segunda-feira, 28 de julho de 2014

Para entendermos um pouco sobre os conflitos na Palestina


Por Aluizio Moreira


Os meios de comunicação em todo mundo, nestes últimos meses, passaram a divulgar intenso material noticioso, analítico sobre a questão Palestina. Paralelamente, abriu-se espaço para denúncias e coberturas de manifestações em defesa de Gaza, numa crescente oposição à politica de Israel.

O agravamento mais recente dos conflitos armados entre Israel e Palestina, exige que compreendamos as razões históricas que remontam, sobretudo, ao cenário da Segunda Guerra Mundial.

A Palestina é uma região constituída por uma estreita faixa de terra banhada a oeste pelo mar Mediterrâneo, localizada entre o Egito, Jordania, Siria e Libano. Sua população (os palestinos) de origem árabe, de religião majoritariamente islâmica, ocupara a região desde  a antiguidade. 

Subjugados por egípcios, otomanos, e colocados sob protetorado britânico ao final da 1a. Guerra Mundial, os palestinos passaram a viver a partir de 1947, os mais difíceis momentos de sua história.

Com o fim da 2a. Grande Guerra, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947 em sessão dirigida pelo embaixador brasileiro Oswaldo Aranha, aprova, com o apoio do Brasil, a Resolução 181 pela qual se estabelece a partilha da Palestina entre a população árabe (palestinos) e a judaica (israelenses). Ano seguinte, 1948, era criado o Estado de Israel, que ocupará cerca de 56% do território palestino.

Com o passar dos anos, diante do avanço da ocupação de Israel, a Palestina ficou reduzida à Faixa de Gaza, à chamada Cisjordânia, uma parte montanhosa no centro e sul do território e uma parte de Jerusalém.

Avanço de Israel e "encolhimento" da Palestina
De habitantes autóctones, a população palestina passou à condição de  emigrantes e refugiados.  Daí a luta pela criação de um Estado Palestino, com o surgimento em 1959, da primeira organização militar palestina – AL FATAH – liderada por Yasser Arafat, que assumiu em 1969 a direção a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), fundada em 1964.

Organizando-se como verdadeiro Estado no exílio, a OLP, que abriga em seu interior diversas tendências ideológicas, passou a atuar no campo diplomático, tendo sido reconhecida pela ONU em 1975 como legítimo representante do povo palestino.

Em setembro de 1993 o célebre encontro entre Itzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel) e Yasser Arafat (líder da OLP), nos jardins da Casa Branca, em Washington no qual foi assinada a "Declaração de Princípios para os Acordos Provisórios de Autonomia Palestina", com base nas conversações de Oslo realizadas no início do ano, parecia tornar iminente as negociações de Paz entre judeus e palestinos e a proclamação do Estado Palestino.

Yasser Arafat,  lider da OLP
No entanto algumas divergências entre a OLP e o governo de Israel, além de fortes oposições da direita israelense e de movimentos armados palestinos, forçaram a celebração de renegociações dos acordos em 1994 (Cairo), ocasião em que foi criada a Autoridade Nacional Palestina (ANP) que comandada por Yasser Arafat, representaria um governo de transição até a formação definitiva do Estado Palestino. Mas novos impasses levaram a novas conversações e renegociações em 1995 (Oslo).

O assassinato de Itzhak Rabin por extremista israelense em 1995, abriu o caminho para a ascensão de Benyamin Netanyahu como primeiro-ministro, eleito pelo partido Likud, de direita. As renegociações se sucederam: 1997 (Hebron), 1998 (Wye Plantation), 1999 (Sharm el Sheik) e Camp David (julho de 2000), ao mesmo tempo que as incertezas aumentaram, sobretudo a partir dos últimos acontecimentos ocorridos em setembro deste ano.

Ismail Haniya, lider do Hamas
Em 29 de setembro de 2000 o general israelense Ariel Sharon, fez uma visita à Esplanada das Mesquitas em Jerusalém Oriental (1). Esta visita provocou uma previsível reação dos palestinos - maioria jovens - que oravam no local. Munidos de pedras e paus os palestinos se jogaram contra o general e o contingente militar que o acompanhava. Os militares israelenses responderam com uma saraivada indiscriminada de balas que resultou na morte de cerca de 130 palestinos, tendo provocado ferimentos em outros milhares. Os confrontos espalharam-se por outros territórios.

Em 2006 o Hamas (2) venceu as eleições parlamentares na Palestina obtendo a maioria das cadeiras no Parlamento, iniciando um período de conflitos entre essa organização e o Fatah (3), com um saldo de mortos e feridos; conflitos internos que cessarão com a reconciliação das duas mais influentes organizações da Palestina em 2011.

Em 2007, integrantes do Fatah ocupam os espaços políticos do Hamas na Cisjordânia, que no entanto, enquanto o Hamas ganha o controle politico e armado da Faixa de Gaza, bem como influencia sobre a Cisjordania.

Ataque israelense em Gaza
A partir de dezembro de 2008, ataques aéreos israelenses contra Gaza e do Hamas contra Israel, deixaram um saldo de centenas de mortos e milhares de feridos na Palestina, com destruições de escolas, hospitais, armazéns, residenciais, e invasões terrestres israelenses na Faixa de Gaza.

Apesar da declaração de Israel cessar-fogo nos fins de 2009, o Hamas continuou a luta pela retirada das tropas israelenses da Faixa de Gaza e em 2012 recomeçaram as hostilidades.

As violências se intensificaram nos meados de 2014, com a morte de três adolescentes israelenses na Cisjordania e a represália por parte de Israel com o assassinato de um jovem palestino queimado vivo em Jerusalém e ofensiva militar contra o Hamas, bombardeando Gaza, causando a morte de 147 crianças e 74 mulheres.

Vítimas civis dos ataques israelenses
Navi Pillay, alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em 23 de julho de 2014 denunciou os ataques israelenses contra Gaza, alegando constituir crimes de guerra, o bombardeamento contra população civil. No mesmo dia o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, aprovou Resolução condenando a ofensiva militar de Israel contra Gaza, pedindo o fim da operação israelense na região e criando uma comissão para investigação das violações do Direito Internacional.

Dos 47 países membros do Conselho, 29 votos foram favoráveis à Resolução (5), 17 abstenções (6) e os Estados Unidos, aliado de Israel, os únicos que votaram contra.

O importante é que independentemente dos 29 votos os países membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU, centenas de milhares de vozes em todo mundo, independentemente das posições oficiais de seus governos, se levantam através de manifestações sem intermediações, em defesa do povo palestino. 

Esperamos que a opinião pública internacional e a pressão diplomática de grande número de países compromissados com a paz, possam colaborar para a afirmação de um Estado Palestino soberano na região. 


Notas

(1) Com a dominação israelense sobre a Palestina, a cidade foi dividida desde 1967 em Jerusalém Ocidental, sob administração do Governo de Israel e Jerusalém Oriental, pertencente aos palestinos.
(2) Hamas – “Movimento de Resistência Islâmica” – organização de orientação sunita fundada na Palestina em 1987, que atua tanto politica como militarmente (Brigadas Izz ad-Din al-Qassam) por ações consideradas terroristas, por alguns países.
(3) Yasser Arafat, líder da organização Al Fatah, faleceu em 2004.
(4) Houve 41 abstenções, e entre os 9 que votaram contra a Resolução, figuraram Israel, Estados Unidos, Canadá e República Tcheca.
(5) Entre esses, todos os países da América Latina incluindo o Brasil
(6) Alemanha, Itália, Reino Unido e França.

domingo, 27 de julho de 2014

Ariano Suassuna celebrou o Brasil rural em oposição ao urbano


Influenciado pelos acontecimentos políticos de 1930, escritor dizia que preferia celebrar o rural, o arcaico e o tradicional, em oposição ao Brasil urbano simbolizado na vitória de Vargas.




Por Ricardo Domeneck


Numa semana que já havia sido marcada pela morte repentina de outro importante autor brasileiro nascido no Nordeste, João Ubaldo Ribeiro, a morte de Ariano Suassuna nesta quarta-feira (23/07), no Recife, gerou consternação entre artistas, políticos e seus leitores no Brasil. O autor de Auto da Compadecida e Romance d'A Pedra do Reino estava em coma após um acidente vascular cerebral.

A presidente Dilma Rousseff expressou seus pêsames, assim como o ex-presidente Lula da Silva e os presidenciáveis Eduardo Campos e Aécio Neves. Artistas que trabalharam com o autor paraibano, como os atores Matheus Nachtergaele e Fernanda Montenegro, fizeram declarações pessoais, e ainda outros ligados a movimentos que poderiam ser vistos como antagônicos ao Movimento Armorial, como o diretor José Celso Martinez Correa e o músico Lúcio Maia, da banda Nação Zumbi.

Mesmo que polêmico, envolvendo-se em várias controvérsias de caráter nacionalista ao longo de sua carreira, Ariano Suassuna impunha respeito por sua obra, marcada por contribuições importantes tanto ao teatro, com o Auto da Compadecida (1955), quanto à prosa, com seu Romance d'A Pedra do Reino (1971).

Nascido naquela que já foi chamada de Nossa Senhora das Neves, Friederickstadt e Cidade da Parahyba, hoje João Pessoa, sua história pessoal está ligada à história de sua cidade natal. Membro de uma importante família da elite paraibana, seu pai, João Suassuna, governou a Paraíba entre 1924 e 1928.

Capa da edição alemã do "Romance d'A Pedra do Reino"
No dia 26 de julho de 1930, o político que sucedera o pai de Suassuna no governo do Estado (à época chamado de presidente da Paraíba), João Pessoa, é assassinado por João Dantas no Recife. O assassinato é usado como estopim para o golpe de 1930, que depõe o presidente Washington Luís e leva Getúlio Vargas ao poder, pois João Pessoa compõe com Vargas a chapa de oposição para as eleições de março daquele ano, com Vargas como candidato à presidência e Pessoa à vice-presidência – nas quais foram derrotados por Júlio Prestes.

A família Dantas era ligada à família Suassuna, e João Suassuna, pai do escritor, é assassinado em meio aos embates políticos daqueles meses, como retaliação à morte de João Pessoa, no dia 9 de outubro de 1930 – duas semanas antes do golpe de Vargas. Ariano Suassuna tinha à época apenas 3 anos de idade.

Estes não são apenas detalhes biográficos. Em diversas entrevistas, Ariano Suassuna relatou o assassinato do pai como a grande tragédia de sua vida. Isso deixou marcas em seu trabalho e sua visão política. Seu pai era líder das forças rurais do estado da Paraíba, e João Pessoa era visto como líder das forças urbanas.

Os acontecimentos de 1930 viriam a ser interpretados por Suassuna como a vitória do urbano sobre o rural no país. Em sua entrevista ao programa Roda Viva, em 2012, Ariano Suassuna diz que teve que se acostumar muito cedo a ver seu pai retratado como líder das forças reacionárias, arcaicas e atrasadas do Nordeste.

O escritor conta, então, que se o rural era o mal do atraso em relação ao urbano, que ele passaria a elevar e celebrar o rural, o arcaico, o tradicional. É compreensível, portanto, a importância histórica que ele dá à Guerra de Canudos e ao livro de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902), como marco e monumento, respectivamente, desse embate entre o Brasil rural e o Brasil urbano, entre o Sertão do interior e o Sertão da rua do Ouvidor. Isso é incontornável para compreender sua visão estética e política.

Capa do "Romance d'A Pedra do Reino"
Ainda estudante de Direito, fundou com Hermilo Borba Filho o Teatro do Estudante de Pernambuco, e seus primeiros trabalhos foram compostos para o teatro, com Uma mulher vestida de sol (1947), quando o autor tinha apenas 20 anos. Sua obra teatral culmina com o Auto da Compadecida (1955), a obra mais conhecida do autor, tanto no teatro como em sua filmagem para a televisão, que levou seu trabalho a uma nova geração.

O Auto da Compadecida por ser colocado ao lado de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – publicado no mesmo ano – como o momento mais alto de um teatro genuinamente brasileiro, erudito, fincado na tradição ibérica, e ao mesmo tempo popular.

Outra grande obra e contribuição sua é o Romance d}A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de 1971, que seria traduzido para o alemão por Georg Rudolf Lind como Der Stein des Reiches oder die Geschichte des Fürsten vom Blut des Geh-und-kehr-zurück, e editado em dois volumes em 1979.

O crítico Idelber Avelar, professor de Literatura e História Intelectual da América Latina na Universidade de Tulane em Nova Orleans, escreveu sobre o romance: "Como uma epopeia, ele narra a história de guerreiros identificados com um povo. A épica se torna farsa, no entanto, já que os ideais que regem as batalhas parecem anacrônicos, às vezes cômicos e sempre meio divorciados da realidade. Como numa picaresca, a história é narrada em primeira pessoa por um sujeito destituído que deve legitimar-se ante uma autoridade. Como num romance de cavalaria, o herói deve restaurar uma ordem perdida, em meio a brasões, insígnias e todo um aparato de símbolos. Quaderna se declara nada menos que Rei do Brasil, herdeiro da verdadeira família real – não aqueles "charlatães" dos Bragança, diz ele. O pano de fundo d'A Pedra do Reino é esse secular delírio monarquista no sertão brasileiro."

O romance é uma das últimas grandes obras do modernismo brasileiro, com sua mescla de gêneros, seu uso de formas da literatura medieval das línguas latinas e sua narratividade fincada na tradição oral ibérica e brasileira, como se vê tanto em Mário de Andrade e seu uso da rapsódia em Macunaíma (1928), como em João Guimarães Rosa e seu uso da canção de gesta em Grande Sertão: Veredas (1956).

É a essa linhagem modernista que pertence o Romance d'A Pedra do Reino, como à tradição picaresca nacional de um Manuel Antônio de Almeida e seu Memórias de um Sargento de Milícias (1854). Seu trabalho literário e sua visão política encontrariam sua plataforma e unidade na fundação do Movimento Armorial, que buscava a criação de uma arte brasileira que pudesse fundir o erudito e o popular.

Sobre o movimento, Suassuna escreveu no Jornal da Semana do Recife, em 20 de maio de 1973: "A arte armorial brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos 'folhetos' do Romanceiro popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus 'cantares', e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados."

Ariano Suassuna foi secretário da Cultura tanto da cidade do Recife como do estado de Pernambuco. Nessa posição encampou polêmicas com os artistas do Tropicalismo e do Manguebeat, rejeitando suas misturas brasileiras e estrangeiras. No entanto, como já disse uma vez Caetano Veloso e lembrou agora Idelber Avelar ao morrer Suassuna, apesar de suas discordâncias e polêmicas com Chico Science, que ele insistia em chamar de Chico Ciência, quando este morreu em 1997 lá estava Ariano Suassuna, chorando desconsoladamente e carregando o caixão de Science, ou Ciência. Não se pode interpretar isso como uma reviravolta estética de Suassuna. Mas ele soube reconhecer a grande perda, e é com frequência na tragédia que os "Brasis profundos" se encontram. E se reconhecem.


Edição: Alexandre Schosasler


quinta-feira, 24 de julho de 2014

E quando o opressor é o professor?


O conservadorismo das instituições, a relação de poder e o preconceito estrutural resultam em casos como o de Maria Clara Bubna, que chegou a ser classificada como “uma influência negativa” por seu próprio professor


Por Isadora Otoni


Maria Clara Bubna, de 20 anos, cursa Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mas teve que parar de frequentar as aulas de Economia Política. A estudante começou a se sentir desconfortável com o professor que lecionava a matéria, Bernardo Santoro, já que ele se posicionava de modo polêmico em sala.

“Um dia ele estava explicando o conceito de demanda e falou que era ‘um exímio ordenhador porque produzia muito leitinho’”, conta a aluna. “Esses comentários me afastaram da turma, não me senti confortável pra continuar e decidi acompanhar por fora, com material de estudo e ajuda de colegas”. Quando ela parou de assistir às suas aulas, o professor chegou a questionar à turma onde estava “a aluna marxista”.

Em uma publicação no Facebook, Santoro se posicionou de forma machista e foi alvo de críticas. No texto, ele afirma que o feminismo era o culpado por um homem “largar a esposa e se divorciar a qualquer momento, principalmente quando ela embarangar depois de ter seu filho”. Em contraponto, o Coletivo de Mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também leciona, divulgou uma nota de repúdio à sua opinião.

Foi o que bastou para Bernardo associar Maria Clara Bubna à nota e começar a persegui-la. “Como eu não estava presente, sei pelos meus amigos que ele começou a soltar comentários, que estava sendo ‘perseguido por um coletivo feminista’ que tinha participação de uma ‘colega de classe’ de todos”, relembra a estudante. Em entrevista para O Globo, o professor chegou a afirmar que “ela sempre foi uma influência negativa na turma”. Depois do episódio, Santoro se exonerou da UERJ por não concordar com a abertura de uma sindicância para apurar seu comportamento.

Declaração de Bernardo Santoro para
O Globo (Foto: Reprodução)

Apesar da grande repercussão do caso, as atitudes abusivas de educadores não são uma exclusividade das universidades do Rio de Janeiro. Existem relatos de machismo e homofobia já no Ensino Fundamental, em que a relação de poder justifica o comportamento do opressor.

Na quinta série, Bruno Dias* odiava as aulas de Ciências. Ele não tinha dificuldades com a matéria, já que possuía um conhecimento avançado para um garoto de 10 anos. No entanto, seu professor transformou as aulas em uma atividade desagradável. “No primeiro dia ele perguntou qual era a diferença de um átomo para uma molécula. Eu sabia a resposta e falei”, narrou Bruno.

Em vez de ser elogiado, o aluno passou a ser chamado de “sabichona” pelo instrutor. “Isso com toda a conotação gay que você possa imaginar”, lamenta Bruno, que agora já cursa o Ensino Superior. Mesmo se sentindo extremamente incomodado com a ridicularização por parte do professor, ele nunca reclamou das “piadas”. “Todo mundo achava ele engraçado, então eu tinha medo de ser ‘o estraga prazeres.’”

Débora Passos* tinha apenas 16 anos quando começou a ser assediada por seu instrutor, de 44, que ensinava Física no terceiro ano do Ensino Médio. “Ele ficava falando que eu era ‘mulher de verdade’ e ‘a única mulher da sala’. Em aula, ele chegou a fazer piadinhas do tipo ‘eu e a Débora já fizemos as preliminares’”, relembra, quatro anos depois. Com isso, a turma entrou na história e incentivava o suposto caso. “Se eu ia com short, meus colegas ficavam falando: ‘Olha o tamanho do short dela, você não está com ciúmes?’.”

Débora tentou, mas não conseguiu conter o assédio. “Ele namorava e eu falava que eu também, só pra ver se ele parava. Uma vez ele apareceu por trás de mim na escada, me segurou na cintura e falou no meu ouvido: você nunca pensou em traição?”. Por conta das inconveniências, ela afirma que nunca conseguiu aprender nada na matéria que o professor lecionava.

Denunciar também não era uma opção. “Minhas ‘amigas’ diziam que aquilo era bom, que ele era bonito e que devia me sentir bem com o que ele dizia. Cheguei a achar que havia algo de errado comigo”, conta. Débora só se deu conta de que poderia ter questionado a situação quando conheceu ideologias feministas. “Fui perceber que eu não estava fazendo nada de errado quando tomei contato com o feminismo na faculdade.”

Outras atitudes clássicas nas escolas também possuem reflexo de machismo e homofobia, mas ainda não são condenadas pela sociedade. “Em confraternizações, as meninas ficam responsáveis para ações voltadas para a decoração e culinária, enquanto os meninos possuem um papel secundário. Atividades físicas também são divididas por sexo, já que luta e futebol são vistos como exercícios masculinos”, aponta Ana Rita Dutra, educadora e especialista em Direitos Humanos.

Da sociedade para a sala, da sala para a sociedade

O comportamento em sala de aula é uma via de mão dupla: professores e alunos reproduzem o que aprendem com a sociedade, como também reproduzem em sociedade o que aprendem nas escolas.

Toni Reis, presidente do Grupo Dignidade e secretário de Educação da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), exemplifica: “Gays e lésbicas eram tratados como criminosos na Idade Moderna. Até o dia 17 de Maio de 1990, a homossexualidade era considerada uma doença. Portanto, a sala de aula ainda tem muito desse rescaldo cultural de homofobia e discriminação”.

Ana Rita Dutra concorda. “Nossa educação é machista porque nossa cultura é machista. Mesmo que hoje a gente tenha uma política mais inclusiva, ainda percebemos fortemente o machismo no discurso dos educadores. Seja no próprio ensinar, nas piadas, nas concepções pessoais de professores que chegam aos espaços educativos”.

Ana Rita Dutra pede por uma educação mais
inclusiva (Foto: Agencia de Noticias do Acre/Flickr)
Como o preconceito tem raízes profundas na sociedade, uma instituição dificilmente se adapta ao discurso mais inclusivo da educação. Por isso, esses espaços são frequentemente estruturados pelo conservadorismo. “Seja na educação informal ou formal, nas grades de ensino acaba-se reproduzindo em sala de aula uma educação ainda quadrada, conservadora, que não inclui os grupos marginalizados”, constata Ana Rita.

Marcus Cezar, psicólogo e Doutorando em Filosofia, explica que a estrutura dos modelos escolares não ajuda na inclusão, já que possuem modelo centralizador. “Nossas escolas e universidades ainda são constituídas nos moldes hierárquicos, baseados no autoritarismo e na submissão, e que em nada favorecem o desenvolvimento de autonomia. São baseados nos mesmos princípios das instituições militares, religiosas e presídios”.

A submissão e dessubjetivação do estudante, ou seja, o apagamento de suas individualidades, leva os professores a abusarem do poder de sua voz. “A própria palavra aluno, se olharmos seu significado, quer dizer ‘a-luno’, ou seja, sem luz. O papel do professor é, então, iluminar essas pessoas sem luz”, analisa Marcus. “A grande questão da relação entre instrutor e estudante é realmente como construir uma relação de desenvolvimento integrativo”.

Toni é autor da tese de doutorado “O silêncio está gritando: a homofobia no ambiente escolar”, defendida na Uni­versidad de la Empresa de Mon­tevidéu, no Uruguai. Em sua pesquisa, ele constatou que a maioria dos professores está despreparada para tratar a diversidade sexual em sala de aula. Somada à hierarquia escolar, a péssima formação dos educadores acaba sendo muito prejudicial.

“No Brasil a formação e a discussão sobre o que de fato é educação e como ela pode ser vinculada é ainda muito precária. Para quebrar essa estrutura, é necessário preparar os educadores de forma diferente. Por exemplo, a formação universitária, a formação pedagógica e o pensamento crítico sobre o papel do professor não fazem parte de praticamente nenhum programa de formação”, critica Marcus Cezar.

Com isso, os docentes insistem em conduzir a formação em um modelo ultrapassado. “Eles se frustram ou então esquecem seu real papel e transformam a sala de aula em seu palco para poder falar o que quiserem, sem rigor científico, sem senso crítico ou sem propósito formativo”, interpreta o psicólogo.

Já Ana Rita sugere: “Se tivéssemos uma formação continuada fundada em uma educação não machista, poderíamos construir um espaço escolar mais democrático. Em alguns países já temos escolas infantis que aboliram o ‘gênero’ nas diferenciações dentro do espaço”. Todavia, ela não deixa de ressaltar que a sociedade como um todo deve ser rediscutida: “Imagine um professor agressor de sua esposa em casa, ou que prende sua filha. Suas concepções acabam chegando ao espaço educativo.”

Toni também tem sua proposta. “Nós do movimento LGBT temos pressionado o Ministério da Educação, as Secretarias da Educação municipais e estaduais, para termos programas de educação inicial e continuada de capacitação, formando pessoas que saibam lidar com as situações”. Para ele, um professor tem o dever de chamar a atenção em uma situação de desrespeito em sala de aula.

“A escola é um espaço de socialização, onde as pessoas aprendem cidadania. Então tem que respeitar o negro, a mulher, o judeu, o gay, a lésbica, as pessoas com deficiência, enfim. Tem que respeitar toda a condição humana. E nesse contexto que é importante trabalhar a diversidade”, ressalta o integrante do movimento LGBT.

Uma nova abordagem

Entre os diversos projetos da Escola Nazaré Guerra está
o Combate à homofobia (Foto: Divulgação/
Blog da escola)
A Escola de Ensino Médio Nazaré Guerra, de Itatira, no Ceará, tenta romper com a opressão em sala de aula. Para isso, eles começaram no início do de 2013 a desenvolver o projeto Literatura e Diversidade, que visa ao combate à homofobia. Apesar de ser coordenado pelo professor Francisco Wesley Sales, são duas alunas que comandam as atividades do núcleo.

“Falamos sobre o assunto e utilizamos livros que tratam do tema. Isso para tentar diminuir o preconceito na escola, conscientizando os alunos, professores e toda a unidade escolar”, descreve Wesley. Ele faz questão de ressaltar que não toma a frente dos movimentos e oficinas, para que a estrutura de ensino seja diferente. “O trabalho de aluno para aluno fica mais fácil para eles se compreenderem”.

Não só os alunos apresentaram mudanças com a proposta, como também os professores. “Com conversas e trocas de experiências, absorvemos mais para amenizar a homofobia. Depois desse projeto, que já está no seu segundo ano, percebemos uma queda bem significativa em relação à homofobia na escola”, comemora o coordenador. “Sabemos que em toda escola há homossexuais, mas as instituições não tomam nenhuma iniciativa para fazer que com esse preconceito lá dentro acabe ou pelo menos diminua”.

Já em Pernambuco, discutir a questão do gênero foi uma recomendação das secretarias da Mulher e da Educação. Núcleos de Estudos de Gêneros e Enfrentamento da Violência Contra a Mulher foram instalados primeiro nas universidades, em 2009, mas dois anos depois foi constatada a necessidade do programa se estender para as escolas.

Valéria Fernandes, gerente de Formação e Transversalização de Gênero na Secretaria da Mulher de Pernambuco, conta como surgiu a ideia. “Foi uma demanda do Prêmio Naíde Teodósio de Estudos de Gênero, um concurso de projetos, redações e artigos científicos. A partir dele observamos que as escolas estavam um pouco deficitárias na questão da discussão de gênero”.

No início, as parcerias foram feitas principalmente com escolas integrais, totalizando 23 núcleos. Hoje, esse número chegou a 60. “As escolas de Ensino Médio começaram a ligar pra gente e se inseriram também, por demanda voluntária”, informa Valéria. As ações dos grupos são planejadas por representantes de alunos e professores, que também abordam questões de raça e outras desigualdades.

A proposta diferencial do projeto é a formação dos próprios professores. Para isso, a Secretaria faz quatro encontros e dois seminários anuais com os educadores. Nas reuniões, são eles que levam novidades sobre o tema, e um seminário é realizado para qualificação e discussão sobre o que acontece dentro e fora de Pernambuco. Já no último seminário, representantes dos núcleos apresentam os resultados do trabalho durante o ano. “Isso fortaleceu o Prêmio Naíde Teodósio, pelo que a gente pode ver pela qualidade das redações e artigos”, comemora Valéria.

E se acontecer com você?

A sociedade permanece preconceituosa; o modelo escolar, hierárquico; e os professores, despreparados. Bruno Dias e Débora Passos revelaram que denunciar requer coragem, e Maria Clara teve uma reviravolta quando ousou divulgar o que aconteceu com ela. Então, como os estudantes devem lidar quando se sentirem oprimidos?

Toni Reis sugere que a vítima ligue para o Disque 100. O canal de denúncia é um meio eficaz de assegurar sua integridade, já que todo professor deve seguir a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Todos nós somos diferentes na sua sexualidade, na sua religião ou no seu time de futebol, mas no direito somos todos iguais”, declara.

Já Ana Rita encoraja as mulheres a levantarem suas vozes. “Torço e luto para que encontrem em seus caminhos educadoras e educadores sensíveis e engajados em uma educação não machista. Uma menina jamais pode ser silenciada, julgada e tolhida por seu sexo”.

*Nomes fictícios: os personagens pediram anonimato

(Foto de capa: Reprodução/Facebook de Maria Clara Bubna)


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Quanto mais presos, maior o lucro: parte I


Por Paula Sacchetta


Em janeiro do ano passado (2013), assistimos ao anúncio da inauguração da "primeira penitenciária privada do país”, em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Porém, prisões "terceirizadas” já existem em pelo menos outras 22 localidades, a diferença é que esta de Ribeirão das Neves é uma PPP (parceria público-privada) desde sua licitação e projeto, e as outras eram unidades públicas que em algum momento passaram para as mãos de uma administração privada. Na prática, o modelo de Ribeirão das Neves cria penitenciárias privadas de fato, nos outros casos, a gestão ou determinados serviços são terceirizados, como a saúde dos presos e a alimentação.

Hoje existem no mundo aproximadamente 200 presídios privados, sendo metade deles nos Estados Unidos. O modelo começou a ser implantado naquele país ainda nos anos 1980, no governo Ronald Reagan, seguindo a lógica de aumentar o encarceramento e reduzir os custos, e hoje atende a 7% da população carcerária. O modelo também é bastante difundido na Inglaterra – lá implantado por Margareth Thatcher – e foi fonte de inspiração da PPP de Minas, segundo o governador do estado Antônio Anastasia. Em Ribeirão das Neves o contrato da PPP foi assinado em 2009, na gestão do então governador Aécio Neves.

O slogan do complexo penitenciário de Ribeirão das Neves é "menor custo e maior eficiência”, mas especialistas questionam sobretudo o que é tido como "eficiência”. Para Robson Sávio, coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) da PUC-Minas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, essa eficiência pode caracterizar um aumento das prisões ou uma ressocialização de fato do preso. E ele acredita que a privatização tende para o primeiro caso. Entre as vantagens anunciadas está, também, a melhoria na qualidade de atendimento ao preso e na infra-estrutura dos presídios.

Bruno Shimizu e Patrick Lemos Cacicedo, coordenadores do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo questionam a legalidade do modelo. Para Bruno "do ponto de vista da Constituição Federal, a privatização das penitenciárias é um excrescência”, totalmente inconstitucional, afirma, já que o poder punitivo do Estado não é delegável. "Acontece que o que tem impulsionado isso é um argumento político e muito bem construído. Primeiro se sucateou o sistema penitenciário durante muito tempo, como foi feito durante todo um período de privatizações, (…) para que então se atingisse uma argumentação que justificasse que esses serviços fossem entregues à iniciativa privada”, completa.

Laurindo Minhoto, professor de sociologia na USP e autor de "Privatização de presídios e criminalidade", afirma que o Estado está delegando sua função mais primitiva, seu poder punitivo e o monopólio da violência. O Estado, sucateado e sobretudo saturado, assume sua ineficiência e transfere sua função mais básica para empresas que podem realizar o serviço de forma mais "prática”. E essa forma se dá através da obtenção de lucro.

Patrick afirma que o maior perigo desse modelo é o encarceramento em massa. Em um país como o Brasil, com mais de 550 mil presos, quarto lugar no ranking dos países com maior população carcerária do mundo e que em 20 anos (1992-2012) aumentou essa população em 380%, segundo dados do DEPEN, só tende a encarcerar mais e mais. Nos Estados Unidos, explica, o que ocorreu com a privatização desse setor foi um lobby fortíssimo pelo endurecimento das penas e uma repressão policial ainda mais ostensiva. Ou seja, começou a se prender mais e o tempo de permanência na prisão só aumentou. Hoje, as penitenciárias privadas nos EUA são um negócio bilionário que apenas no ano de 2005 movimentou quase 37 bilhões de dólares.

Pátio da penitenciária de Ribeirão de Neves, MG. Foto: Peu Robles

Como os presídios privados lucram

Nos documentos da PPP de Neves disponíveis no site do governo de Minas Gerais, fala-se inclusive no "retorno ao investidor”, afinal, são empresas que passaram a cuidar do preso e empresas buscam o lucro. Mas como se dá esse retorno? Como se dá esse lucro?

Um preso "custa” aproximadamente R$ 1.300,00 por mês, podendo variar até R$ 1.700,00, conforme o estado, numa penitenciária pública. Na PPP de Neves, o consórcio de empresas recebe do governo estadual R$ 2.700,00 reais por preso por mês e tem a concessão do presídio por 27 anos, prorrogáveis por 35. Hamilton Mitre, diretor de operações do Gestores Prisionais Associados (GPA), o consórcio de empresas que ganhou a licitação, explica que o pagamento do investimento inicial na construção do presídio se dá gradualmente, dissolvido ao longo dos anos no repasse do estado. E o lucro também. Mitre insiste que com o investimento de R$ 280 milhões – total gasto até agora – na construção do complexo esse "payback”, ou retorno financeiro, só vem depois de alguns anos de funcionamento ou "pleno vôo”, como gosta de dizer.

Especialistas, porém, afirmam que o lucro se dá sobretudo no corte de gastos nas unidades. José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, explica: "entraram as empresas ligadas às privatizações das estradas, porque elas são capazes de reduzir custos onde o Estado não reduzia. Então ela [a empresa] ganha por aí e ganha muito mais, pois além de reduzir custos, percebeu, no sistema prisional, uma possibilidade de transformar o preso em fonte de lucro”.

Para Shimizu, em um país como o Brasil, "que tem uma das mais altas cargas tributárias do mundo”, não faz sentido cortar os gastos da população que é "justamente a mais vulnerável e a que menos goza de serviços públicos”. No complexo de Neves, os presos têm 3 minutos para tomar banho e os que trabalham, 3 minutos e meio. Detentos denunciaram que a água de dentro das celas chega a ser cortada durante algumas horas do dia.

O cúmulo da privatização

Outra crítica comum entre os entrevistados foi o fato de o próprio GPA oferecer assistência jurídica aos detentos. No marketing do complexo, essa é uma das bandeiras: "assistência médica, odontológica e jurídica”. Para Patrick, a função é constitucionalmente reservada à Defensoria, que presta assistência gratuita a pessoas que não podem pagar um advogado de confiança. "Diante de uma situação de tortura ou de violação de direitos, essa pessoa vai buscar um advogado contratado pela empresa A para demandar contra a empresa A. Evidentemente isso tudo está arquitetado de uma forma muito perversa”, alerta.

Segundo ele, interessa ao consórcio que, além de haver cada dia mais presos, os que já estão lá sejam mantidos por mais tempo. Um das cláusula do contrato da PPP de Neves estabelece como uma das "obrigações do poder público” a garantia "de demanda mínima de 90% da capacidade do complexo penal, durante o contrato”. Ou seja, durante os 27 anos do contrato pelo menos 90% das 3336 vagas devem estar sempre ocupadas. A lógica é a seguinte: se o país mudar muito em três décadas, parar de encarcerar e tiver cada dia menos presos, pessoas terão de ser presas para cumprir a cota estabelecida entre o Estado e seu parceiro privado. "Dentro de uma lógica da cidadania, você devia pensar sempre na possibilidade de se ter menos presos e o que acontece ali é exatamente o contrário”, afirma Robson Sávio.

Para ele, "na verdade não se está preocupado com o que vai acontecer depois, se está preocupado com a manutenção do sistema funcionando, e para ele funcionar tem que ter 90% de lotação, porque se não ele não dá lucro”.


FONTE: Adital

quarta-feira, 16 de julho de 2014

24 anos do Estatuto da Criança e Adolescente – ECA


Por Paula Rodrigues


Neste mês de julho comemoramos 24 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Há um movimento midiático e conservador que tenta deslegitimar a sua importância, com argumentos que não consideram o que o ECA representa para as crianças e para os adolescentes brasileiros – principalmente aos pobres, periféricos e em situação de vulnerabilidade. Por isso, fazemos um convite para revisitar a nossa história.

Um pouco da História Social da Infância Brasileira

Nem sempre, ao longo da história, existiu o conceito de criança ou de adolescente como nós utilizamos nos dias de hoje. Até os anos de 1500, na baixa Idade Média, não existia infância ou adolescência. Talvez, para entendermos isso, nem precisamos voltar 500 anos na história. Basta resgatar a história de nossas famílias, com nossos avós ou bisavós, perguntando com qual idade eles começaram a trabalhar ou com qual idade se casaram, constituíram família.

Essas duas etapas da vida, com suas necessidades, prioridades e especificidades não existiam. Elas eram excluídas em todos os sentidos e esferas da vida, quer seja familiar, moral ou econômico. É a partir de 1600 que a noção de criança começa a aparecer; adolescente, somente em 1900.

A primeira demonstração oficial de interesse público pela criança no Brasil data de 1693, com o envio de uma carta da Coroa Portuguesa ao Governador da Capitania do Rio de Janeiro. Reproduzindo um pouco das ideias escritas na carta, ela dizia sobre a pouca piedade que existia com as crianças enjeitadas, sendo que muitas eram achadas mortas ao desamparo, sem que a misericórdia as recolhesse, dizendo não terem rendas para cria. Dessa forma, o Rei ordena que sejam criadas obras pias destinadas a recolher e manter os abandonados.

A partir daí, temos início a uma fase de atendimento à criança enjeitada, conhecida por filantrópica. Isso quer dizer que o que mobilizou os nossos colonizadores, a partir da escrita desta carta, a destinar algum recurso para recolher crianças recém-nascidas ou ainda bebês que eram abandonadas para não deixá-las ao relento, foi apenas um sentimento baseado na piedade e na caridade. É assim que com as doações de nobres e ricos comerciantes, além de uma ínfima parte das riquezas exploradas e usurpadas do Brasil Colonial, foram destinadas às Santas Casas de Misericórdia existentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, para que fossem criadas as Rodas dos Expostos.

As Políticas de Atendimento à Criança e Ao Adolescente no Brasil

As Rodas dos Expostos (símbolo da filantropia na época) existiam desde os anos de 1500 na Europa. Eram compostas por um mecanismo com uma portinhola que, ao ser aberta, revelava um cilindro embutido na parede, que girava 180 graus. Para funcionar, bastava acomodar a criança no interior desse cilindro e girá-lo, passando o bebê para o interior do prédio. Quem deixava a criança tocava uma campainha, acionando um sinal sonoro no dormitório das freiras. Uma delas, então, recolhia a criança e providenciava sua internação. A imagem abaixo é um exemplar que funcionava em Portugal.

A taxa de mortalidade das crianças que eram deixadas na Roda chegava a 70% e, ao contrário do que se possa imaginar, muitas delas não eram crianças oriundas de famílias pobres que não possuíam provisões para criá-las. Muitas vinham de famílias abastadas, mas eram frutos de infidelidade da mulher; filhos de mães solteiras ou das próprias freiras; filhos de senhores com escravas; entre outros casos. Na grande maioria das vezes, caso sobrevivessem, todas permaneciam internadas até serem encaminhadas para famílias que as mantinham como agregadas, como criadas ou serviçais.

A partir dos anos de 1850, o modelo filantrópico começou a ser permeado por uma política higienista, na qual a legislação procurava garantir procedimentos em relação ao parto, à mãe e criança. Desta informação poderíamos supor um avanço, mas fato é que esses cuidados seguiram um rumo bastante controverso: a tentativa de arbitrar na vida reprodutiva das famílias que recebiam qualquer subsídio assistencial para a manutenção de sua vida material. Teorias conservadoras defendiam a esterilização de mulheres pobres que procriassem, por exemplo.

É nesta época que é construída a ideia de “menor” para nomear as crianças e os adolescentes imersos na situação de pobreza na sociedade brasileira. Até o fim de 1800 a palavra “menor” não tinha um significado negativo. Até então menor era palavra utilizada para se definir as pessoas de acordo com a faixa etária. Até meados de 1900, então, menor era sinônimo de criança, adolescente ou jovem que, pela idade, ainda não podiam contrair determinadas responsabilidades (ser responsável por si, casar, ter responsabilidades civis e canônicas).

Já nos anos de 1900, as contradições do processo de industrialização e de expansão não estruturada das cidades, a palavra “menor” passou a ter um significado negativo, que estava ligado à pobreza. Não foi por indicar uma condição de privação econômica e social que o termo passou a ser pejorativo; mas pelo fato da pobreza ser interpretada quase como sinônimo de delinquência e de abandono.

Para os legisladores e juristas da época, os menores eram um problema social que precisava ser combatido. Foi assim que a palavra deixou de ser uma designação de característica etária e adquiriu valores ligados aos aspectos sociais, qualificando crianças e adolescentes desprovidos de condições materiais e em situação de abandono.

Crendo na probabilidade de esses sujeitos incorrerem em atividades ilícitas e criminosas, no começo dos anos de 1900, o Brasil começou a pensar em formas de “proteger” os menores de caírem no banditismo, apesar de não ter qualquer prova ou estudo relacionando diretamente pobreza e delinquência. De qualquer forma, as crianças e os adolescentes pobres sofriam com essas determinações.

É neste momento que ocorre a aprovação do primeiro Código de Menores, de 1927, marcando a fase de atendimento que alguns estudiosos denominam Assistencial. Aqui ocorreu a regulamentação de todas as instituições filantrópicas, que até aquele momento se encarregavam dos “abandonados” e “desvalidos”, pelo Juizado de Menores. Dessa forma, o Estado passou a se responsabilizar pela tutela das crianças e dos adolescentes, com o objetivo de manter a “ordem pública” e o “patrimônio” que este contingente parecia ameaçar. Apesar dos legisladores identificarem que a miséria era motivadora de abandonos e poderia ser responsável pela delinquência, optaram em atribuir ao Estado uma função paternalista ao invés de problematizar as incontáveis contradições do sistema capitalista.

Importante frisar, ainda, que até aqui a criança e o adolescente jamais tiveram um status social de sujeito. Sempre foram tutelados, tratados enquanto sujeitos passivos e sem qualquer garantia de que sua vontade e anseio pudessem ser considerados. Não eram tratados como sujeitos em desenvolvimento que precisam, paulatinamente, serem preparados para a vida adulta. Eram tutelados, simplesmente. Não tinham direito à voz.

Em dezembro de 1964, a inoperância do sistema assistencial resultou na extinção das instituições filantrópicas e das Rodas dos Expostos que existiam país a fora.  É nessa ocasião que se inaugura uma nova fase de atendimento: a Institucional, com a criação da FUNABEM (Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor), subordinada ao Serviço de Apoio ao Menor (SAM) existente desde 1940. A FUNABEM era vinculada à Escola Superior de Guerra e, portanto, fortemente influenciada pela Ideologia da Segurança Nacional.

A Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM), que fora criada em âmbito nacional pela FUNABEM e implantada nos Estados Brasileiros logo no início dos anos 70. A FEBEM foi uma política pública, amplamente propagandeada no período da Ditadura Civil- militar (1964-1985), que serviria como abrigo aos carentes e como casa correcional aos infratores.  No entanto, a FEBEM não conseguiu, ao longo de sua história, efetivar as questões que se propunha em seu estatuto: proporcionar tratamento específico aos menores que teriam sido atingidos pelo processo de marginalização. O carro chefe deste tratamento era o confinamento, em um sistema de internato. Além disso, ao longo de sua história, a instituição esteve entre as manchetes de jornais e foi denunciada sobre os maus tratos, espancamentos, a violência psíquica, violência sexual e múltiplas violações. Todos esses elementos ocasionaram na falência deste modelo.

Em 1990, frente aos problemas apresentados pelo desgastado modelo institucional da FEBEM e frente às lutas que surgiram e propunham outro paradigma para a questão da criança e do adolescente, foi sancionada a Lei 8.069 em 13 de julho de 1990. Conhecida como ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), ela regulamenta uma série de direitos garantidos a partir da Constituição de 1988.  Sua importância está em proclamar a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, colocando-os como prioridade da sociedade brasileira e merecedora de proteção integral.

Entre outras questões de suma importância, o ECA visa superar a concepção de menor. A partir de então, esse termo caiu em desuso. Dizer menor para se referir a uma criança ou um adolescente é resgatar toda a carga histórica que essa palavra carrega. A partir do Estatuto, utilizamos criança para sujeitos de 0 a 12 anos incompletos; e adolescentes para sujeitos de 12 anos completos até 18 anos. Brasileiros, sem distinção de raça, cor ou classe social, passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos e deveres, considerados como pessoas em desenvolvimento; sujeitos a quem devemos sempre priorizar.

O novo ordenamento jurídico introduziu uma série de inovações na política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente aplicáveis a todas essas crianças e adolescentes e não apenas a uma parcela do segmento infanto-juvenil caracterizada por sua situação socioeconômica – movimento que acabava por estigmatizar os filhos dos trabalhadores e dos excluídos do modo de produção capitalista. A partir do ECA, todos são responsáveis pela formação e proteção desses sujeitos de direitos, não importando a consanguinidade, a religião e a política pública.

É evidente que ainda hoje há distinção entre crianças e adolescentes, inclusive do ponto de vista institucional. Porém, após o breve resgate histórico das fases da política de atendimento no Brasil, queremos ressaltar a importância do ECA como instrumento para exigirmos direitos para as crianças e os adolescentes, pelos quais também somos responsáveis e que outrora eram tratadas como vítimas ou como potenciais criminosos. Agora, do ponto de vista legal, eles são sujeitos em formação, dignos de proteção, cuidados e respeito.

Apesar de toda a luta que resultou no ECA, a realidade nos coloca frente ao desafio de fazer com que ele saia do papel e seja cumprido. Em primeiro lugar, pelo fato de forças conservadoras produzirem discursos deslegitimando os processos de mobilização e construção que garantiram que a lei 8.069/1990 fosse sancionada. Além disso, as alarmantes cifras apresentadas por estudos a respeito do alto índice de mortalidade de adolescentes pobres, negros e periféricos, as sistemáticas denúncias de maus tratos na Fundação CASA, a falta de estrutura dos Conselhos Tutelares e das redes de atendimento à criança e ao adolescente, entre outras dificuldades, são empecilhos para a efetivação dos dispositivos da lei. A luta, embora tenha sido árdua, não acabou.

   
FONTE: A Verdade

sábado, 12 de julho de 2014

Plágio Acadêmico


Por Bruno Garschagen

Plagiar nunca foi tão fácil e freqüente nas universidades brasileiras, principalmente depois da popularização da internet. Os professores universitários são obrigados a duvidar de todos os trabalhos entregues pelos alunos. “O plágio nas universidades se tornou uma pandemia”, lamenta Lécio Augusto Ramos, professor de Metodologia da Pesquisa do Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá e orientador de Trabalho de Conclusão de Curso da cadeira de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Segundo ele, há um grande processo intenso de apropriação indevida de frases, parágrafos e até trabalhos inteiros nos cursos de graduação e pós. Embora exista uma legislação especifica sobre direitos autorais e o Código Penal estabeleça punições, a cópia se torna cada dia mais comum entre os estudantes. “O plágio intelectual é indefensável e está presente em todos os níveis, do jornalismo à academia”, ressalta Lécio.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a cópia também tem sido detectada de forma freqüente. Ana de Alencar, professora de Teoria Literária da Faculdade de Letras da UFRJ, conta que o tema se tornou recorrente nas conversas entre os professores, que aplicam nota zero quando identificam o furto teórico. Ana, no entanto, não dramatiza a questão. Acha que o desenvolvimento tecnológico provocou uma revisão do debate sobre direitos autorais. Mesmo assim, considera o plágio inaceitável.
Ruim como certos chopes
Rosa Benevento, Coordenadora do Departamento de Comunicação Social da UFF, que engloba os cursos de jornalismo, publicidade e cinema, revela que, tão grave quanto o plágio, foi descobrir que a cópia, em muitos casos, não ocorre exatamente por má-fé, mas porque o aluno aprendeu a plagiar no ensino médio: “Isso me alertou para o tipo de ensino de pesquisa e elaboração de trabalho que esses alunos estão aprendendo antes de chegar à faculdade. Isso é muito preocupante”, avalia.
Rosa conta que a identificação cada vez mais regular de trabalhos com plágios obrigou a faculdade a realizar palestras de orientação sobre o assunto. “A idéia é mostrar para eles que o mais importante é criar e não copiar”. Para os alunos, copiar é preciso. Exercitar o intelecto, nem tanto.
Seja por desconhecimento ou má-fé, o fato é que nunca se viram na história do ensino brasileiro tantos plágios identificados, segundo os professores entrevistados. A maioria dos alunos ignora ou finge não saber que a cópia sem citação da fonte tem conseqüências jurídicas nas esferas civil e penal.
O advogado Rodrigo Borges Carneiro, especialista em Direitos Autorais e Propriedade Intelectual, diz que o plágio configura o crime de violação dos direitos do autor, tipificado no artigo 184 do Código Penal. O plagiário pode ser condenado a pena de detenção de três meses a um ano, ou multa. Caso a violação consista “em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, (...) sem autorização expressa do autor, (...) ou de quem os represente”, a pena será de dois a quatro anos de reclusão, e multa.
A Lei de Direitos Autorais (9.610/1998), que regula a matéria, estabelece que “ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor” (artigo 33). O artigo 7 da lei define as obras intelectuais protegidas pela lei (os textos de obras literárias, artísticas ou científicas, obras dramáticas, composições musicais etc.) e o artigo 22 diz que os direitos morais e patrimoniais sobre a obra criada pertencem ao autor. É óbvio, mas é a lei, que, não raro, é óbvia.
Direito autoral, na definição de Henrique Gandelman no livro O que você precisa saber sobre Direitos Autorais, “é a proteção jurídica das formas de expressão originais e criativas, tanto de idéias como de conhecimento e sentimentos humanos”. Mais claro do que isso, só chope de má qualidade servido em certos barzinhos da predileção dos universitários.
O uísque como padrão
No Brasil, os direitos do autor foram reconhecidos legalmente pela primeira vez em 1891, com a primeira Constituição republicana. A matéria passou a ser regida pelo Código Civil a partir de 1917, mas em 1973 entrou em vigor uma lei específica (Lei 5.988). Atualmente, como já dito, os direitos autorais são regulados pela lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Além das normas internas, o país aderiu a cinco tratados internacionais que protegem a propriedade intelectual: Convenção de Berna; Convenção Universal; Convenção de Genebra; e Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPs).
O conceito de copyright, porém, é bem mais velho. Surgiu na Inglaterra mais de um século antes da inserção da matéria na constituição brasileira. Foi durante o reinado da rainha Ana, mais precisamente em 1709, que se elaborou o Copyright Act, segundo Gandelman em seu livro sobre direitos autorais.
A coroa passou a proteger por 21 anos, idade de um uísque de ótima qualidade, as cópias impressas de determinadas obras registradas formalmente. As obras não impressas eram protegidas durante 14 anos, pouco mais do que o padrão de um scotch mais do que razoável. Até então, sob a vigência do Licensing Act, de 1662, só os editores comiam o pirão. Os autores chupavam dedo.
Na França, os autores conseguiram fazer valer seus direitos no final do século XVIII. A Revolução Francesa em 1789, que, além das decapitações, teve na defesa dos direitos individuais uma de suas marcas mais significativas, foi o estopim para que o conceito do copyright inglês fosse incorporado à legislação do país de Rabelais.
De lá para cá, a legislação foi se aperfeiçoando no mundo ocidental. E, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU), na Assembléia Geral realizada em 10 de dezembro, inseriu na Declaração Universal dos Direitos Humanos que todo homem tem ‘direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção literária, artística ou científica de qual seja o autor’ (artigo 27, parágrafo 2).
Aranhas em teia alheia
Desde a popularização da internet, o uso muitas vezes indiscriminado do conteúdo disponível na rede gera debates intermináveis sobre a propriedade intelectual e sua proteção legal. Estabeleceu-se a confusão (para alguns, uma certeza inabalável) de que os textos disponíveis para leitura e consulta pudem ser reproduzidos ad nauseam sem ao menos um pedido de permissão por e-mail - que dirá remuneração. Quem escreve sabe que, na world wide web, as aranhas se incumbem de espalhar a teia alheia.
E se os internautas estão se criando e sendo criados sob a mentalidade do desrespeito com a proteína mental alheia, alguns intelectuais referendam a velhacaria e estimulam o crime.
Pierre Lévy, popstar do pensamento sobre o mundo digital, teve a desfaçatez de escrever no seu livro O que é virtual que a “distinção do original e da cópia há muito perdeu qualquer pertinência” na internet. Ele acha que “não há mais um texto, discernível e individualizável, mas apenas texto, assim como não há uma água e uma areia, mas água e areia”.
Se o pecado fosse apenas a obviedade, tudo estaria resolvido. Mas o problema é de outra ordem. E muito mais grave. Lévy quer vender a idéia abjeta de que no espaço virtual não cabe falar em originalidade e autoria. O texto, como obra individual, se perderia num imenso sopão de letrinhas. Assim, não haveria razões para se estabelecer critérios de qualidade. Qualquer viúva de Bukowski seria colocada na altura de Philip Roth, para ficarmos em autores contemporâneos.
Lécio Ramos, professor da Universidade Estácio de Sá, atribui a quatro fatores o crescimento do plágio intelectual:
1- A deformação na formação educacional e intelectual de alunos, professores e demais profissionais da área;
2- A diluição ética do que é e do que não é lícito fazer;
3- A facilidade trazida pela internet, que coloca à disposição, em escala geométrica, muitos textos para quem quiser copiar;
4- A falta de tempo e pressão para produzir trabalhos.
Amigo e alcagüete
D.G, aluno de Direito na Universidade no Rio de Janeiro, diz que 90% dos trabalhos que entregou na faculdade são plagiados de textos disponíveis na internet. O acadêmico revela que copia pela praticidade, agilidade e certeza de que assim terá um trabalho de melhor qualidade do que se fizesse por conta própria.
E sobre o aspecto ético e legal, tão caros ao direito? “Na verdade, nunca parei para pensar nisso. Quase todos os meus colegas na faculdade também copiam da internet ou copiam trabalhos que foram feitos assim”, diz D.G. “Mas sei que o maior prejudicado serei eu mesmo.”
O plágio se tornou um problema tão sério que os professores universitários ouvidos por NoMínimo defendem a adoção imediata de um trabalho pedagógico de conscientização e o ensino mais eficaz de como pesquisar e usar as fontes de informação. Ana Alencar, da UFRJ, acha fundamental seduzir o aluno despertando-lhe o interesse pelo desenvolvimento intelectual. E ela não propôs chopada nem churrasco, mas aulas dinâmicas.
Rosa Benevento, da UFF, diz que os professores podem coibir o plágio acompanhando o desenvolvimento do aluno. “Conhecendo o aluno, é possível perceber imediatamente se o trabalho que ele produziu está de acordo com sua formação e rendimento.”
Lécio Ramos, da Estácio de Sá, acha que esse é um dos caminhos, mas lembra aos professores que consultar um programa de metabusca também é importante para verificar a origem da cópia. Na maioria das vezes, o Google denuncia imediatamente a fonte do furto intelectual. O programa criado por Sergey Brin e Larry Page é, ao mesmo tempo, grande amigo dos plagiários e o mais eficiente alcagüete dos jovens criminosos.
Por tão suspeito quanto o mordomo
Há três tipos muito comuns de plágio, segundo o professor da Estácio de Sá:
- plágio integral - a transcrição sem citação da fonte de um texto completo;
- plágio parcial - cópia de algumas frases ou parágrafos de diversas fontes diferentes, para dificultar a identificação;
- plágio conceitual - apropriação de um ou vários conceitos, ou de uma teoria, que o aluno apresenta como se fosse seu.
Muitos alunos, para engabelar os professores, deixam para entregar os trabalhos no fim do prazo na esperança de que o acúmulo de textos para corrigir impeça a descoberta do plágio.
Uma dica para não copiar por erro ou ignorância (excluindo a má-fé) é seguir as recomendações de Umberto Eco no livro Como se faz uma tese em ciências humanas. O professor italiano cita exemplos bastante claros de uma ‘paráfrase honesta’, ‘uma falsa paráfrase’ e uma ‘paráfrase textual que evite o plágio’. Ali está o caminho das pedras.
O plágio ampliou as responsabilidades do professor, que, pela regularidade com que encontra trechos copiados, opta por aplicar uma nota zero ou solicitar ao aluno que refaça corretamente o trabalho. Alguns são diretamente encaminhados ao departamento responsável para as devidas punições, que começam com uma advertência e podem culminar na expulsão da universidade.
E se engana quem acha que só os alunos se valem do plágio. “Tivemos casos aqui até de professores plagiando trabalhos de outros professores”, revela Rosa Benevento, da UFF. Um dos casos mais notórios, que não envolve internet, foi apontado pelo diplomata José Guilherme Merquior, intelectual de primeira e uma espécie de pitbull das polêmicas. Num texto para a ‘Folha de S. Paulo’ em julho de 1989, Merquior revelou a ‘desatenção’ da professora de filosofia Marilena Chauí ao inserir vários parágrafos do pensador francês Claude Lefort, sem citar a fonte, no seu livro Cultura e democracia.
O filósofo Roberto Romano, num texto para o ‘Correio Popular’ de setembro de 2005, lembra que ‘movido pela piedade e diante dos lamentos dramáticos por ela encenados’, tentou defendê-la. E levou ‘merecidas pauladas de Merquior’. Romano revela que um figurão ‘importantíssimo no Panteão da esquerda’, único a não se sentir indignado com Merquior, ‘disse clara e distintamente: Ela colou’. Lefort, professor e amigo de Marilena, tentou publicamente salvar a aluna da acusação, mas Merquior não havia deixado abertura para refutações.
Nenhuma instituição está salva do plágio e os alunos passaram a ser tão suspeitos quanto o mordomo dos romances policiais. E, se a cara de pau dos plagiários não tem nada de virtual, a velha assassinada não é mais uma vovozinha rica, mas o presente e o futuro intelectual de uma nação."

FONTE: www.observatoriodaimprensa.com.br

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