Por Sérgio Abranches
Tenho visto muita reação às decisões sobre o comando das Mesas e das Comissões Permanentes no Congresso. Em especial, foram várias as controvertidas decisões sobre a direção de Comissões temáticas relevantes, como a de Direitos Humanos da Câmara ou a de Meio Ambiente do Senado. Sem falar na presidência das duas Casas do Congresso. Houve problemas também na indicação de membros para várias dessas comissões pelos partidos. A questão fundamental é por que no Brasil autoridades eleitas podem decidir de costas para a sociedade, sem qualquer consequência para suas trajetórias políticas.
Por que os partidos fazem indicações claramente destituídas de legitimidade e credibilidade, o Congresso vota nomes que são publicamente rejeitados por milhares de eleitores e parcelas relevantes e ativas da opinião pública e de formadores de opinião? Falando de forma mais simples e direta: por que os partidos e o Congresso e, não raro, o Executivo decidem de costas para a sociedade civil organizada?
Só existe uma resposta plausível, técnica e politicamente. Porque a sociedade civil organizada é irrelevante na eleição e reeleição da maioria dos parlamentares no Brasil e as reações às decisões tomadas ao longo do mandato pelos presidentes, tampouco pesam quando disputam a reeleição. Os partidos não representam a sociedade e o Brasil voltou a ter currais eleitorais sólidos, que permitem às oligarquias partidárias se reproduzirem no poder, independentemente da opinião pública. Os partidos estão voltados para si mesmos e basta-lhes manejar os redutos que garantem a suas lideranças o monopólio de suas cadeiras. Há, portanto, uma deficiência estrutural em nosso sistema representativo e que vem se agravando. Eu diria que esta legislatura representa o ápice da manifestação dessa falha estrutural.
Mas há, também, um problema pelo lado da sociedade civil organizada. Ela, claramente, não conseguiu desenvolver mecanismos de mobilização, manifestação de sua indignação e repúdio à ordem política vigente que faça diferença. Também não conseguiu enfrentar a alienação da parte pouco ativa da sociedade civil, que tolera o intolerável, se acomoda e, mesmo discordando do que se passa e se indignando privadamente, não se dispõe a somar sua voz à indignação pública. Em outras palavras, as formas de manifestação até agora utilizadas pela sociedade civil organizada, pela parcela ativa da opinião pública, têm sido irrelevantes para mudança dessa ordem política e para convencimento da sociedade brasileira de que ela precisa agir por essas mudanças.
O Brasil tem diante de si duas tarefas críticas para construir uma democracia ampliada, verdadeiramente representativa, participativa e na qual a voz da opinião pública tenha consequências para as atitudes dos Três Poderes. Em particular, na qual o Legislativo e o Executivo, formados pelo voto popular, ouçam e respeitem a voz da sociedade civil. Especialmente quando os interesses mais afetados pela decisão manifestem opinião clara em determinada direção. Exemplo direto: nenhuma Casa do Congresso pode eleger para a Comissão de Direitos Humanos parlamentares rejeitados pelos principais grupos que atuam na defesa desses direitos, ou que tem sido vítimas da violação desse direitos e cuja biografia contenha indícios que ponham em dúvida que trabalharão efetivamente pelo reconhecimento e respeito a esses direitos e pela punição de transgressores.
A primeira tarefa diante de todos é pensar de forma inovadora sobre as falhas estruturais de nossa democracia representativa. Significa ir muito além do rame-rame que se discute com o nome de reforma política. Esse ramerrão gira sem parar em torno das mesmas, surradas ideias: financiamento público, voto distrital, cláusula de exclusão, sistema misto alemão, lista. A Itália entrou nessa, adotou uma versão macarrônica do sistema alemão, e deu no que deu. É preciso pensar mais além, inclusive na adequação das formas partidárias às exigências da democracia no século 21. Pensar no uso mais intenso das tecnologias de mobilização e participação nas eleições, na democratização do Legislativo, hoje a mais oligárquica e deteriorada de nossas instituições políticas.
Mas não podemos esquecer o Executivo, que também é eleito pelo vogo direto popular. As novas evidências trazidas por matérias de Matheus Leitão e Rubens Valente para a Folha de São Paulo denunciam um problema que não existiria se tivéssemos um verdadeiro sistema de acesso à informação pública, apoiado em tecnologias contemporâneas.
Vivemos verdadeiro colapso dos serviços públicos, mas a ouvidorias públicas e privadas fazem ouvidos moucos aos milhões de reclamações que recebem. E ninguém é demitido. As agências reguladoras foram desmontadas, hoje são totalmente inoperantes, todo mundo anda indignado com o mau funcionamento das telecomunicações, dos aeroportos, com o estado das estradas, com os apagões sucessivos na rede elétrica das cidades. E nada acontece, ninguém é demitido. Nenhuma mudança. Isso é falha da democracia e de governança por parte do Executivo. E ausência absoluta de fiscalização parlamentar.
No caso das ouvidorias e das audiências públicas, é claro que não funcionam. As primeiras, hoje, ou são ineptas, ou estão capturadas pelos interesses daqueles que deveriam estar fiscalizando e punindo. Punições que envolvam menos multas e mais demissões dos gestores responsáveis pela má prestação dos serviços públicos. As audiências públicas são vergonhosamente manipuladas, seja na área ambiental, seja no Congresso e olimpicamente ignoradas, quando, quase por milagre, são representativas e chegam a conclusões que contrariam os arranjos já realizados para impor as decisões supostamente em debate, portanto em aberto. Nesses casos, o Judiciário tem sido entre omisso e conivente. Mas é verdade, também, que tem sido menos provocado pela sociedade do que deveria. A reclamação ao Judiciário é um direito e sua resposta em tempo hábil um dever da magistratura. Há anos, reclama-se da morosidade do Judiciário e se discute a necessidade de reformas e medidas. Mas nada de relevante se faz.
O Brasil não dispõe de mecanismos de transparência e responsabilização das autoridades cujo poder é delegado pelo povo. Por exemplo, o recall, que equivale à revogação do mandato por desobediência à vontade dos eleitores ou por falha grave na condução dos negócios públicos. As escolhas para o comando das Mesas do Congresso deveriam ser objeto de consulta popular, no caso de haver uma petição com assinaturas por pelo menos 1% do eleitorado. As posses só poderiam ocorrer após o referendo popular.
A petição, por exemplo, rejeitando a escolha do presidente do Senado cumpre essas condições, é de conhecimento público e foi entregue ao Congresso. E daí? Ele tomou posse e presidiu a uma das mais importantes decisões que cabe ao Congresso, envolvendo o poder de veto presidencial e o pacto federativo. Precisamos de uma cláusula constitucional que determine o referendo popular dessas eleições internas, quando contestadas por número significativo de eleitores, como foi o caso. Provavelmente a história seria outra.
A decisão dos royalties do petróleo interfere diretamente no pacto federativo. Não vou entrar no mérito da decisão em si. Minha opinião sobre petróleo e pré-sal é conhecida e pode ser consultada pesquisando esse site. Do ponto de vista democrático e da representatividade, esse tipo de decisão jamais poderia ser tomado em sessões tumultuadas e aparelhadas como foi o caso e teria obrigatoriamente que ser objeto de referendo popular. Só desta forma se pode alterar o pacto federativo, especialmente, quando se refere ao compartilhamento de receitas públicas.
Não há sistema eleitoral ou de financiamento de campanhas que resolva esses problemas estruturais da representação. Eles requerem mudanças no próprio cerne da democracia representativa, tal como ela vem sendo praticada deste o final do século 19. Não estou dizendo que deveríamos ter um sistema baseado em plebiscitos. A história da América do Sul contém numerosos exemplos de manipulação de plebiscitos. Mas precisamos usar mais tecnologia para desenvolver mecanismos de controle social democrático da governança. E, de novo, não defendo a odiosa interferência na liberdade de imprensa que essa noção de controle social tem acobertado recentemente. Falo do controle social do Legislativo e do Executivo por mecanismos de acesso à informação, revogação de mandatos e de abertura de novos canais de voz para a opinião pública nas decisões não-rotineiras dos poderes constituídos pelo voto popular. E não considero essa agenda de mudanças esgotadas. Ao contrário, precisamos refletir e discutir mais, por fora dos escaninhos mentais convencionais, sobre as mudanças necessárias à democratização de nossa sociedade e nossa política.
Pelo lado da sociedade, é preciso que os movimentos sociais, as organizações da sociedade civil, os indivíduos ativos e participantes façam profunda autocrítica. Se os políticos são capazes de resistir à pressão social é porque há falha na estrutura política, mas também porque essa pressão tem sido ineficiente. Ela também tem suas falhas comportamentais: excesso de ideologismo, em um momento de falência ideológica; intolerância com a diversidade de opiniões (que leva, inclusive ao desejo de censurar a imprensa que pensa diferente); divisões internas sem base substantiva; excesso de faccionarismo; discursos ultrapassados; oportunismo; cooptação; falta de coerência em relação à macroagenda nacional – escolhendo de forma faccionária e oportunista os temas para intervenção. É comum ver certas organizações se manifestando duramente sobre um tema e calando sobre o outro, embora eles sejam inegavelmente correlatos e, por coerência, deveriam ter o mesmo tratamento.
São muitas, também, as insuficiências visíveis no uso das novas tecnologias, no processo de mobilização, na formação e legitimação de lideranças e porta-vozes. Há muito mais propensão ao ataque para desqualificar qualquer opinião, organização ou pessoa que se julga adversária, do que ao diálogo, que significa falar e ouvir. Falar e ouvir. Há movimentos sociais que cometem os mesmos erros dos governos, que fazem audiências públicas só para falar, nunca para ouvir. Os eventos por eles organizados são assim, também, só para falar. E quando ouvem o que não querem apupam, calam o suposto interlocutor. Como demandar democracia, sem ter comportamento democrático na base?
Não são problemas exclusivamente nossos. Estamos vivendo uma fase de longa transição, de declínio da velha ordem econômica, social e política que teve seu auge no século passado. A nova ordem ainda não está visível e nem sequer temos sabido como discutir o futuro a construir. Nem em nosso imaginário temos tentado visualizar integralmente a nova ordem que queremos. Não podemos interferir no passado, mas podemos construir o futuro.
Estamos vivendo tempos líquidos, como diz Zygmunt Bauman, palmilhando terrenos cediços. Por isso precisamos apurar nosso senso crítico, mas, sobretudo, aguçar nosso senso autocrítico. Isso tudo que está aí foi também resultado de escolhas nossas.
FONTE: Mercado Ético
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