desnecessário e nunca se conformou com o
fato de o Brasil ser um dos poucos países onde o ensino superior inteiramente
gratuito ainda resiste; 2) a ideologia patrimonialista de
bases racistas e classistas, ancorada acima de tudo na cultura do privilégio
que não aceita abrir os espaços para outras camadas da sociedade; 3) o
ápice da ideologia neofascista, que utiliza-se do rancor gerado pelos
mencionados enfrentamentos ao patrimonialismo para levar às últimas
consequências a barbárie nua e crua como política de Estado, tendo a
universidade como seu principal bode expiatório.
As
três camadas estão intimamente conectadas e são facetas indissociáveis do mesmo
problema, que é a tentativa de controle máximo da sociedade e seus recursos por
parte da elite, o que passa necessariamente pela destruição do pensamento
crítico e se materializa, num nível talvez nunca visto antes, no atual governo.
No
caso da primeira frente de ataque, ela sempre esteve presente
na nossa história, mas toma um grande fôlego no terceiro quartel do século XX,
com os experimentos ultraneoliberais, particularmente na América Latina.
Discorrer sobre o papel da ditadura militar neste aspecto, que muitas vezes é
vendida como tendo sido embasada em um projeto desenvolvimentista de nação, mas
que, para além das excrescências políticas e sociais que conhecemos muito bem,
foi quem começou abrir o país como laboratório dos “Chicago boys”,
tiraria o foco do texto.
Porém,
indo direto às contradições essenciais aqui e já fazendo uma comparação entre
as políticas educacionais na ditadura e no pós-ditadura, podemos dizer: por um
lado, os militares buscaram destruir tudo que se aproximasse
de um pensamento crítico mínimo ao mesmo tempo que construíam algumas
universidades; e, por outro, o período do pós-ditadura nos
trouxe a (ideia de) democracia de volta enquanto consagrava a ideologia neoliberal
como modelo econômico inquestionável no país – o que nos dá a impressão de que
talvez sempre tenhamos um preço a pagar pelas coisas boas que nos acontecem.
Afinal, quem não se lembra das grandes “doações” do patrimônio público (sob a
nomenclatura de “privatizações modernizantes”) da era FHC, incluindo o projeto
de entregar de bandeja também, aos farejadores de dinheiro, as universidades?
Passando
para a segunda frente de ataque, ancorada no patrimonialismo
de sempre e na ideologia exclusivista da elite e da classe média que aspira a
ser elite, a universidade começa a ser um “problema” de fato para essas classes
quando, especialmente no fim da década de 1990, o governo federal, ainda com
FHC, começa a discutir políticas públicas para democratizar em certa medida o
acesso às universidades que eles mesmos buscavam destruir, o que culmina, mais
adiante, felizmente, em programas bem definidos de cotas raciais e
socioeconômicas levadas a cabo de forma efetiva nos governos do PT. Aqui, o
rancor da elite com as universidades começa a entrar numa fase preocupante,
especialmente por se tratar de um governo de esquerda abrindo as universidades
para quem, supostamente, não deveria jamais ter o direito de pisar em uma.
Até
então, os argumentos de desmoralização da universidade, embora já existissem
aos montes, não eram tão difundidos, com exceção de certas caricaturas que se
faziam dos cursos de ciências humanas de forma geral e dos militantes de
esquerda em específico. Mas a situação chega mesmo ao nível do descontrole no
pós-2014 e com toda a movimentação em torno do golpe de 2016, a partir do
pretexto mais do que cínico da “escola sem partido”. Essa foi a fase final da
“transição”, por assim dizer, que abriu o caminho para o cenário que levou Jair
Bolsonaro à Presidência da República, com a tarefa, entre outras, de destruir o
“comunismo”, que, segundo ele e seus seguidores, é maquinado dentro da
universidade pública para ser difundido para o resto da população – sendo o
termo “comunismo” aqui, evidentemente, o guarda-chuva utilizado para
caracterizar qualquer coisa que se coloque contra a barbárie absoluta.
De
certa forma, a “preocupação” que não deixa dormir uma elite de tendências
neofascistas e consumida pelo ódio faz sentido no seguinte ponto: a
universidade funciona, de fato, como uma espécie de muro de contenção das
ideias mesquinhas e autoritárias que ela defende, assim como a própria escola
deveria, desde a infância, formar indivíduos capazes de “se esquivar”, ou mesmo
de se “descontaminar”, dessas ideias que nunca deixaram de circular na
sociedade, especialmente no ambiente de socialização primária que é a família.
E
se, neste sentido, para a elite, a universidade é um antro de “esquerdistas”, é
porque, numa explicação simples e direta, mas suficientemente precisa, quanto
mais os indivíduos estudam, quanto mais eles entendem o funcionamento da
sociedade em que vivem e quanto mais começam a produzir conhecimento sobre
essas descobertas, mais eles tendem a se afastar dessa concepção reacionária de
mundo que boa parte da elite defende: ou seja, mais esses indivíduos gostam da
democracia e de tudo que ela proporciona, como a proposta de uma maior
igualdade entre as pessoas; em suma, mais eles se identificam com as ideias de
esquerda.
Não
foi, portanto, por acaso que, entrando efetivamente na terceira frente
de ataque – a mais virulenta de todas, o ponto final desse processo de
embrutecimento –, o rancor da democratização do acesso se transformou num ódio
muito mais amplo e profundo, o que levou à defesa explícita da destruição da
universidade. A essa altura, esta não poderia mais ser outra coisa senão um
lugar de pura balbúrdia e tráfico de drogas, onde as salas de aulas serviam
apenas como palco de orgias, de modo que todos os frequentadores das
universidades, quase sem exceção, passaram a ser tachados de grandes
pervertidos cujo único propósito de vida é destruir a integridade moral da
família tradicional brasileira. Tudo isso, apesar de a
universidade continuar sendo frequentada em boa parte pela própria classe média
raivosa que seguramente nunca viu, nas universidades em que seus membros sempre
estudaram, nenhum resquício de quaisquer desses delírios. Mas a realidade,
nesse momento, já havia se tornado também um acessório desimportante e mesmo
indesejado.
O
problema, no fim das contas, é que, como é a universidade pública que produz
praticamente a totalidade do conhecimento de ponta que circula no país, a
pandemia levou a situação ao limite do absurdo, no momento em que os cavaleiros
da morte e da ignorância se sentiram obrigados a jogar de uma vez por todas na
lata do lixo não apenas as universidades, mas todo o conhecimento científico
que só pode ser produzido ali, incluindo, neste caso, as próprias áreas de
pesquisa historicamente poupadas e que o próprio capitalismo pretendia deixar
intactas (as áreas de exatas, da saúde, das tecnologias etc.), por serem as que
continuam rendendo muito dinheiro.
Por
um lado, sim, a pandemia veio a calhar para o projeto de destruição das
universidades, a partir do pretexto tradicional da falta de orçamento (a frente
de ataque número 1) que buscava encobrir um pouco o ímpeto neofascista dos que
estão atualmente no poder (comprometidos acima de tudo com a frente de ataque
número 3). Tanto que em agosto de 2019, na calada da noite – e, não por acaso,
o problema só foi percebido no início do ano seguinte, quando a medida entrou
em vigor –, o MEC lançou a Portaria 1.469, que proibia, a partir de janeiro de
2020, de forma ilegal e inconstitucional, a contratação de qualquer servidor
por parte das Instituições Federais de Ensino.
O
argumento era destruir a autonomia financeira das universidades apenas
temporariamente, enquanto a lei orçamentária não fosse sancionada, no início do
ano; mas as mentiras foram apenas se amontoando e a coisa se revelou
interminável: assinada a lei, o problema passou a ser uma questão de respeito a
certos limites orçamentários; depois inventaram que as universidades
dependeriam de uma autorização de vagas por parte do MEC; por fim, quando a tão
esperada “liberação” das vagas aconteceu, a bomba foi jogada no colo dos
reitores: a partir dali, eles poderiam até contratar, mas desde que aceitassem
correr o risco de responder por crime de responsabilidade fiscal. Até hoje, boa
parte desses aprovados seguramente ainda não foi contratada. E eu, que tomei
posse em março de 2020, só estou aqui para contar essa história por conta da
coragem do reitor da UFPA, Emmanuel Tourinho, de peitar esses ataques absurdos.
Mas,
voltando ao argumento em relação à pandemia, a verdade é que, por outro lado,
ela também acabou escancarando de forma muito explícita a importância das
universidades e deixou nu o projeto nefasto de sociedade que pretende aniquilar
toda e qualquer produção de conhecimento fidedigno. Hoje, alguém minimamente
comprometido com os dados da realidade ainda tem dúvidas de que o único
resultado possível dessa empreitada é a desigualdade brutal, a morte e a
destruição?
O
problema por trás disso tudo é que, ao buscar destruir uma parcela da sociedade
– “a universidade esquerdista” ou qualquer outra imagem estereotípica que se
faça daqueles que lutam por um país melhor –, você abre a porteira para a
destruição de uma sociedade inteira, mais ou menos como um câncer cuja
metástase vai se espalhando de forma rápida, intensa e aleatória. Esse é o
risco de embarcar no fascismo com o objetivo aparentemente “estratégico” de
eliminar aqueles de quem eu também não gosto, achando que o fascismo pode ser
controlado ou mantido no ambiente restrito que me agrada. Isso vai totalmente
de encontro à lógica destrutiva do fascismo, que é sair eliminando tudo que
encontra pelo caminho, até chegar ao ponto de eliminar a si mesmo, quando já
não houver mais nada a ser destruído.
A
imagem poética disso, já muito bem difundida, nos é oferecida por Brecht de
forma magistral em seu poema “É preciso agir”: as pessoas começaram a ser
“levadas”, uma a uma, mas o eu lírico não se importou porque se sentia a salvo
pelo fato de não ser uma delas, até que chegou sua hora e já não havia ninguém
que pudesse se importar com ele.
Hoje,
com a negação absoluta de qualquer conhecimento científico por parte dos que
nos governam – o que tem se revelado cada vez mais apenas mais um pretexto para
ganhar muito dinheiro à custa de nossas vidas –, uma parte não negligenciável
dos médicos, para citar um exemplo escandaloso, que se achavam totalmente
imunes à destruição fascista, provavelmente estão se sentindo, no caso dos que
ainda se mantêm atrelados à essência científica da sua profissão, como o eu
lírico de Brecht.
Assim
também está se sentindo a elite golpista pontualmente arrependida – certos
setores da mídia, do mercado, dos partidos de direita tradicionais –, que
embarcou no bolsonarismo de forma “estratégica” para destruir a esquerda e se
apropriar de uma vez por todas do patrimônio público, mas acabou ela mesma
sendo atropelada no meio do caminho e jogada no mesmo pacote dos “esquerdistas”
que elas tanto odeiam. Hoje, se não defendemos a barbárie, não tem jeito, somos
todos “comunistas”, nesse Brasil em transe em que só cabem dois tipos de
pessoas: os que colaboram com o regime (mesmo que de cima do muro) e os que
resistem a ele e o combatem.
No
meio de toda essa catástrofe social, política, econômica, civilizacional e
sanitária, é a universidade pública brasileira e os institutos de pesquisa
(também públicos) que, em boa medida, apesar de todos os ataques, têm
conseguido segurar um pouco a “barra” dessa tragédia que poderia infelizmente
ser muito maior, assim como poderia ter sido muito menor se as universidades e
as outras instituições estivessem funcionando do modo que elas deveriam
funcionar.
O
retorno social, político, econômico, tecnológico e civilizacional que as
universidades dão à sociedade brasileira é incalculável, e é por isso que,
hoje, mais do que nunca, precisamos preservá-la e defendê-la até as últimas
consequências, mas sempre tomando todos os cuidados para não cairmos em mais
uma armadilha dos golpistas “light”, defensores da frente de ataque
número 1, que são os grandes responsáveis por nos encontrarmos nesse buraco
aparentemente sem fim.
Por
isso, para defender esse patrimônio que representa um dos maiores sustentáculos
da democracia no nosso país – o que o combate à pandemia comprova muito bem –,
não podemos jamais perder de vista que, se não é possível reconstruir a
democracia sem colocar a universidade no seu devido lugar, esse processo jamais
poderá ser conduzido pela segunda via de direita – sob
o pseudônimo de “terceira via” ou “centro” –, cuja única diferença em relação
aos fascistas é o fato de se utilizar de métodos mais “discretos” e de se
apresentar numa roupagem mais “cheirosa”.
FONTE: Outras Palavras