domingo, 28 de junho de 2015

Polêmica: “Nunca fomos cordiais”


Violência para nós, brasileiros, é um valor - e se confunde com nossa percepção do que é
"ser homem". É triste que Manuel Castells tenha de nos dizer isso


Por Wedencley Alves

(Texto-resposta ao querido Theotonio de Paiva)


Hoje, mais cedo, um querido amigo me chamou a atenção para uma matéria da Folha, onde Manuel Castells afirma que não é a internet que nos faz violentos. Mas o próprio país, que tem um histórico longo de violências. Ele tem razão, mas não precisava, comentei, um estrangeiro nos dizer isso.

Violência para nós é um valor: desde as, aparentemente, ingênuas malhações de judas (e quem malhávamos, quer dizer, espancávamos “simbolicamente”? Os vizinhos, aqueles de quem não gostávamos, os maridos “traídos”, as mulheres que, supostamente, “não inspiravam respeito”, o gay, o devedor, o comerciante antipático etc.).

Somos violentos porque desde cedo o garoto é ensinado a não voltar pra casa “chorando”, para não apanhar “duas vezes”. Nossa violência se confunde com nossa percepção do que é “ser homem”. Sim, porque as mulheres brasileiras não são mais violentas — fisicamente, embora do ponto de vista “verbal”, tenho lá minhas desconfianças — do que qualquer outra mulher no mundo, mas os homens, sim, em relação aos outros.

Temos violência de classe (pobres se matam muito, e as elites e classes médias “mandam” matar: o que são os assassinatos policiais, senão o efeito da carta branca que damos a “eles” para matar em nosso nome, em defesa do nosso patrimônio?). Temos violência de raça (socialmente falando), temos violência de gênero.

Somos violentos nas discussões políticas, futebolísticas. Não confiamos na justiça, confiamos na vingança e, particularmente, mesmo a justiça, quando ganha os holofotes, quer reafirmar a violência como valor; ou, quando longe dos holofotes, recorre a arbitrariedades impensáveis contra os mais frágeis (ou inimigos políticos “a mando”).

Somos os campeões de tortura, de linchamentos letais, morais, midiáticos. Das mortes nos campos, nas cidades, nos lares.

Morador de Nova Iguaçu, vi boa parte dos meus amigos de infância morrer na mão de terceiros: de bandidos? Não. Até de amigos ou colegas. Acerto de conta, briga de bar, ciúme de garotas.

Somos a cultura daquele que fala mais alto, aquele que bate na mesa, aquele que chama pra porrada, aquele que “não aguenta desaforo”, aquele que mete o dedo na cara, e aquele que pergunta “sabe com quem você está falando?”.

Somos violentos nos programas de humor infantis, nas piadas sem graça, no campo de futebol, na sala de aula, pra reafirmar nossa macheza incipiente. É lógico que nossos bandidos serão violentos. Eles serão parte da sociedade em que vivem. Não quero nem falar do trânsito estúpido, com recorde mundial de mortes. Carros são armas perigosas nas nossas mãos.

Nossa violência é verbal, institucional, física, psicológica.

O Brasil não é o campeão de homicídio. Mas está muito perto de ser. Não importa os dois ou três países mais violentos que nós. Importa que precisávamos repensar isso: subtrair a violência como um valor social. É preciso que nossa violência se torne motivo de vergonha, não de orgulho; vexaminosa, não auto-afirmativa.

É preciso desconstruir, de uma vez por todas, esta cultura da violência. Não para sermos o ideal com que um dia mentiram pra nós. Mas ao menos para que não nos matemos diariamente.


Wedencley Alves é professor do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. É doutor em Linguística (Unicamp) e mestre em Comunicação (UFF). Pesquisador na área de comunicação e discurso, hoje dedica especial atenção a questões envolvendo “mídia e violência” e “mídia e saúde”


quarta-feira, 24 de junho de 2015

Malogros educacionais




Por Maria Sylvia Carvalho Franco

O Fies nem sequer consegue igualar oportunidades: a maior parte de seus alunos tem renda familiar superior a 20 salários


Pouco se lembra, hoje, nos debates sobre política e economia brasileiras,  o peso da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), órgão cuja presença foi clara quando alguns de nossos políticos e intelectuais refugiaram-se no Chile, nos idos do golpe militar. Esses liames persistiram, com seus projetos e sequelas: a industrialização corretora da dinâmica dos mercados internacionais, a substituição de importações, a melhoria  de renda e nível de vida, o mercado interno menos sujeito a importações e de viés exportador, a produção competitiva, adequada ao comércio externo. Acoplados a esse mecanismo, preconizou-se a intervenção do Estado, a “cooperação” do capital internacional (de bancos como BID, FMI, Bird, Banco Mundial),  o progresso tecnológico, embutido na esperança de uma burguesia nacional inovadora, digna de incentivos e privilégios.


Na medida inversa ao programa, universidades federais foram deixadas à míngua

Esse quadro se apoiou na distinção centro/periferia elaborada por R. Prebish (ligado a bancos). Sua influência exerceu-se desde Juscelino, era em que, ampliando o nacionalismo populista de Vargas, é reconhecível a engrenagem cepalina, ampliada pela ditadura. Nessa fase, governo e empresários, associados, mantiveram o nacionalismo desenvolvimentista, o recurso ao endividamento e à  industrialização e outras medidas, que levaram ao “milagre brasileiro”. Contudo, a repressão atalhou o ilusório pacto entre patrões, trabalhadores e poderes públicos, base do modelo imaginado pela Cepal. O automatismo concebido em sua engrenagem, com as benesses fluindo de alto a baixo no sistema, exclui a fortuna e os conflitos políticos, advogando a paz perene. Desatento ao exercício de poder, o aparato doutrinário da Cepal moveu-se no melhor dos mundos, qual ideologia de Pangloss, presumindo a harmonia universal.

São notórios os males do esquema suposto “progressista”, mas conservador, se não regressivo, contíguo ao formulário neoliberal. Face aos danos, a Cepal buscou diferenciar-se dos amargos remédios-venenos que receitara. Admitindo não haver nexo direto entre desenvolvimento econômico e social, reconhecendo inexistir filtragem de benefícios para os grupos carentes, o neoestruturalismo dirigiu seu diagnóstico antes para condições históricas próprias aos países que para a política econômica, preservando, porém, o serviço da dívida externa. Ao Estado caberia complementar o jogo do mercado e enfrentar os novos desafios da industrialização a fim de –  superando a lógica de Prebish, sem excluir o investimento externo – apoiar processos endógenos de acumulação conjugados à eficiência, ao progresso técnico, ao frugal consumo público e privado, à disciplina fiscal, aos incentivos e isenções tributárias cautelosos, à boa distribuição da renda e benefícios sociais, a inserção vantajosa do País na dinâmica da economia mundial.

Essa política supõe a trama de empresas, educação, tecnologia, infraestruturas, relações trabalhistas, instituições públicas, sistema financeiro. Seu desígnio é gerar equidade e justiça social, garantir a democracia, erradicar a pobreza, impedir a concentração da riqueza, alavancar empregos, corrigir a informalidade no mercado de trabalho, redistribuir  renda, promover o amparo mútuo entre governante e governados. Tudo isso implica modernizar o sistema produtivo, reeditando a imagem de patrões e empregados dinâmicos, criativos e responsáveis, aptos ao consenso e coordenação (O.Sunkel e G. Zuleta, Neo-Structuralism Versus Neo-Liberalism, Cepal Review, nº 42 ).

Assistimos à falência dessa quimera no governo Dilma, a qual, enquanto chefe de Estado, comprometeu-se com as posições cepalinas. Em sua Mensagem no 34º Período de Sessões da Cepal (2012),  enumera os feitos de seu governo,  coincidentes com aquelas teses: o ataque aos malefícios implica a “visão integrada para a qual a contribuição da Cepal tem sido decisiva”. Invocando a exigência moral e econômica necessária ao crescimento, vangloria-se de ter construído “um mercado de consumo de massa, com a retirada de milhões de pessoas da miséria e da pobreza, o que permitiu a criação de um círculo virtuoso em nossa economia”.

Antes (2010), os laços com a Cepal já eram  estreitos: sua secretária executiva foi a Brasília para, com autoridades federais, preparar o próximo encontro da Comissão. Nesse contexto, os vínculos Cepal-Brasil metamorfosearam-se em Cepal-PT, com a designação de Antonio Prado para secretário executivo adjunto da entidade. Seu currículo inclui cargos em instituições como o BNDES e  a coordenação do programa de governo de Lula em 2002, conotando “a clara indicação do governo petista à Cepal” (Sergio Leo, Valor Econômico).

Os compromissos do governo brasileiro com as fórmulas cepalinas subjazem aos reveses de nossas políticas públicas, tal como na educação superior. Nesta, as ações político-pedagógicas ajustam-se em minúcia ao documento Educacion y Conocimiento, Eje de la Transformacion Productiva con Equidad (CEPAL,1992). Destacarei só uma de suas partes, suficiente para delinear seu conservadorismo, se não apologia do capitalismo avançado. Nele, é esmiuçado o ideário acima referido.

Nessa plataforma, o “progresso científico-tecnológico” sustenta a “transformação das estruturas produtivas” com “progressiva equidade social”. Esses  alvos supõem o treino técnico-científico, vital à competitividade dos países e ao desempenho democrático. Isso suporia um consenso nacional abrangendo governos, empresários, universidades, partidos políticos, parlamentares, investigadores educacionais, igrejas e sindicatos. No fulcro dessa ordem jaz o mecanismo dos mercados: o aprendizado  instrui para o trabalho produtivo, a tecnologia que o informa leva à inserção nos negócios globais, a equidade e democracia – a moderna cidadania –  visam ao domínio dos “códigos” da modernidade,  o saber tecnológico. Fecha-se o círculo: a técnica funda a educação e a última garante a hegemonia da primeira, ambas norteadas pelo trato mercantil em vários âmbitos, do indivíduo ao cosmos.

O crescimento e competitividade geradores de cidadania conjugam-se ao nacionalismo e à  ética fundadora da expansão econômica benfazeja. Nessa estratégia, entende-se por nacionalismo a “identidade cultural dos povos”, com os mores locais operando como articuladores entre prosperidade econômica e bonança democrática. Assim entendidos, os valores nacionais projetam as outras cláusulas para o equilíbrio econômico e a coesão social: competitividade, integração e descentralização. O argumento que as legitima está em fruir as diversidades culturais modernas, os novos rumos abertos ao sistema educativo, mais eficiente se integrado e conduzido por dirigentes locais, que melhor podem ajustar os programas didáticos à coletividade tornando-se mais afinados com as necessidades produtivas e as demandas locais de profissionalização e competitividade. Desse prisma, pedagogia e políticas públicas destinam-se a otimizar a produção e circulação de mercadorias, critérios decisivos para o ensino e o trabalho. Novamente as exigências dos mercados ingurgitam as boas intenções (ou asseguram seu próprio êxito).

Nesse quesito, o documento cepalino sucumbe à contradição própria ao liberalismo: garantir a intervenção do Estado até onde sustente o processo de dominação socioeconômica e recusá-la quando essa ingerência limite as liberdades pretendidas. Essa antinomia é clara no projeto de ensino descentralizado e autônomo. De um lado, ele requer o apoio do Estado provedor, compensando pontos de partida desiguais, equiparando oportunidades. De outro, os requisitos de eficiência e autonomia não se confundem com privatização institucional ou transferência de custos aos agentes privados. De fato,  esse “conjunto  essencial de capacitação, de investigação e de desenvolvimento devem ser realizadas pela sociedade e contar com o patrocínio e o financiamento público”. Por “sociedade”, entenda-se “escolas privadas”, restando ao setor governamental despojar o patrimônio público. De fato, opera-se vasta privatização do ensino superior, arcada pelo Estado

Os malogros educacionais da administração Dilma ajustam-se às regras da Cepal. Na intenção, caberia às escolas colocar ao alcance dos jovens os “códigos da modernidade”; de fato, a elas foi outorgada plena autonomia, sem controle público, sem exigência de êxito em exames oficiais para a admissão nos cursos. Os imensos recursos investidos no Fies, sem fiscalização, tornaram o ensino superior um grande negócio. Essa magnitude é exemplar na expansão da Ser Educacional, de Pernambuco, que além da compra da Universidade de Guarulhos (cinco unidades em São Paulo), visa a multiplicar sua presença nas principais cidades do Norte e Nordeste (pedido ao MEC de 25 câmpi nessa região) e, mais, tem interesse no ensino a distância (Valor Econômico).

Grande parte da renda nas escolas privadas vem do lucro sem risco, garantido pelo Estado. Dadas suas  subvenções, o valor das mensalidades aumentou, o número de estudantes cresceu, os ágios subiram. (Estadão Dados) Do lado oposto, os juros subsidiados e o dilatado prazo de pagamento, nos contratos com o governo, mesmo eliminando possível inadimplência, acarreta largos prejuízos  à União. Ganhos privados versus perdas públicas não seria um cômputo irônico se as escolhas estudantis recaíssem sobre as áreas ditas  estratégicas. Ao revés, observa-se o desvio dos fins postos para o progresso do conhecimento e do País – os saberes tecnológicos. Cerca de 1/3 dos contratos do Fies em 2013 foram para direito, administração e enfermagem. Entre as matérias próximas ao “eixo para o desenvolvimento”, apenas engenharia civil cresceu (Estadão Dados). Outro malogro vem da clientela assistida pelo Fies: em vez de suscitar  equidade, ou “igualização de oportunidades”, a maior parte dos  alunos subvencionados é de jovens cuja renda familiar é superior a 20 salários mínimos,  aptos a pagar escolas privadas.

A autonomia das universidades particulares refluiu com as recentes medidas do governo, que freou os repasses financeiros, conteve o aumento de mensalidades, introduziu condições acadêmicas, definindo graus de avaliação  e coeficientes requeridos nos exames públicos. Concebidas como empresas mercantis, essas escolas não foram apenas afetadas nas áreas funcionais e discentes, mas também no circuito financeiro, nas bolsas, que oscilam face às projeções de sua lucratividade. Diante das ameaças, seus donos pressionaram o MEC e conseguiram amenizar as restrições.

Apesar dessas alterações  no campo universitário, sua exploração é um negócio da China: grande volume, no geral baixa qualidade, salários parcos, lucros altos. Tanto é assim que, com a redução do aporte federal, o crédito universitário privado ressurgiu  atraindo  bancos e outras financiadoras das escolas.  Na medida inversa, as universidades federais foram deixadas à míngua. Também abandonados foram os estudantes aos quais muito se prometeu. A perversão do ensino universitário privado não passou despercebida à reflexão pedagógica: em artigos, teses, blogs especializados, há profusão de investigações sobre o tema.  Não foi por falta de alerta, mas por  dogmatismo ideológico, que o governo federal caiu na própria armadilha.


Maria Sylvia Carvalho Franco é professora Titular de Filosofia da USP e da UNICAMP


Texto postado originalmente em:

http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,malogros-educacionais,1663494


sábado, 20 de junho de 2015

Agrotóxicos: Conheça o ‘tempero’ mais usado por brasileiros que pode matar a sua família



Daniel Boa Nova – Em todas as regiões do país são encontradas amostras de resíduos tóxicos em concentrações acima do recomendável, seja nas plantações, no solo, nas águas ou nos peixes.

Imagine que um amigo convida você para almoçar na casa dele. Na mais saudável das intenções, a proposta é um menu leve. Digamos que uma salada de entrada e batatas recheadas no prato principal. Você possivelmente toparia o convite, não? E se ele dissesse que usaria veneno no tempero?

É isso que acontece na casa de uma pessoa qualquer como eu, você e esse amigo fictício. E também nos restaurantes de esquina, buffets por quilo e praças de alimentação. Pode lavar as folhas, deixar a cenoura no vinagre e esfregar cada pepino com bucha. Se na lavoura eles receberam agrotóxicos, ainda estarão contaminados. Quem diz isso não é o Hypeness, é a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Se todos os defensivos agrícolas utilizados por ano em nosso país fossem divididos pela população, daria um galão de 5,2 litros para cada brasileiro. Vai um aí na janta?

Foi no pós-2a Guerra que o uso de agrotóxicos passou a ser disseminado, com o crescimento exponencial da agricultura industrial. A chamada Revolução Verde levou uma série de inovações ao campo para aumentar a produção agrícola. Entre elas, a substituição da mão-de-obra humana pela mecanizada, o advento de sementes geneticamente modificadas e o uso de adubos químicos e venenos para pragas. O objetivo declarado até poderia ser nobre: combater a fome. Porém, cinquenta anos depois, além dos impactos sociais causados pelo êxodo rural, as consequências para o meio ambiente e para a saúde das pessoas evidenciam que esse modo de produzir pautado apenas na quantidade e não na qualidade está ultrapassado.

No ano passado, a Embrapa deixou disponível na internet um estudo realizado por seus pesquisadores entre os anos de 1992 e 2011. O objetivo do levantamento era traçar um panorama sobre a contaminação ambiental causada pelos agrotóxicos no Brasil. E o cenário é assustador: em todas as regiões do país são encontradas amostras de resíduos tóxicos em concentrações acima do recomendável, seja nas plantações, no solo, nas águas ou nos peixes. Isso porque não foram avaliados os impactos sobre a carne, ovos e leite, que indiretamente também trazem agrotóxicos para a mesa.

Agente Laranja, da Monsanto, sendo utilizado na guerra
do Vietnã.
Muito se fala sobre como o Brasil disputa a liderança no mercado mundial de soja. O que não se fala tanto é sobre como essa cultura lidera o uso de defensivos agrícolas no país. Um bastante aplicado para limpar terrenos antes do cultivo é o herbicida 2,4-D. Trata-se de um dos componentes do agente laranja, utilizado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. O herbicida é proibido em países como a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, em vários estados do Canadá e os Estados Unidos vêm discutindo o seu banimento também. Aqui é liberado. E ele é apenas um.

Em nosso país temos mais de 400 tipos de agrotóxicos registrados. Entre eles, pelo menos 14 venenos proibidos no resto do mundo acabam sendo desovados por aqui e têm permissão para o comércio. Na União Europeia e Estados Unidos, são considerados lixos tóxicos. No Brasil manuseamos, respiramos, bebemos e comemos. Alguns a gente até proíbe, mas a venda e o uso ilegal correm soltos pelo campo frente a uma fiscalização falha. E, das substâncias permitidas, em inúmeros casos são aplicadas quantidades acima dos limites aceitáveis. Até porque há um mito entre produtores rurais de que, quanto maiores as doses, mais tempo a lavoura fica livre de pragas. Mas parece que esse controle se tornou ele próprio a maior praga. Porque os impactos na saúde pública são evidentes.

A cada 90 minutos, um brasileiro é envenenado em decorrência do uso de agrotóxicos no país. E isso são apenas os casos notificados ao sistema de saúde. É uma epidemia de intoxicações agudas, com direito a dores de cabeça, vômitos, infecção urinária, alergias. O uso de agrotóxicos é uma prática tão deliberada, inconsequente e sem controle que chegamos ao absurdo de episódios como esse, onde um avião simplesmente despejou sua carga do inseticida engeo pleno em cima de uma escola, hospitalizando funcionários e dezenas de crianças. Aliás, a prática da pulverização aérea foi proibida pela União Europeia lá em 2009, dada sua baixa eficiência e riscos ambientais. Por aqui, apesar da pressão dos movimentos sociais, a discussão sobre proibição da pulverização aérea está nesse nível aqui.

Ainda sobre os impactos que o uso massivo de agrotóxicos têm sobre a saúde, eles vão além do mal estar. Especialistas apontam uma relação direta entre o acúmulo de agrotóxicos no organismo e o desenvolvimento de câncer de mama, fígado e testículos. Uma contradição quando se pensa que o consumo de frutas e legumes é exatamente uma das atividades saudáveis recomendadas para ajudar a prevenir o surgimento de tumores malignos. Há pouco tempo, uma pesquisa realizada no município de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, mostrou que havia resíduos de agrotóxicos no leite materno de todas as mulheres examinadas. Todas, 100%.  A mesma cidade é apontada como ícone do desenvolvimento trazido pelo agronegócio, como mostrou essa reportagem que foi à TV.

Agora, nem eu e nem você somos obrigados a ingerir produtos contaminados por agrotóxicos. A alternativa está bem ao nosso alcance: optar pelo consumo de alimentos provenientes da agricultura orgânica. Além de serem isentos de adubos químicos e venenos para pragas, eles também não contêm remédios veterinários, hormônios e organismos geneticamente modificados. Quando se trata de alimentos orgânicos processados, nada de corantes, aromatizantes e conservantes sintéticos. É um modo de produzir que respeita os ciclos da natureza e estabelece formatos de trabalho colaborativos, valorizando a qualidade de vida de quem produz, de quem vende e de todos que consumimos.

Muito se diz sobre os alimentos orgânicos serem mais caros do que os demais. É uma meia-verdade. Nos supermercados e mesmo nos sacolões, talvez possa ser. Até porque ainda não temos por aqui um varejista como o Whole Foods Market, que desde os anos 80 vende somente comida orgânica. A rede começou com apenas 19 pessoas trabalhando, e hoje já são mais de 50 mil colaboradores em suas lojas pelos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Com seu capital aberto, a empresa é uma prova de que a agricultura orgânica não é inimiga do business. Um exemplo de como é possível vender com escala e obter lucros sem ser nocivo ao meio ambiente e às pessoas.

Olhando para a nossa realidade, a maneira mais fácil de encontrar orgânicos a preços acessíveis é comprando direto do produtor. E com isso não estamos dizendo que é preciso fazer uma viagem à roça cada vez que a geladeira esvaziar. Hoje já são mais de 300 feiras orgânicas espalhadas pelo Brasil, onde é possível encontrar de tudo a preços justos e sem riscos à saúde. Fizemos até uma matéria mostrando algumas. Uma simples busca por “orgânicos” no Google ou Facebook também traz vários resultados de produtores vendendo os mais diversos insumos, alguns provavelmente localizados perto de você.

Outras iniciativas que devem ser apoiadas e multiplicadas são as dos hortões urbanos. Que, além de gerarem alimentos saudáveis, também contribuem para o cinza das cidades se tornar mais verde. Recentemente visitamos um incrível no meio de São Paulo. Aliás, também podemos cultivar alimentos em nossas próprias residências. Dentro de casa ninguém vai jogar agrotóxico, concorda? Hortaliças e temperos são alguns exemplos do que pode ser plantado facilmente em pequenos vasos para suprir a demanda doméstica. Quem sabe fazendo isso você não toma gosto pela coisa e chega ao nível dessa família norte-americana, que a 15 minutos do centro de Los Angeles produz toneladas de alimentos orgânicos no próprio quintal.

O cultivo de orgânicos dentro de cooperativas familiares poderia suprir a todos com alimentos de qualidade a preços justos. Seria uma questão de organizar a produção e o escoamento de forma mais descentralizada. Tanto que a própria ONU incentiva o desenvolvimento dessas práticas. Mas, no Brasil, de um lado estão os grandes interesses econômicos do agronegócio e, do outro, as questões ambientais e de saúde pública. Evidências científicas alarmantes nem sempre são decisivas frente à contribuição que certos grupos dão ao nosso PIB. Apesar de algumas iniciativas localizadas do poder público serem muito bem-vindas, esperar que o governo solucione todo esse embate pode ser esperar tempo demais.

Claro que para haver mudanças é importante atuar politicamente em relação ao tema, cobrando dos 3 poderes as medidas que queremos, fazendo petições, organizando protestos e não votando nos representantes que vão contra nossos valores. Entretanto, de forma bem pragmática, podemos no dia a dia tomar decisões que pressionem os grupos econômicos a mudarem de rota. Quanto mais gente consumindo orgânicos, mais mau negócio o uso de agrotóxicos se torna. Só que para isso é preciso uma postura mais pró-ativa e crítica na hora de ir às compras. Não basta chegar no local mais próximo e pegar o item mais barato possível, achando que com uma lavadinha vai ficar tudo bem. Temos que ser sinceros com nós mesmos para ter uma vida com mais qualidade.

Agrotóxicos não são uma necessidade inevitável. É possível levar comida para cada mesa brasileira sem agredir o meio ambiente e nem causar danos à saúde dos trabalhadores rurais e de nós mesmos. Ar puro, águas limpas, terras férteis e alimentos de qualidade. A gente tem direito a tudo isso.

E esse é um dos motivos pelos quais apostamos na ideia de que o futuro é mesmo um retorno ao campo. Não da forma como nossas gerações passadas fizeram. O futuro é poder unir tecnologia com natureza e usufruir dos dois com equilíbrio. Muita gente já decidiu largar a cidade em busca de mais qualidade de vida, mas se esse não for um sonho seu, não é preciso ser tão radical. Basta se reaproximar da natureza reativando hábitos sábios que nossos antepassados deixaram: plantar, para comer bem.

Uma varanda num apartamento já é espaço suficiente para produzir alguns alimentos básicos para uma família e evitar servir veneno como acompanhamento das refeições para as pessoas que ama. Vendo desse ponto de vista, qual o trabalho de regar alguns vazinhos todos os dias?


Texto postado originalmente em:



segunda-feira, 15 de junho de 2015

Redução da maioridade penal: menores serão enviados para prisões ‘medievais’


Adital

Condições medievais. Desta forma a Anistia Internacional define o estado das prisões brasileiras, aonde grande parte dos deputados brasileiros querem confinar adolescentes a partir dos 16 anos de idade. O Projeto de Lei para reduzir a maioridade penal no Brasil, de 18 para 16 anos, em tramitação no Congresso Nacional, já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, com 42 deputados a favor da medida e apenas 17 contrários.


Se aprovado no plenário, a Lei permitirá que menores sejam processados como se fossem adultos, o que, para a Anistia, socavará drasticamente os direitos humanos de crianças e adolescentes. Estes serão enviados para prisões conhecidas internacionalmente por sua periculosidade, onde podem sofrer violência e abusos atrozes, além de serem abusados sexualmente por presos adultos, afirma a organização internacional de direitos humanos.

"Se for aprovada, a nova legislação significará que menores serão julgados como adultos, enfrentarão as mesmas penas que os adultos e poderão ser enviados a uma prisão para adultos. Trata-se de outro ataque, outro ataque indignante contra os direitos dos menores no Brasil. Por desgraça, sabemos bem que os adolescentes têm mais probabilidades de serem vítimas do que autores de delitos”, lamenta a Anistia.

Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil, afirma que o índice de assassinatos de jovens negros no país é considerado uma vergonha nacional. No lugar de serem protegidas, as crianças são vilipendiadas e retratadas como delinquentes, o que acrescenta ainda mais vulnerabilidade a um dos sistemas penitenciários mais opressivos do mundo. Para Roque, encarcerar adultos e menores nos mesmos centros será catastrófico e suporá um risco para os menores em um sistema penitenciário lotado e sem recursos econômicos suficientes, onde são registrados elevados índices de abusos, condições desumanas e tortura.

Estatísticas internacionais apontam o sistema penitenciário do Brasil como um dos mais violentos do mundo. Conta com a quarta mais numerosa população reclusa do mundo, só superada pelas dos Estados Unidos, China e Rússia.

Violação das normas internacionais

Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil

Reduzir a maioridade penal também viola as obrigações internacionais contraídas pelo Brasil, entre as quais se encontram as contidas na Convenção da ONU [Organização das Nações Unidas] sobre os Direitos da Crianças, as Regras Mínimas da ONU para a Administração da Justiça de Menores, além de normas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Todas elas estabelecem que os menores devem receber um tratamento específico em um sistema de justiça de menores que leve em conta as necessidades específicas de acordo com a sua idade.

A Anistia Internacional pede aos parlamentares brasileiros que abandonem os planos de reduzir a idade de responsabilidade penal e, ao invés disso, incrementem seus esforços para oferecerem uma melhor proteção aos menores. A organização promovendo uma campanha por e-mail para pedir ao Congresso que aborte essa legislação. Também elogia a postura da presidenta da República, Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT), que tem se manifestado contra a mudança proposta.

"Esta é só mais uma da série de inquietantes tentativas do Congresso Nacional para desmontar o marco de direitos humanos existente no Brasil”, manifesta Atila Roque.

Números

Segundo o Departamento Nacional de Segurança Pública, os jovens de entre 16 e 18 anos cometem unicamente 0,9% dos delitos no país. No entanto, conforme os dados mais recentes sobre homicídios, dos 56.000 homicídios registrados, 30.000 destas vítimas eram jovens entre 15 e 29 anos, sendo 77% negros e negras.

As projeções do índice de homicídios entre adolescentes mostram que mais de 42.000 adolescentes entre 12 e 18 anos correm o perigo de serem assassinados nos próximos quatro anos.


FONTE: Adital

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Quais os limites de uso da tecnologia, dentro e fora das escolas?



Por Eduardo Guedes*


No intervalo da aula, o menino comemorava o seu recorde para a amiga: "Olha a foto que postei agora no Facebook, mais de 150 likes!". A menina desolada respondeu baixinho: "É... muito bom mesmo. Minha melhor foto não passou de 80 likes". Curioso como o indicador de felicidade ou sucesso se resumiu a uma simples curtida. Tempos modernos.

CyberBulling, selfiesa qualquer hora, viciados em games, escrever ou ler mensagem de texto enquanto dirige, pessoas que não desgrudam do celular nas refeições, exposição da vida privada nas redes sociais, usar o whatsApp durante as aulas, pedofilia virtual, proteção de dados na internet, entre outros.

Estudos internacionais já apontam os efeitos colaterais dessa realidade: maior nível de ansiedade entre as crianças, síndrome do pensamento acelerado e menor concentração dentro e fora da sala de aula, conflitos de relacionamento, maior individualismo e isolamento infantil, baixa performance escolar. Médicos e fisioterapeutas também destacam as consequências do sedentarismo infantil como maior incidência de hérnia de disco e L-E-R entre crianças, resultado de muitas horas de digitação e postura inadequada frente a computadores, tablets ou smartphones.

Ao longo da história, a sociedade sempre se organizou a partir do desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação (TICs). A adoção de novas tecnologias digitais e a massificação do acesso da população a internet, smartphones e redes sociais estão mudando o modo de vida das pessoas e criando uma nova dinâmica social.

Não podemos, nem devemos negar ou proibir a tecnologia. Ela faz parte da nossa realidade e surgiu como forma de otimizar o tempo e nutrir as relações humanas. Entretanto, por vezes, a mesma internet e celular que aproximam pessoas distantes, se mal utilizados também distanciam pessoas próximas.

O impacto de transformação social das redes sociais é comparado por estudiosos aos efeitos da revolução industrial. A possibilidade de comunicação instantânea, bem como o alcance e velocidade de mensagens, vídeos ou imagens transmitidos a partir de redes sociais cria uma arma poderosa com apenas um clique.

Para entender, é preciso relativizar e mergulhar no comportamento atual. Quase sem perceber, passamos da geração Coca-Cola para a nova geração MMM. Somos Multimídia, Multiconectados e Multitarefas. Multimídia porque acessamos diferentes tipos de dispositivos (tablets, smartphones, desktop, notebook). Multiconectados porque precisamos de acesso à internet em todo lugar e a qualquer hora. Multitarefa porque realizamos inúmeras atividades ao mesmo tempo, como por exemplo, trocar mensagens no celular enquanto assistimos TV. Estudos indicam que se colocarmos todas as atividades que realizamos em 1 dia de forma sequencial (uma depois da outra), teríamos mais de 48 horas de atividades realizadas no mesmo dia.

Afinal, como lidar com tudo isso? Qual limite do uso saudável para o uso abusivo das tecnologias? Como prevenir e como tratar?

Recentemente, uma amiga me telefonou preocupada com o comportamento do seu sobrinho. Ele não desgruda do celular e dedica muitas horas no dispositivo, mesmo durante a madrugada. David está com 14 anos e tem uma namorada que mora em outra cidade. Sua única opção de comunicação é usar o celular à noite. Seria David um viciado digital?

A dependência digital não está associada diretamente ao tempo dedicado aos seus dispositivos eletrônicos, mas sim à perda de controle na vida real, trazendo prejuízos nos campos pessoal, profissional, familiar, afetiva ou social. Ou seja, usar muito a internet, celular ou games não configura necessariamente dependência. Nem todo uso abusivo pode ser considerado uma dependência, mas toda dependência está associada a um uso abusivo (vide gráfico 1). A dependência ou perda de controle na vida real pode ser avaliada a partir de 5 pilares (vide gráfico 2): Excitação e Segurança, Relevância, Tolerância, Abstinência e Conflitos na Vida Real.

Outro exemplo bastante comum é o relato de pessoas tímidas que conseguem se expor com mais facilidade através das redes sociais. Até aí tudo bem. O problema começa quando o uso exagerado aumenta o isolamento na vida real, trazendo paradoxalmente maior prejuízo nos relacionamentos. O Facebook, WhatsApp e outras redes sociais ajudam a reencontrar velhos amigos e manter contato com pessoas distantes. Entretanto, quando mal utilizados, alteram a percepção de tempo e espaço, gerando ansiedade e depressão.

Curioso também é a necessidade de autopromoção no Facebook que já foi objeto de pesquisa em Harvard. Segundo o estudo, falar de si próprio gera um prazer equivalente a se alimentar, ganhar dinheiro, dormir ou fazer sexo. Numa conversa normal, as pessoas falam de si cerca de 30% do tempo, enquanto nas redes sociais este índice sobe para 90%, com possibilidade de um feedback imediato. Isso gera inconscientemente uma sensação de prazer instantâneo, mas que não é sustentável. Mais da metade dos usuários ativos de Facebook também se consideram mais infelizes do que os seus amigos virtuais, pois enxergam uma vida editada onde só existe casamento perfeito, viagens maravilhosas e o emprego dos sonhos.

Nas redes sociais, não importa quem você é, o que você faz ou o que você tem, mas principalmente o que você representa ao mundo a partir das suas postagens. Como o exemplo do marido que trai e reclama da mulher, mas posta ao mundo um casamento feliz. Ou a menina que reclama da viagem no meio do mato, mas prefere postar #contatocomnaturezamomuito. Perigoso. É quando se deixa de reconhecer o que genuinamente te faz bem com a preocupação essencial de agradar aos outros. Desejo inconsciente de pertencimento para saciar a própria insegurança ou alimentar o narcisismo.

Definitivamente, é preciso educar e usar a tecnologia a nosso favor. O problema não é a tecnologia em si, mas o uso que se faz dela. A direção das escolas, corpo docente-pedagógico e a família têm papel fundamental neste contexto. É preciso promover e ampliar o debate de forma profissional. Por vezes, alguns pais também me questionam se devem utilizar tablet ou celular como fonte de distração aos seus filhos. O problema não é o uso em si. Mas é preciso supervisionar e observar se o dispositivo está servindo como forma de transferência da responsabilidade da educação pelos próprios pais ou ainda substituindo a possibilidade de contato com outras crianças, fundamental para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras. Existem aspectos fundamentais na interação entre crianças que jamais serão substituídos por nenhuma máquina como a construção de valores de cooperação, solidariedade, e respeito mútuo.

Internet e celular não podem ser tratados como brinquedos. A Internet é como a estrada da sociedade digital e o celular é o veículo para trafegar nesta rua, sem fronteiras internacionais ou culturais. É fundamental orientar e supervisionar crianças e adolescentes para usar a internet ou celular de forma consciente e segura.


* Pesquisador do Instituto de Psiquiatria da UFRJ e fundador do Instituto Delete voltado para educação do uso consciente de tecnologias através de orientação profissional com conteúdos de capacitação e programas de conscientização junto a creches, escolas e faculdades.


FONTE: Adital

sábado, 6 de junho de 2015

Mapa da violência: juventude é vista como inimiga pelo Estado


Por Marcela Belchior


Pesquisa mostra que 42,4 mil pessoas morreram somente em 2012 vítimas de armas de fogo no Brasil, o que equivale a 116 mortos por dia ou quase cinco por hora. Deste total, 94,5% foram mortes por homicídio e atingem principalmente a juventude. Os dados fazem parte do estudo "Mapa da violência 2015 - Mortes matadas por armas de fogo”, divulgado no último dia 13 de maio pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Em entrevista à Adital, Edoarda S. Scherer, facilitadora nacional da Rede Ecumênica da Juventude (Reju), avalia que a postura do Estado no diálogo com a juventude brasileira ainda é ambígua. Segundo ela, se, por um lado, os jovens conseguem canalizar suas questões e demandas de maneira representativa pelos conselhos populares; por outro, localmente, a relação entre as instituições públicas e a população jovem é de enfrentamento.

"Nesse âmbito, o jovem é visto como inimigo, como potencial problema, que deve ser repreendido. O Estado se apresenta, então, como poder de polícia, repreendendo e coibindo”, aponta Edoarda. "A gente vê isso desde 2013, com as grandes manifestações de rua, mas também no cotidiano. E isso se agrava na periferia”, acrescenta.

A integrante da Reju destaca que o país vive um período de democracia recente, com momentos de tensão significativos. Mas aponta que o Estado sempre segmentou a juventude. "O jovem não é considerado relevante socialmente. Mesmo que isso tenha terminado, com a Constituição de 1988, a lógica ainda é essa”, aponta a Edoarda. Para ela, mesmo após 25 anos de vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, a lógica da antiga lei, o Código de Menores, continua sendo reproduzida, não só pelo Estado, mas pela sociedade. "Pensar crianças e adolescentes não como protagonistas, mas como algo que pode ser manipulado e moldado”, explica.

"Nossa pergunta é: a quem interessa empoderar os sujeitos? Hoje, ou se mata ou se prende, sem qualquer processo legal. E isso tudo é legitimado pela sociedade, com o discurso da grande mídia, que vela outros discursos e formas de mobilização”, analisa.

116 brasileiros foram mortos por dia por armas de fogo em 2012. Foto: Reproduçãonar legenda

Crescimento assustador das mortes violentas

O estudo foi elaborado desde 1998 pelo pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz, que, em 2013, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos da Secretaria-Geral da Presidência da República. A pesquisa é uma publicação da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), com apoio do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela) em parceria com a Secretaria Nacional de Juventude e com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que coordenam o Plano Juventude Viva.

O relatório chama a atenção para dados do Subsistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde: entre 1980, quando os registros passaram a ser sistematizados, e 2012, morreram mais de 880 mil pessoas vítimas de disparos de algum tipo de arma de fogo. Nesse período, as vítimas passaram de 8.710, no ano de 1980, para 42.416, em 2012, um crescimento de 387%. Paradoxalmente, nesse intervalo de tempo, a população do país cresceu em torno de 61%.

Entre os jovens de 15 a 29 anos de idade, o crescimento foi ainda maior: passou de 4.415 vítimas, em 1980, para 24.882, em 2012, ou seja, 463,6% de aumento nos 33 anos decorridos entre as datas. Este enorme crescimento das mortes por armas de fogo na população total foi alavancado, de forma quase exclusiva, pelos homicídios, que cresceram 556,6%, enquanto os suicídios com armas de fogo aumentaram 49,8% e as mortes acidentais caíram 26,4%.

As mortes por arma de fogo de causalidade indeterminada, isto é, sem especificação (suicídio, homicídio ou acidente) tiveram uma significativa queda em 31,7%, evidenciando a melhoria nos mecanismos de registro das informações. Entre os jovens, o panorama foi mais drástico ainda: o crescimento de 463,6% no número de vítimas de armas de fogo explica-se, de forma exclusiva, pelo aumento de 655,5% dos jovens assassinados, enquanto acidentes, suicídios e indeterminados caem ao longo do período.

Pode ser vista a enorme concentração de mortalidade nas idades jovens, com pico nos 19 anos de idade, quando os óbitos por armas de fogo atingem a impressionante marca de 62,9 mortes por 100 mil jovens. A proporção de vítimas do sexo masculino é extremamente elevada: 94% para a população total e 95% para a jovem.

Somente no ano de 2012, as armas de fogo vitimaram 10.632 brancos e 28.946 negros, o que representa 11,8 óbitos para cada 100 mil brancos e 28,5 para cada 100 mil negros. Dessa forma, a vitimização negra foi de 142%, nesse ano; morreram proporcionalmente e por armas de fogo 142% mais negros que brancos: duas vezes e meia mais.

Com relação aos níveis de vitimização por armas de fogo de negros, existem estados, como Alagoas e Paraíba, onde essa seletividade racial nos homicídios por armas de fogo supera a casa de 1.000%. Em outras palavras, para cada branco vítima de arma de fogo nesses estados, morrem proporcionalmente mais de 10 negros, vítimas de homicídio intencional.

O Estado do Paraná constitui a única exceção nacional a essa que parece ser uma regra quase universal no país: a taxa de óbitos negros é menor que a dos brancos. Isto é, morrem proporcionalmente 36,7% mais brancos que negros. "Não preocupa só a trágica seletividade de negros e de jovens nesses homicídios, incomoda muito mais verificar a tendência crescente dessa seletividade ao longo dos últimos anos”, comenta o pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz.

Violência associa-se a racismo e impunidade

"Em outras palavras, mais jovens morrem por armas de fogo, apesar da redução inicial provocada pela aprovação do Estatuto do Desarmamento. E a gravidade se torna ainda maior quando se sabe que, em sua maioria, são os jovens negros as vítimas dessa escalada. Racismo, violência e impunidade se associam na degradação do ambiente social brasileiro”, afirma Salete Valesan, diretora da Flacso - Brasil.

Segundo a pesquisa, a tradição da impunidade, a lentidão dos processos judiciais e o despreparo do aparato de investigação policial são fatores que se somam para sinalizar à sociedade que a violência é "tolerável em determinadas condições”, de acordo com quem a pratica, contra quem, de que forma e em que lugar. "Nesse ambiente cultural que valida práticas violentas, o imenso arsenal de armas de fogo existentes no país faz com que o Brasil tenha indicadores de mortes matadas equivalentes ou superiores aos de países que vivem situação de guerra ou conflito civil armado”, destaca Salete Valesan.

Pesquisa "Mapa da violência 2015" servirá
de parâmetro para políticas públicas.
Foto: Reprodução



Marcela Belchior é jornalista da Adital. Metre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, estuda as relações culturais na América Latina.


FONTE:  Adital

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Tempos idos e vividos II


Por Aluizio Moreira



Em 5 de outubro de 2012 postei Tempos idos e vividos, que pretendia ser uma página fixa neste blog, na qual pudesse registrar crônicas do cotidiano, poesias, narração de fatos políticos e sociais que vivenciei desde a década de 60 do século passado.

Fiz uma primeira, e até então única postagem sob este titulo, na qual inclui alguns comentários sobre os movimentos dos “indignados” que aconteceram  em vários países da Europa nos fins de 2011, com repercussões no mundo não-europeu;  algumas recordações sobre bandeiras de luta da juventude da qual eu fazia parte: do culto à liberdade, da instituição de uma sociedade justa e igualitária; uma referência à peça teatral Liberdade, Liberdade de Flávio Rangel e Millor Fernandes,  encerrando com um poema que enfatiza o caráter universal e humano de nossa luta: Canto Coletivo (acessar http://aluiziomoreira.blogspot.com.br/2012/10/tempos-idos-e-vividos.html)

Não cheguei a dar continuidade ao meu propósito, e Tempos Idos e vividos não se converteu em realidade. 

                                                                                  ***

Nestes últimos dias de maio, enquanto estava internado na UTI de um Hospital com sérios problemas cardíacos, senti a necessidade de retomar as antigas ideias, em outra forma quanto ao conteúdo, além das crônicas: poemas pessoais, dados de uma autobiografia, indicações de livros e outras publicações. . . juntar tudo isto, mais outros artigos postados neste blog e publicados em revistas e jornais, e seguir os conselhos do amigo Michel Zaidan Filho e muitas vezes cobrados pela companheira Zuleide Elisa, talvez reunindo todo o material  em um livro.

***

Minhas primeiras considerações não poderiam ser outras, senão agradecer aos meus familiares, em especial a Zuleide e meus filhos (Pedro Ivo, Mariana, Aluizio Filho e Raissa), aos meus irmãos (Sônia, Adilson, Suely e Avson), aos inúmeros votos de amigos, alunos, colegas de trabalho, anônimos que se expressaram pelo restabelecimento de minha saúde, tenham sido esses votos dirigidos a mim mesmo, seja endereçados a Zuleide Elisa. Obrigado a todos!

***

O Dr. Gustavo Santiago que me colocou o marcapasso (nome usual para o gerador de impulsos cardíacos), durante uma conversa comigo na UTI, revelou um dado impressionante. Disse-me ele que na maioria dos países desenvolvidos do mundo, do total das pessoas com os mesmos problemas cardíacos, 75%  sobrevivem porque têm disponibilizados os referidos geradores e 25% do pacientes falecem devido ao estado muito critico quando procuram os hospitais. No Brasil a estatística é inversa. Ou seja, apenas 25% sobrevivem por terem a garantia de receber um gerador de impulsos cardíacos. Virou-se para mim e concluiu: “você é um desses 25% dos sobreviventes”.

***

As pessoas não são piores nem melhores pelo que acreditam ou deixem de acreditar. É uma questão de caráter, de personalidade, de princípios morais. Mas também é verdade que uma parcela de tudo isso que faz parte da formação do individuo enquanto membro da sociedade, a começar pela família. Boa parte de nossa infância e juventude, somos os outros. O que permite João Álvaro Ruiz (Metodologia Científica) afirmar que cada geração recebe a sociedade já estruturada, com seus valores, suas crenças, seus preconceitos já estabelecidos. O que não quer dizer que devamos reproduzir seus valores, suas crenças, seus preconceitos como verdades absolutas. Há uma frase de Ortega y Gasset que considero que deveria ser assimilada principalmente pelos que se dedicam ao magistério: “se ensinares, ensina ao mesmo tempo a duvidar daquilo que estás a ensinar”.

***

Naquela manhã de quarta-feira, 1º de abril de 1964, dirigia-me à firma onde trabalhava como auxiliar de escritório, Agência Nacional de Navegação, localizada na Rua do Bom Jesus, no bairro do Recife.

Diferentemente do costumeiro trajeto, o ônibus estacionou na Praça 13 de Maio e o motorista avisou que era o fim da linha. Todos os ônibus que se destinavam ao bairro do Recife, fariam alí o seu ponto de  retorno.

Desci juntamente com vários passageiros e fomos em direção Ponte Princesa Isabel até chegarmos à Praça da República, fim da qual atravessaríamos a Ponte Buarque de Macedo, e finalmente ao bairro do Recife.

Ao nos aproximarmos do Teatro Santa Isabel, já na Praça da República, avistamos o Palácio do Governo, totalmente cercado por tanques e pelotões de soldados do Exército, mantendo um cordão de isolamento em boa parte da Praça. 

Chegando na empresa onde trabalhava, colegas comentavam os últimos acontecimentos, inclusive com a informação  que o Exercito tinha prendido o Governador Miguel  Arraes.

Pouco instantes depois, um carro de som convocava todos os trabalhadores para que se dirigissem ao Sindicato dos Comerciários na Rua da Imperatriz para discutir os acontecimentos e os caminhos que os trabalhadores deveriam tomar.

Decidi unilateralmente encerrar meu expediente e caminhei até o Sindicato dos Comerciários na Rua da Imperatriz. Depois de algumas informações, fomos em direção ao Sindicato dos Bancários, na época ocupando o espaço onde hoje, se não me falha a memoria, se localiza a C & A, na Av. Conde da Boa Vista. Lá se realizaria uma Assembleia para se discutir as possibilidades de resistência ao golpe. Era um prédio relativamente amplo, cuja única entrada tinha uma porta com grades, que se transformou em cárcere, aprisionando todos os que se encontravam em reunião no seu interior, afora os que eram identificados na rua como "subversivos", logo conduzidos para a prisão improvisada.

Vinha eu com um companheiro do Sindicato dos Comerciários, quando do prédio do Sindicato dos Bancários,  um policial de arma em punho atravessou a avenida vindo em nossa direção, aos gritos de “pare senão eu atiro!”. O colega se distanciou de mim apelando insistentemente para que eu não o seguisse. Parei. O policial o conduziu para o prédio-prisão. Perdi (?) um colega que sempre dava pitaco em minhas poesias. Nunca mais o vi. 

Tenho uma vaga lembrança que seu nome era Odir, nome que sem saber bem porquê, sempre vem à minha mente. Até hoje procuro informações sobre seu paradeiro, sem resultado.

Fiquei sentado ali mesmo no meio-fio da avenida, sem fazer nada, até que amadrugueceu e voltei pra casa.

***

Uma das minhas primeiras poesias que não escapou à sua crítica, foi Poema ao escravo moderno escrita em 1963, que reproduzo abaixo. 


  Meio sec’lo já passou-se!

Pelo infinito
os clamores mortais de gentes de raça
ecoam distantes num marco profundo
libertos agora da gávea sinistra

Meio sec’lo já passou-se!

Dos oceanos
calaram o passar dos barcos ligeiros,
os gritos de dores, o ranger das algemas,
os corpos inertes pelo tombadilho

Treze de maio!

À força de lei fecharam-se mares,
Fecharam-se portos, negreiros malditos,
E à maldita, manchada, infame bandeira,
Bandeira sem mancha balança ao vento.

E no entanto,

no campo escravo de raças diversas
que ares funestos de gentes com fome!
 que raça de brancos, marchar esquisito,
de trapos cobertos, de trêmulas mãos,
que tristes feições, de toscas maneiras,
- são toscas figuras, são trapos humanos:

não vieram por mares para o continente
nem são embarcados em sujas galés,
não trazem imagens de terras-natal,
nem grossas correntes lhes prendem os pés,
nem banzos, nem marcas lhes matam, lhes prendem
possuem mocambos em vez de senzalas.

Os Escravos modernos, são filhos da terra,
são brancos, são negros, são índios, mulatos,
apenas que viva uma vida com fome
apenas que tenha na face amarela,
na roupa, na fala, na enxada na mão
a sina horrível de ser camponês,
de filho talvez tornado assassino
de filha mais tarde talvez prostituta. . .
troféus que lhes premiam o vil latifúndio. . .

Que sina maldita os homens lhes dão!
Por acaso isto tudo não mata e mutila
tão como açoites nas costas desnudas?
- que escravos lhes tornam piores algemas?

À força do povo fecharam fazendas, fecharam as senzalas 
fecharam os campos – os feudos malditos
e à maldita, manchada, infame bandeira
bandeira mais nova da Paz e do Povo
tremula aos ventos
 tremula aos ventos.


Sua critica? Perguntou-me ironicamente se eu tinha psicografado Castro Alves.


***

Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...