No centenário do educador brasileiro, um convite
para repensar o papel do mestre. Em vez de lógicas disciplinantes, uma educação
libertadora requer também outra gramática de poder, que promova o diálogo e a
construção coletiva
Por Roberto Rafael Dias da Silva
Escrever sobre o centenário de Paulo Freire,
considerando minha formação em Pedagogia e meu envolvimento com as questões
educacionais, apresentou-se para mim nas últimas semanas como uma tarefa
inadiável. Freire ocupa um espaço fundamental em nossas prateleiras; não
somente pela difusão internacional de seu pensamento, mas também pela
necessidade de produzir conhecimento em Educação colocando-o em nosso horizonte
de reflexões. Justapondo-se ao seu pensamento, refutando suas hipóteses ou
reelaborando seu repertório de indagações, as últimas gerações de educadores
precisaram colocar o pensamento freiriano em permanente reflexão. Há que se
reconhecer também – e isto ainda é um aspecto bem significativo – o quanto suas
obras são recorrentemente mencionadas e cada vez menos estudadas. Ou ainda,
como destacou o professor Flávio Brayner, no campo educacional construímos
certo culto à personalidade do mestre, acompanhado de uma gradativa
institucionalização de sua obra.
Reconheço a crítica realizada pelo professor
Brayner e tais argumentos servirão de balizas intelectuais para a reflexão que
farei neste texto. Isto é, sob o ethos do pensamento
freiriano, evitarei uma posição de fidelidade para colocar em debate um aspecto
que considero central nas obras do pedagogo brasileiro, qual seja: o
redimensionamento da autoridade educativa. Certamente podemos
ingressar no grande conjunto de suas obras por caminhos variados, considerando
o alargado percurso de estudos elaborado por Freire e seus comentadores.
Escolho examinar – e defender – uma concepção de autoridade que se deriva do
repertório de estudos freirianos e que, contemporaneamente, ainda nos permite
caracterizar um modo de relação pedagógica em nosso país.
A publicação da Pedagogia do Oprimido,
no contexto das tensões políticas experienciadas na América Latina na década de
1960, atribuiu visibilidade para questões que respondiam aos desafios
educativos de nosso continente. A crítica da educação bancária – centrada no
professor e em sua necessidade de transmitir conteúdos – bem como o advento de
uma educação problematizadora – baseada no diálogo, na inconclusão dos seres
humanos e nos temas geradores derivados de sua condição existencial – renovaram
a pedagogia latino-americana. O contexto das lutas democráticas, as demandas
pelo enfrentamento das desigualdades e a difusão da teologia da libertação
serviam de contexto para a emergência de um novo léxico para delinear a
formação humana.
Alvo de inúmeras controvérsias, a relação
educando-educador proposta na obra de Freire ainda é o tema que mais me instiga
a considerar em minhas elaborações educativas. “Ninguém educa ninguém”, “o
diálogo começa na busca do conteúdo programático” ou “os homens se libertam em
comunhão” são expressões que – ainda que muito repetidas (a ponto de quase se
tornarem clichês, como lembra Brayner) – recolocam em debate a temática da
autoridade daquele que educa. Teria Freire abdicado da defesa do ensino e do
lugar do mestre? Teria Freire fabricado um educador com vocação política e
pouco compromisso com a qualidade do ensino? Sua pedagogia foi incapaz de
tornar-se efetiva, ficando circunscrita a modelos alternativos e pedagogias
populares? Irei responder de forma negativa a todas essas indagações, uma vez
que Freire – com uma perspectiva humanista – permite-nos recolocar em debate a
controversa questão da autoridade.
Richard Sennett na obra Autoridade,
publicada originalmente no ano de 1980, auxilia-nos a pensar sobre os laços
afetivos das sociedades modernas. Tais laços afetivos têm consequências
políticas e a autoridade é uma dessas expressões emocionais do poder.
Considerando a ambiguidade destes laços, bem como a dimensão contextual
referente aos modos pelos quais cada sociedade constrói seus vínculos, vamos
reconhecendo que a partir das mutações culturais da década de 1960 somos
desafiados a pensar sobre a autoridade. No contexto pós-guerra e das variadas
ditaduras que ocorreram no século XX, importante destacar que se consolidou uma
espécie de medo ou negação da autoridade.
As imagens modernas acerca do exercício da
autoridade supõem o uso da força, a capacidade de guiar os outros, os modos de
disciplinar ou a capacidade superior de julgamento, como bem descreveu Richard
Sennett. A autoridade, enfim, remete-se a uma força sólida, um refúgio para
nossa proteção ou um guia que nos coloque no melhor caminho. Mais que um mero
exercício de poder, a autoridade é um processo de tradução social (e subjetiva)
das práticas de governo. Podemos aderir ou rejeitar, obedecer ou transgredir,
defender ou substituir tais práticas, como é de nosso conhecimento. Importante
destacar que todas essas características ou dimensões poderiam ser atribuídas
ao professor, pelo menos em sua forma engendrada na Modernidade.
Com a consolidação dos regimes democráticos, no
final do século XX, a questão da autoridade é retomada; desta vez buscando
sinalizar para o seu reconhecimento na vida pública. Relendo alguns clássicos
do pensamento social, Sennett defenderá na obra mencionada que as figuras
públicas da autoridade precisam ser legíveis e visíveis. Isto é, “os cidadãos
devem ler juntos, devem observar a situação da sociedade e discuti-la entre
si”. Neste momento, julgo oportuno voltar a Freire e reconhecer a
potencialidade política de sua definição da autoridade pedagógica, uma
definição enraizada nas lutas educativas de nosso continente.
“Ninguém educa ninguém” pode ser interpretada como
um ideal democrático da escola brasileira, na medida em que nossos modos de
autoridade sejam legíveis e visíveis. Com Freire encontramos uma redefinição do
papel do mestre e não o seu esmaecimento como sinalizam alguns filósofos
contemporâneos. Nas palavras do pedagogo, “educador e educando (liderança e
massas), co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos
são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la,
mas também no de recriar este conhecimento”. Sem vincular-me ao culto à
personalidade – aspecto destacado por Brayner que procurei evitar – reconheço
que os escritos freirianos trouxeram importantes contribuições para um
redimensionamento da autoridade pedagógica. A busca por construir uma escola democrática,
capaz de enfrentar as condições desiguais da América Latina, continua sendo
nosso desafio e para isso Freire seguirá sendo um interlocutor fundamental.
Acompanhados da potencialidade de seu pensamento, ainda precisamos reinscrever
a aprendizagem para nossas crianças e jovens em uma gramática mais aberta e
plural.
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Referências:
BRAYNER,
Flávio. Para além da educação popular. Campinas: Mercado de Letras,
2018.
SENNETT,
Richard. Autoridade. 2a ed. Rio de Janeiro: Record,
2012.
SILVA,
Roberto Rafael Dias da. Sennett & a Educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015.
FONTE: Outras Palavras