sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sobre a atualidade política


É preciso entender que, no Brasil e no mundo, a política é ainda e cada vez mais do capital, não do Estado. Isto porque as decisões políticas das sociedades contemporâneas têm mais ligação com o interesse do poder econômico do que com aquele dos próprios governantes.

Por Alysson Leandro Mascaro (*)

I. O capital preside a política

Os Estados, que têm um papel fundamental na reprodução capitalista, ainda que decidam e atuem, têm se revelado, nas últimas décadas, caudatários das decisões imediatas realizadas por grandes grupos econômicos. Assim sendo, as questões mais importantes da política acabam por ser, diretamente, aquelas que interessam ao capital. Quando as decisões são tomadas a favor do povo ou de modo contrário às burguesias, por exemplo, os grandes grupos econômicos e seus interesses têm alta força de contenção e mesmo de sabotagem em relação a tais políticas que lhe sejam opostas.

Neste ano de 2013, o maior exemplo do grande jogo entre a política e a economia, no Brasil, não se deu com as manifestações populares, mas, sim, com a relação entre o Estado brasileiro e o capital, em especial no refluxo das políticas intervencionistas dos últimos anos em favor daquelas marcadamente neoliberais. O caso notório é o da taxa oficial de juros. Após uma queda heroica nos primeiros anos do governo Dilma, a resistência e a pressão contrária do grande capital revelaram-se tamanhas, inclusive em termos de represália política e apatia econômica, que o governo retrocedeu em largos passos, majorando novamente os juros. Junto com a queda de braços em torno da taxa de juros, a depreciação insuficiente do câmbio, mantendo-o ainda elevado, e a insistência em políticas de contenção de gastos públicos para pagamento de juros da dívida são outros momentos cruciais da grande política. Nesse jogo, no qual poucas e enviesadas luzes foram lançadas pelos grandes meios de comunicação de massa e cuja complexidade escapa aos olhos da atenção quotidiana do povo, deu-se mais uma vez a derrota de políticas desenvolvimentistas em favor da retomada dos padrões neoliberais.

Como romper então, definitivamente, com tais padrões neoliberais do atraso? Em todas as sociedades capitalistas, as políticas mais progressistas só conseguem se sustentar com grande mobilização popular. Para isso, é preciso que haja cultura política ativa nas bases sociais e, ainda, mecanismos de informação e de comunicação de massa plurais e arejados. Uma das grandes impossibilidades quanto ao enfrentamento dos interesses dos grandes capitais, no Brasil, se dá justamente porque há uma dinâmica de acoplamento imediato entre as burguesias nacionais e internacionais e os meios de comunicação. Assim sendo, o povo é sempre informado de modo que a boa notícia a ele propagada é, na verdade, contra seus interesses. Enquanto não houver o enfrentamento desse padrão, não há política econômica progressista possível ou sustentável, na medida em que o povo está orientado ideologicamente contra qualquer avanço que seja progressista. Como todo enfrentamento nesse nível demanda ampla mobilização popular, aí está o impasse, justamente por não haver apoio nem alavanca para mudanças. A política progressista, aliás, não deve só contar com o povo, mas, em especial, deve partir dele.

Não há possibilidade de mudanças econômicas e sociais substanciais se não houver mobilização popular, politização das massas e exposição dos conflitos a serem superados. Ao contrário de outras experiências de esquerda da América Latina, os governos Lula e Dilma operam sem a mobilização e a politização do povo. Nesse quadro, até mesmo suas ações positivas não podem avançar. Ainda que louvada como prudência, trata-se de uma política que resulta apenas em ganhos residuais ou apoiada em margens de habilidade pessoal e sorte, pois administra conflitos como concórdia.

As massas, hoje, continuam instrumentalizadas de modo conservador pelos grandes aparelhos ideológicos da sociedade. Como isso não tem sido enfrentado, a política, mesmo quando com laivos ou desejos progressistas, acaba sendo limitada ao talhe que a economia, a cultura e a sociedade promovem como sua média: conservador e/ou reacionário.

II – Crise e política

As manifestações populares são mais um termômetro a repetir que as condições da sociabilidade capitalista são exploratórias e insuportáveis. Os indignados não estão apenas no Brasil. Todas as sociedades capitalistas são deflagradas em conflitos. Revoltas de tipos próximos às havidas no Brasil explodem já há anos na Europa e nos EUA; no mundo árabe o mesmo se deu nos últimos tempos e, na América Latina, também de modo constante em muitos países. Assim sendo, é verdade que as manifestações possam ser pensadas pelo nível local, de problemas específicos, mas, principalmente, devem ser compreendidas por meio das questões gerais, das dramáticas condições de vida sob a sociabilidade capitalista.

As atuais crises do capitalismo não têm sido enfrentadas a partir de suas causas, mas apenas por meio de mudanças superficiais ou cosméticas, quando muito. No mesmo impasse situa-se a contestação à crise. Contra o desemprego, quase sempre não se pede o fim da exploração capitalista, mas sim novos empregos. O imaginário político dos explorados está enredado nos limites do capitalismo, sem forças para superá-lo. Por isso as manifestações são cada vez mais explosivas, massivas, contundentes, mas sem horizontes profundos, sem aglutinação teórica e prática que leve à superação do capitalismo. Por onde elas começam, que é o nível da política imediata, do aumento da passagem do transporte público ou das condições urbanas, em geral é por onde também acabam. É notável e louvável que o povo e as vanguardas dos movimentos de contestação estejam nas ruas. Triste é apenas observar que tem faltado um rasgo ideológico capaz de fazer com que os indivíduos e os movimentos sociais queiram e possam haurir forças de luta estrutural contra o capital.

No nível mundial, o capitalismo está numa espécie de “refluxo do refluxo”, isto é, num movimento agora de contenção da reação que se deu no pós-crise de 2008. Os tempos de intervencionismo começam a minguar em favor de discursos novamente neoliberais. A hegemonia das ideias conservadoras, que sofreu pequeno combate ao tempo de ápice da crise, volta à tona. O reacionarismo cultural campeia. Soma-se à política econômica de guerra norte-americana o seu poder de controle das informações, no que se avista como sendo um processo sem limites.

Quanto às manifestações, que têm o condão de acelerar tempos históricos, juntaram-se às importantes pautas progressistas, ao seu final, outras tantas reacionárias. No entanto, as respostas políticas dadas pelos variados governantes nos planos federal, estaduais e municipais ao tempo das manifestações e posteriormente a elas foram múltiplas e contraditórias, entre repressão e estabelecimento de políticas públicas para um desafogo imediato dos problemas. Mas é preciso lembrar que políticas de caráter progressista são aquelas que tendem a respeitar movimentos sociais e manifestantes, dando vazão a seus apelos, enquanto um cariz conservador e reacionário os nega e os reprime. É por essa métrica que devem ser julgadas as respostas imediatas aos movimentos presentes.

Contudo, mesmo as respostas progressistas – que eventualmente anelem encaminhamentos concretos às demandas dos movimentos e das manifestações –, têm dificuldade em avançar para além do desembaraçar imediato desses problemas sociais. Operando na salvação dos próprios parâmetros de sociabilidade do capital, até as políticas do presente de perspectiva progressista acabam por sustentar a exploração existente, prolongando, ao invés de cessar, a agonia do modo de produção capitalista, agonia esta que se vê, em especial, nos pobres do mundo. Não havendo remendos progressistas que revertam a crise do capital ou que estabilizem o capitalismo, a política transformadora só pode ser, então, aquela que aponta para a superação da sociedade da mercadoria.

III. Ética e legalidade

A reprodução social capitalista investe em afirmações ideológicas de ética e legalidade como se fossem seus padrões universais ou reclames necessários ao seu bom funcionamento. Seu uso é contraditório em seus próprios termos, na medida em que padrões éticos como o do combate à corrupção ou da legalidade como valor moral são impossíveis ao capitalismo, dada a própria natureza da sociedade da mercadoria.

O assim chamado mensalão nem é o maior nem o único caso de corrupção no Brasil. A corrupção está atrelada à base da sociabilidade capitalista. Se o capital compra o trabalho e as vidas das pessoas, ele influencia sobremaneira os trâmites da política. A corrupção, assim, está perpassada por toda a sociedade. Desde os administradores das empresas privadas, passando pela população no geral em pequenas ilegalidades, até chegar ao nível eleitoral e estatal, o capital compra. Não é possível tentar criar espaços éticos parciais, incorruptíveis, em sociedades capitalistas, na medida em que o capital tem por natureza o poder de comprar. Uma ética da não-corrupção econômica só é possível em sociedades economicamente não-exploratórias. As campanhas moralistas de tipo udenista da atualidade, portanto, são cínicas – porque extremamente parciais e escandalosas apenas com os crimes que tenham sido descobertos ocasionalmente e, necessariamente, alheios – e, também, sabidamente alienantes, na medida em que encarnam em pessoas ou casos um problema que é de uma estrutura social, o capitalismo. Como não se mobiliza a sociedade para a superação do mundo do poder do capital, esse círculo de corrupção e posteriores expurgos parciais moralistas é vicioso, além de muito danoso, no final das contas, aos próprios explorados do mundo.

No que tange ao Brasil, afirma-se cada vez mais o controle ideológico da sociedade, tanto na cultura e na religião mas, em especial, nos aparelhos de comunicação de massa, que pautam de modo conservador a política e os valores. Nesse quadro, o reclame da ética é, de modo absoluto, um jogo de manipulações, sombras e luzes dos grandes maquinários da construção dos valores e referências da sociedade.

A mesma impossibilidade da ética afirmada e exigida se dá no que tange à submissão das ações econômicas e políticas a uma moralidade sustentada juridicamente. Sobre as revelações acerca da espionagem dos EUA contra o Brasil e vários países do mundo, eis mais uma prova de que o poder econômico não tem limites. Nem o direito internacional nem uma pretensa dignidade da inviolabilidade da vida privada podem a ele resistir. Não há, juridicamente ou moralmente, o que faça parar o poder do capital e de sua força militar, de tal sorte que os EUA nem pedem desculpa nem se predispõem a mudar seu comportamento. Isto porque quem pode manda. Os EUA, com seu complexo governamental industrial-militar, constituem, sustentam e alimentam a exploração capitalista sobre o mundo. Não há e é impossível que haja qualquer ética estrutural na política mundial do capital.

IV. O plano eleitoral

O ano de 2014 é mais um no qual a batalha política será jogada num campo reativo. No plano nacional, a política confinou-se a ser refém tanto das pautas dos meios de comunicação de massa conservadores quanto, em especial, de grandes estratégias de financiamento econômico privado. Quase sempre as eleições exigem posterior satisfação ou pagamento de financiadores, atrelando todo jogo político aos interesses do capital. A democracia, em sociedades capitalistas, opera como uma máquina de metrificação de opiniões já consolidadas, entregando justamente o que se espera, de modo reativo, sem maiores convencimentos ou aberturas de consciência política. Se a sociedade é preconceituosa, entrega-se então justamente o preconceito. Se o povo é desconhecedor das reais estruturas da política e da economia, opera-se exatamente nesse nível, fazendo marketing a partir dos estágios dados da ignorância. Trata-se de um nível baixo e rasteiro no qual a vida política se resume a fazer pedalar uma bicicleta já em movimento a fim de que não caia, mas sem jamais perguntar para onde se está indo ou se se pode ir com outro meio de transporte.

Tal lógica perpassa desde as grandes eleições majoritárias nacionais até as municipais. Em todo o mundo, e o Brasil e os EUA sendo casos exemplares mas não únicos, o capitalismo atrela a consulta individual para escolha de ocupantes de cargos públicos – isso a que chama de democracia e eleição – a um rígido controle ideológico e a uma lógica que faz com que só se ganhe se financiado pelos capitalistas, devendo então a posterior política ser jogada e devolvida em favor destes. As eleições são a administração da chancela, pelo povo, do domínio do capital. Mercado, Dinheiro, Estado, Ordem, Direito, Democracia, Liberdade, Imprensa, Religião, Homem: enfileira-se o um do capital.

* Com alterações, este artigo é, originalmente, entrevista concedida à imprensa paulista – O Regional, edição de 01°/01/2014.

(*) Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Filosofia do direito e Introdução ao estudo do direito, pela editora Atlas, e Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia, pela editora Quartier Latin e o mais recente Estado e forma política, pela Boitempo. É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, e da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, ambos lançados pela Boitempo.


FONTE: Controvérsia

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