quinta-feira, 15 de agosto de 2013

REFORMA POLÍTICA: Como e o quê?

Uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, e seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram

Por José Antonio Moroni (*)



A reforma política está presente na agenda nacional há vários anos, mas nas últimas semanas, após as manifestações e o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff, um novo ingrediente, que diz respeito ao “processo”, foi acrescentado. Isto é, qual é o caminho para fazer a reforma política. Assembleia Nacional Constituinte? Plebiscito? Referendo? Iniciativa popular? Congresso faz sozinho e do jeito dele? Todos esses elementos estão “misturados” no debate, ofuscando a discussão sobre o conteúdo da reforma política: para que a queremos, o que esperamos enfrentar com ela, que sistema político desejamos construir? Os dois debates, sobre o processo e sobre o conteúdo, são fundamentais para a construção de um novo modelo democrático no país e devem andar conjuntamente. Na reforma política não podemos separar o conteúdo da forma, pois um determina o outro.

O Congresso Nacional há dezoito anos tenta votar essa reforma. Duas observações: todas as tentativas foram na direção de uma transformação eleitoral, e não política, e realizadas em momentos de “crises políticas” ou no início de legislatura. A resposta foi clara: queremos manter o sistema como está. Em outras palavras, o Congresso não vê grandes problemas que justifiquem uma “reforma”. O que se fez foram pequenos ajustes no processo eleitoral, nem sempre na direção da democratização do poder, e sim para atender aos interesses de quem está no poder ou próximo dele. Um exemplo recente é o grupo de trabalho da minirreforma eleitoral coordenado pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), que apresentou relatório em julho no qual constam propostas na contramão de tudo o que a sociedade aponta e deseja. A sociedade quer partidos e candidatos com propostas, e eles liberam a obrigatoriedade dos candidatos de registrar seus programas em cartório; a sociedade quer transparência e controle dos gastos nos processos eleitorais, e eles flexibilizam a prestação de contas. Todas as propostas desse grupo de trabalho vão nessa direção, e o projeto foi aprovado em regime de urgência e vai entrar em votação no início de agosto. Vale aqui a ressalva de não confundir esse grupo de trabalho com o outro – coordenado pelo mesmo deputado – que trata da reforma política com o objetivo de dar resposta às demandas da rua e a proposta da presidente da convocação de um plebiscito.

Como podemos perceber, dificilmente o Congresso vai fazer uma reforma política que atenda aos interesses da população. O Parlamento entrou num processo muito comum às instituições de confundir os interesses de seus membros com os da instituição ou de quem ela diz representar. Quando isso acontece, o organismo perde a representatividade, a legitimidade e as condições políticas de propor algo que satisfaça as demandas do povo; e vai ficar sempre baseado nos interesses de seus grupos e integrantes. É o que acontece com o Congresso brasileiro.

Só se rompe isso com um movimento que articule forças políticas de fora com quem está “dentro” e quer mudanças. Caso contrário, o Congresso continuará a atuar como aquele cachorro que fica correndo atrás de seu próprio rabo.

Diante desse quadro político e pensando em criar esse movimento de fora, várias organizações e movimentos da sociedade civil coletam desde o final de 2011 assinaturas para a Iniciativa Popular para Reforma do Sistema Político. A iniciativa não se restringe a mudanças do sistema eleitoral, mas vai na direção do fortalecimento da soberania popular, por meio de várias propostas, entre elas a de que determinados temas só possam ser definidos por plebiscitos e referendos e a que dá ao povo o poder de convocação desse instrumento da democracia direta, retirando essa exclusividade do Congresso, como ocorre hoje. Para conhecer melhor essa proposta, acesse

Nas últimas semanas, novos ingredientes foram acrescentados nesse debate. Com as últimas manifestações de rua, ficou evidente o total esgotamento do nosso atual modelo democrático, centrado no poder da representação e na força do capital privado financiando as campanhas. Assim, ganha força na sociedade a busca de outras estratégias políticas para a realização da reforma política. É nesse contexto que surgem as propostas de convocação de uma assembleia constituinte e de um plebiscito.

Para iniciar esse debate, precisamos colocar algumas premissas sem as quais corremos o risco de cair em armadilhas ou cascas de banana colocadas ao longo do caminho.

A Assembleia Constituinte precisa ser exclusiva, soberana e específica para a reforma política. Exclusiva quer dizer eleita especificamente para fazer a reforma, não delegando ao Congresso essa tarefa. Soberana: sem influência do poder econômico, tanto no processo de escolha dos constituintes como nas definições, com possibilidades de candidaturas avulsas, ou seja, não necessariamente via partidos, e representativa de todos os segmentos da população. Uma assembleia constituinte não pode ser o espelho da representação que temos hoje no Parlamento: branca, masculina e proprietária. Tem de ser uma expressão, em pé de igualdade, de todos os grupos sub-representados de nossa sociedade, mulheres, população negra, indígena, jovem, homoafetiva, do campo e das periferias. Específica: deve ficar restrita ao tema da reforma política (não apenas eleitoral), não podendo decidir sobre outras questões que não estejam a ela relacionadas. Não podemos correr o risco de perder conquistas obtidas com a Constituinte de 1988, principalmente as concernentes aos direitos sociais, individuais e coletivos.

Se o caminho for o plebiscito, devemos garantir que a definição das perguntas seja feita por meio de mecanismos de consulta popular, e não apenas pelo Congresso; que a campanha gratuita tenha a participação das organizações da sociedade, e não apenas das frentes parlamentares, como define a lei hoje; e, por último, mas não menos importante, que o plebiscito tenha caráter vinculante, isto é, o Congresso não pode decidir pelo contrário. A ideia seria fechar esse processo com o referendo − o povo dizendo se o Congresso interpretou bem ou não a vontade popular. Aqui vale uma ressalva: quando da ideia do plebiscito, juristas de plantão, aqueles que a grande mídia escuta, vieram com a pérola de que o plebiscito era apenas uma consulta, cujo resultado o Congresso poderia acatar ou não. Sugiro para estes algumas aulas extras de soberania popular.

Essa discussão “da forma” é fundamental, pois define a concepção que temos de reforma política e também os sujeitos políticos desta. No formato o “Congresso faz”, estamos delegando esse poder à representação e, como esta só consegue pensar em processo eleitoral, a reforma política será igual a reforma eleitoral. Que é importante, necessária, mas não suficiente.

Nos demais casos, iniciativa popular, Assembleia Constituinte exclusiva, soberana e específica e plebiscito/referendo, estamos dizendo que o alicerce da reforma política é a soberania popular. Portanto, o sujeito político dessa transformação é o próprio povo, e o conteúdo diz respeito ao exercício dessa soberania, isto é, a todas as formas de poder, e não apenas à representação.

Nesse caso, reforma política é a reforma do próprio processo de decisão, portanto, a reforma do poder e da forma de exercê-lo.Quem exerce o poder, em nome de quem, quais são os mecanismos de controle? Enfim, quem tem o poder de exercer o poder numa sociedade tão desigual como a nossa? Por isso deve estar alicerçada nos princípios da igualdade, da diversidade, da justiça, da liberdade, da participação, da transparência e do controle social, e não pode ser apenas reforma eleitoral. Portanto, estamos falando da reforma do sistema político.

Se todo poder emana do povo, pensar a reforma do sistema político é pensar como esse poder deve ser devolvido ao povo, que tem o direito de exercê-lo de forma direta, e não apenas por delegação (delegar para quem elegemos). Democracia é muito mais que apenas ter “eleições limpas”.

Não se pode pensar numa reforma do sistema político sem enfrentar as desigualdades de sexo, de raça, etnia e de renda nas formas de exercer o poder. Assim, falar em reforma do sistema político é tratar de racismo, machismo, homofobia, desigualdade econômica e preconceitos presentes em nossa sociedade e nas estruturas de poder.

A reforma precisa radicalizar a democracia, enfrentando todas as formas de desigualdade e preconceito, promovendo a igualdade, a diversidade e a participação política. Isso significa uma reforma que amplie as possibilidades e oportunidades de participação, que seja capaz de incluir e processar os projetos de transformação que sujeitos políticos historicamente excluídos dos espaços de poder − como mulheres, afrodescendentes, homossexuais, indígenas, jovens, pessoas com deficiência, idosos e todos os despossuídos de direitos − trazem para o cenário político. Foi essa a principal lição que as manifestações de junho nos colocaram. Precisamos construir outro desenho democrático, isto é, um mosaico em que todos se sintam não apenas representados, mas participantes e com mecanismos de exercício do poder de forma direta.

Precisamos também repensar a atual arquitetura da participação (democracia participativa). A multiplicação de espaços participativos (conselhos e conferências) não significa automaticamente a partilha de poder. Precisamos caminhar na direção da construção de um sistema integrado de participação que inclua a política econômica e de desenvolvimento, e não apenas as políticas sociais. Aqui vale uma pergunta: por que as demandas das manifestações de junho por serviços públicos de qualidade não desembocaram nesse sistema de participação institucionalizada? Se desembocaram, por que não foram respondidas?

Precisamos aperfeiçoar a democracia representativa. Para isso são necessários partidos políticos democráticos, fortes, programáticos, com densidade na sociedade, com vida o ano todo, e não apenas em momentos eleitorais. Precisamos realmente ter partidos como instrumentos de representação política de parte da sociedade, e não de interesses pessoais ou de grupos. A fidelidade partidária, o financiamento público exclusivo de campanha, a votação em listas escolhidas de forma democrática, com alternância de sexo e respeito a critérios raciais, geracionais e homoafetivos, e a possibilidade de revogação de mandatos pela população devem ser prioridades. É necessário pensar outra forma de escolha da representação indígena. Antes de tudo, é preciso criar a equidade nas disputas políticas que se fazem por meio de mecanismos da democracia representativa.

Não existe reforma do sistema político sem enfrentamento do poder dos meios de comunicação privados, assim como do isolamento do Poder Judiciário às demandas populares e sua elitização.

Em resumo, pensar a reforma do sistema político é pensar como democratizar as relações de poder em todas as esferas e em todos os espaços, e isso só a soberania popular é capaz de fazer.
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(*) José Antonio Moroni é filósofo da Direção Colegiada do Inesc - Instituto de Estudos Socioeconômicos.


(Ilustração: Daniel Kondo)

FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil 

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