sexta-feira, 28 de julho de 2017

Cortes na ciência geram êxodo de cérebros, congelam pesquisas e vão punir Brasil por décadas, diz presidente da academia






Julia Carneiro – Êxodo de pesquisadores se agrava com corte de investimentos devido à crise econômica do Brasil

Os pesados cortes de recursos para a área de ciência e tecnologia feitos pelo governo federal estão levando a produção científica brasileira a um “estado terminal”, interrompendo pesquisas, acelerando o êxodo de cérebros e gerando uma lacuna que “vai penalizar o Brasil por décadas”, afirma o presidente da Academia Brasileira da Ciências (ABC), Luiz Davidovich.

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o físico carioca alerta para as grandes perdas trazidas pelo corte dramático imposto pelo governo Temer ao orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia e Comunicações em março deste ano, levando a verba para ciência ao patamar de 12 anos atrás.

O corte de 44% no orçamento para 2017, de R$ 5,8 bilhões para R$ 3,2 bilhões, repercutiu internacionalmente, deixando cientistas brasileiros “horrorizados”, segundo artigo na prestigiosa revista científica Nature.

“Espanta-me que justamente em uma época de crise tão grave, não se dê atenção à porta de saída da crise, já descoberta por outros países há muito tempo. É pesquisa e desenvolvimento, é ciência e inovação tecnológica. Nós estamos indo na contramão dessa consciência internacional”, afirma Davidovich, citando países como China, Cingapura, Coreia do Sul e membros da União Europeia como exemplos.

Em entrevista à BBC Brasil, o físico disse que laboratórios estão sendo forçados a interromper pesquisas por falta de dinheiro, que a fuga de cérebros está se acelerando e que o cenário sombrio é um desestímulo para jovens que cogitam ou poderiam cogitar uma carreira científica.

Davidovich ressalta que a produção científica depende de continuidade e envolve uma corrida constante com outros países.

“Se você quer construir uma estrada e o país enfrenta uma crise financeira, você pode atrasar a obra. Ciência e tecnologia você não pode atrasar, porque perde a corrida. Você não tem como recuperar o atraso”, alerta.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil: O senhor tem sido muito enfático em relação aos danos causados pelos cortes no orçamento científico do país. Qual foi a dimensão desses cortes?

Luiz Davidovich – A crise está geral no Brasil, mas na parte de ciência e inovação tecnológica houve um corte muito grande em cima de orçamento que já era pequeno. Em 2013, tivemos um pico no orçamento, mas desde então começou a haver cortes sucessivos.

Em março, houve um corte de 44% em todos os ministérios, exceto nos da Educação e Saúde, que têm seus orçamentos protegidos pela Constituição.

Um governo que aplica um corte linear em todas as áreas mostra que não tem prioridade, não tem agenda nacional. Isso contrasta com a posição de outros governos, de países com grande ímpeto desenvolvimentista, como China, EUA, Israel, União Europeia, Coreia do Sul.

BBC Brasil – Qual é a posição adotada por esses países?

Davidovich – Em épocas de crise, eles aumentam o investimento em pesquisa e desenvolvimento. A União Europeia chegou a um acordo pelo qual pretende destinar 3% do PIB a pesquisa e desenvolvimento (P&D) até 2020. Nos EUA, até o ano passado, se aplicava em torno de 2,7% do PIB em P&D. A China está com crescimento desacelerado, mas ao mesmo tempo está investindo mais em pesquisa. Em plena crise, o primeiro-ministro (Li Keqiang) anuncia que vai aumentar o investimento em pesquisa básica em 26%.

O que isso significa? Esses países entendem que o investimento em pesquisa é a melhor maneira de sair da crise de forma sustentável. Contribui para aumentar o valor agregado de seus produtos e aumentar seu protagonismo.

Enquanto isso, o Brasil está fazendo o quê? Está retraindo os investimentos, cortando violentamente. A ponto que chegamos a um estado terminal. É S.O.S. para a ciência no Brasil. Chegamos a um ponto em que equipes estão sendo fechadas e encerrando os seus trabalhos.

Espanta-me que justamente em uma época de crise tão grave, não se dê atenção à porta de saída da crise, já descoberto por outros países há muito tempo. Nós estamos indo na contramão dessa consciência internacional.

BBC Brasil – Mas o Brasil está tentando sair da recessão mais grave em décadas. Dá mesmo para comparar a situação aqui com países como China, Coreia do Sul ou Israel?

Davidovich – Nos anos 1990, a Coreia do Sul era considerada mais atrasada que o Brasil. Mas o país investiu pesadamente em ensino básico, ensino técnico e pesquisa e desenvolvimento, apoiando grandes empresas, e passou à nossa frente. Eles têm cinco escolas nacionais para formar professores de ensino fundamental. A profissão de professor é valorizada, com salário compatível com o de outras profissões graduadas.

A Eslováquia, nos anos 1990, passou por problemas políticos e econômicos tremendos. Eles fizeram reformas econômicas importantes, mas ao mesmo tempo resolveram apostar na inovação. Hoje estão muito à nossa frente no Índice Global de Inovação.

O Brasil está em 69º lugar no índice, atrás do México, da Rússia, da Índia e da África do Sul. A Eslováquia está em 34º lugar. Decidiu investir no que se chama hoje de deep tech – as tecnologias profundas, que revolucionam nosso cotidiano – e se tornou um polo de inovação. Em muito pouco tempo, superou a crise de maneira inteligente, e hoje está aí, concorrendo no mercado global.

BBC Brasil – Mas vemos no Brasil uma crise generalizada, com falta de recursos para todas as áreas, seja ciência ou cultura. O senhor defende que a ciência e tecnologia mereçam tratamento diferente?

Davidovich – Essa questão de não ter dinheiro é discutível, porque se você olha para os acordos que estão sendo costurados no Congresso, para que os deputados votem a favor da reforma da Previdência, eles vão custar muito caro. O BNDES já está revendo a política de parar de conceder créditos subsidiados para empresas. Mesmo no auge dessa crise, os lucros dos bancos continuam aumentando.

Há recursos no sistema. A questão é como eles estão sendo usados. A questão é de escolha de prioridades.

Agora, por quê empregar recursos em ciência e tecnologia e não em outras áreas? Por que essa área merece uma atenção especial? Porque investir em ciência e tecnologia permite mudar o padrão de produtos de um país. Permite que países que sobrevivem da exportação de commodities, como o Brasil, passem a contar com uma pauta de exportação com produtos de alto valor agregado. É uma opção que permite gerar mais recursos para o país, para dar a volta por cima da crise.

BBC Brasil – Onde a situação é mais grave?

Davidovich – Nos Estados que enfrentam crises financeiras, como o Rio, porque neles as fundações estaduais de amparo a pesquisa também estão com problemas. Nesses Estados, a situação é de terror.

No Rio, por exemplo, você tem laboratórios que fazem trabalhos extremamente importantes e de repercussão internacional, como as pesquisas feitas na UFRJ sobre o vírus Zika e microcefalia. As contribuições foram publicadas nas melhores revistas internacionais e estão no caminho correto de encontrar meios de debelar essas doenças, mas os pesquisadores estão enfrentando problemas. Há pesquisas muito importantes sobre doença de Alzheimer que também estão com sérios problemas.

Esses grupos precisam de insumos biológicos para fazer seus experimentos, mas não há mais recursos para esses insumos. Com isso, os laboratórios estão parando. E param também as teses que estão sendo desenvolvidas, os trabalhos de mestrado e de doutorado que se destinam a formar os pesquisadores de amanhã, aqueles que, no futuro, vão combater as epidemias emergentes, como a zika, ou agora a febre amarela.

O risco que o país está correndo é de termos um gap na formação de cientistas e de não termos pesquisadores que possam atacar problemas que afetam a saúde da população nos próximos dez, 15 anos.

BBC Brasil – Já há um claro impacto da crise econômica e do corte de recursos sobre a fuga de cérebros, motivando pesquisadores a deixar o país e buscar refúgio em países e universidades onde consigam verba para desenvolver seus trabalhos?

Davidovich – Esse processo está muito acelerado. Há dois meses, quando jornalistas me perguntavam se estava havendo êxodo de cérebros, eu dizia: “Tem um ou outro caso, mas as pessoas ainda estão esperando para ver se melhora”. Há apenas dois meses.

Agora não. As pessoas estão claramente optando por sair do Brasil. Estou em contato com equipes do Rio que estão perdendo metade de seus pesquisadores. Colegas estão dizendo que vão sair porque não têm mais condições de continuar a pesquisa. Até aqui, usavam insumos que tinham comprado antes. Agora, acabaram os insumos.

Quem trabalha com física, por exemplo, que é a minha área, usa laser nos laboratórios. Laser tem uma vida média. Se ele queima, acabou o experimento. E aí acabam as teses realizadas nesses laboratórios. Isso já está acontecendo.

BBC Brasil – Que efeitos o senhor acha que isso trará para o país no futuro?

Davidovich – Talvez o problema mais sério, e que já estamos detectando, é como isso afeta os jovens. Quando alunos veem que seus professores, como os da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), duramente afetada pela crise estadual, estão sem receber salários e com dificuldade de pagar as contas mensais, eles começam a pensar: “Essa profissão é complicada. O pessoal não tem recursos. Não vou querer ser professor universitário ou pesquisador. Vou procurar outra coisa”. Passam a considerar que a área é pouco prestigiada e que o governo não se interessa por ciência.

Isso está dificultando a atração de jovens para a pesquisa. E o Brasil precisa muito desses jovens. Porque temos grandes desafios. Temos uma matriz energética que é uma das mais limpas do mundo, temos sol, temos água, temos biomas que têm produtos de biodiversidade a descobrir.

Conhecemos apenas 5% de nossa biodiversidade. Explorar isso significa poder fazer remédios e usar uma capacidade e uma vantagem competitiva do Brasil. Nós temos essa biodiversidade, os outros não têm. E precisamos usá-la de forma sustentável, sem destruir a floresta, de modo a fazer medicamentos e produtos de alto poder agregado. Para isso precisamos de mais pesquisadores.

BBC Brasil – O Brasil passou por um momento de euforia na última década que foi acompanhada por um aumento expressivo nos investimentos na área de pesquisa e ciência. Quando a situação começou a se deteriorar?

Davidovich – Os cortes começaram já no governo da Dilma (Rousseff). Nós protestamos contra, a ABC, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Quando o governo mudou (e o presidente Michel Temer assumiu), os cortes continuaram. Com o agravante de que houve a agregação do antigo Ministério de Comunicações ao Ministério de Ciência & Tecnologia. Na época, foi dito que isso traria mais recursos, pela importância política da pasta das Comunicações, mas o efeito foi o contrário.

Depois dos últimos cortes, o orçamento do novo MCTIC passou a ser de R$ 3,2 bilhões de reais. Muito bem. Destes, R$ 700 milhões são para a parte de Comunicações, e que deixa R$ 2,5 bilhões para ciência e tecnologia.

Em 2010, o orçamento do ministério, corrigido pela inflação, equivalia a cerca de R$ 10 bilhões. Ou seja, o orçamento de hoje é da ordem de ? do que tínhamos em 2010.

Isso mostra uma falta de rumo do governo, ou então um rumo que está na contramão do que está acontecendo internacionalmente. Isso vai penalizar o Brasil nas próximas décadas.

BBC Brasil – Qual é o efeito da ruptura gerada pelos cortes sobre a produção científica? A dinâmica de uma pesquisa permite que seja interrompida e retomada?

Davidovich – A produção científica depende de continuidade. No mundo de hoje, se você para, você perde a corrida, porque os outros não estão parando. Aliás, não basta nem correr, você precisa correr mais rápido que os outros.

Se você quer construir uma estrada e o país enfrenta uma crise financeira, você pode atrasar a obra. Ciência e tecnologia você não pode atrasar, porque perde a corrida. Você não tem como recuperar o atraso. Por isso que, em plena crise, esses países que mencionei aumentam investimento em pesquisa. A China está aumentando. E com isso está ganhando protagonismo internacional, o que nós estamos perdendo. O quadro é dramático.

Se você interrompe uma pesquisa de biologia, você perde a prioridade. Outros países vão obter a patente. E depois nós vamos pagar pelas patentes que eles estão obtendo.

BBC Brasil – Mas o Brasil nunca conseguiu ser uma potência na área científica. O país tem condições de disputar dessa corrida mundial? Nos momentos de maior euforia, quais foram os principais avanços nessa disputa?

Davidovich – Já tivemos momentos melhores. Os primeiros dez anos do século 21 foram auspiciosos, com mais verba para pesquisa. Mas sempre enfrentamentos altos e baixos. Sempre enfrentamos descontinuidade no apoio à pesquisa. E mesmo com esse apoio bastante incerto, flutuante, sujeito a interrupções, a ciência brasileira conseguiu coisas fantásticas no cenário mundial.

A Petrobras ganhou prêmios internacionais na exploração de petróleo em águas profundas, isso através de uma cooperação muito forte com várias universidades brasileiras, envolvendo um grande leque de profissionais. A Embraer ocupa um nicho importante no mercado internacional de aviões. Uma empresa nascida em Santa Catarina, em cooperação com o departamento de engenharia mecânica da UFSC, transformou-se na maior empresa de compressores do mundo. São muitos exemplos de sucesso de empresas brasileiras com base científica.

Apesar de todas essas interrupções e dificuldades, isso demonstra a capacidade de invenção e a criatividade da ciência brasileira. Imagine o que não poderíamos fazer se houvesse uma política de estado de apoio à pesquisa e desenvolvimento, um fluxo contínuo que não sofresse altos e baixos dependendo de quem está no poder. Nós poderíamos ter ido muito mais longe.

BBC Brasil – E essa falta de continuidade gera prejuízos para a economia do país no futuro, a seu ver?

Davidovich – É importante o país ter uma dianteira em pesquisas para fazer economia no futuro. Faremos economia por não ter que pagar pelas patentes e ganharemos mais recursos porque teremos qualificado a nossa pauta de exportações.

É questão até de soberania nacional e econômica. Quando você aumenta o valor agregado dos produtos exportados, você passa a ter mais controle sobre a sua própria economia.

Se você considera, por exemplo, a agricultura, que é uma fonte de riqueza tão grande para o país. Parte disso é graças à ciência brasileira, que descobriu um processo para aumentar a produtividade da soja em quatro vezes. Na mesma superfície de terra, você colhe quatro vezes mais grãos. Algumas décadas atrás, soja não florescia no Mato Grosso. Com a ciência brasileira, passou a ser uma das grandes riquezas do Estado.

Mas hoje, centros de pesquisa de prestígio nessa área, como a Universidade de Viçosa e a Embrapa, estão com dificuldades. Há duas décadas, a Embrapa contava com equipamentos para pesquisa que eram o estado da arte. Hoje estão defasados, e a própria agricultura está ameaçada pela falta de renovação de equipamentos e de investimentos em pesquisa.

Na África os avanços brasileiros na produção de soja já são conhecidos, e a China está comprando muita terra no continente. E se passarem importar soja de lá, que é muito mais perto?

Se não houver inovação constante até na área de commodities, estamos jogando um jogo muito arriscado. Se você para de atualizar a produção com ciência e tecnologia, ela fica obsoleta. Porque é uma corrida, e temos que nos atualizar sempre.

BBC Brasil – Como o senhor vê o impacto da aprovação da emenda constitucional que estabelece um teto de gastos públicos para o governo federal ao longo dos próximos 20 anos? Que impacto terá para a ciência?

Davidovich – É um grande equívoco, um trágico equívoco, considerar que recursos para ciência são gastos. Eles são investimentos. É muito importante fazer essa diferenciação. Se você considera que são gastos, corre o risco de o país ficar paralisado. Você estabelece o teto de gastos, mas não consegue mais aumentar o PIB, porque ele dependeria de investimentos que você não poderá fazer.

É muito preocupante que a ciência esteja dentro do teto de gastos. Pior ainda, o orçamento enviado pela equipe econômica para o Congresso para 2018 agrava ainda mais a situação do ano que vem, com ainda menos recursos para ciência e tecnologia.

Isso reflete a ignorância de quem está conduzindo a política econômica em relação ao papel da ciência e tecnologia para o desenvolvimento do país. Essa é a saída, essa é a luz no final do túnel.

BBC Brasil – O senhor vê alguma perspectiva de melhora no momento atual?

Davidovich – Está difícil ver a luz no fim do túnel. É claro que a gente considera que a saída para o Brasil está na ciência, na inovação tecnológica e na educação de qualidade para todos. Esse foi o segredo da Coreia, de Israel, de Cingapura.

Não existe um milagre coreano. Existe uma política que eles implementaram dando uma importância muito grande para educação básica, formando técnicos e promovendo inovação tecnológica. É isso. Não tem mistério.



https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/bbc/2017/07/11/presidente-da-academia-de-ciencias-diz-que-cortes-geram-exodo-de-cerebros-congelam-pesquisas-e-penalizarao-brasil-por-decadas.htm


FONTE:  Controversia

sexta-feira, 21 de julho de 2017

É preciso um programa mínimo para mudar o país e a vida das pessoas

O Cais Estelita, foco e centro de uma mobilização histórica no Recife,
para que o que é do povo sirva a ele e não aos ricos.
Foto de Gilmar Moreira/2014

O Brasil está metido numa das maiores enrascadas de sua história. O golpe que levou os ricos ao governo está destruindo o Brasil em ritmo vertiginoso.

O desemprego massacra quase 15 milhões de pessoas, a fome voltou a rondar o dia a dia dos mais pobres e estima-se que 20 milhões de pessoas terão renda inferior a 5 reais/dia até o final de 2017, o fim da CLT ameaça o retorno a termos contratuais para o trabalho similares aos do período da escravidão, os gastos com saúde e educação para os mais pobres estão em queda livre, e ronda a ameaça do fim da aposentadoria para os mais frágeis.

É uma verdadeira hecatombe econômica e social detonada por uma elite sem projeto para o país e que vive às custas dos juros que o Estado lhes paga –a única despesa governamental que não foi cortada depois do golpe.

Como superar a crise de maneira positiva para o povo, num cenário de derrotas sucessivas de seus representantes, dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais? Como retomar o diálogo entre a esquerda/segmentos progressistas e a grande e sofrida massa da população, que vive um momento de apatia, encolhimento e entorpecimento pelo massacre midiático promovido pelos meios de comunicação de propriedade e a serviço dos ricos?

Como mudar a maré em favor dos mais pobres?

É preciso um programa que dialogue com as pessoas, que faça sentido para suas vidas cotidianas, que de fato abra perspectivas de um futuro melhor.

É hora de apresentar uma agenda compacta, factível, inteligível, que deve ser apresentada ao povo brasileiro de maneira massiva, insistente, que se torne conversa nas famílias, nas escolas, nos bares, nas ruas.

Uma plataforma para mobilizar, para vencer eleições, para unificar a reivindicação dos movimentos sociais. Um projeto para o país.

Poucas medidas. Linguagem simples. Que fale ao coração das pessoas e desperte um sentimento, uma expressão de “ah, mas é isso mesmo!”.

Aqui está uma sugestão para esta plataforma. Cinco pontos apenas. Não pode ter mais. Tem que ser simples, capaz de ser recitado de cabeça e coração.

Este programa não elide a possibilidade de outros projetos, para outras áreas, sobre temas diversos. Mas eles devem ser subordinados aos cinco que são a oferta da esquerda e dos progressistas para o país.

Que pontos podem compor este programa? Segue um rascunho, que deve ser conversado, dialogado, pensado. Só tem uma regra: pode ficar menor e mais enxuto, nunca maior.

O que fazer para que o Brasil seja apropriado por seu povo?

Plebiscito para todas as medidas aprovadas pelo Congresso durante o governo Temer –o povo deve decidir sobre seu futuro. A Constituição de 1988 é a referência institucional do país.

Retomada do crescimento e combate ao desemprego com programa de renda cidadã para toda a população, investimentos públicos prioritários em educação pública e no SUS.

Limites para o pagamento de juros aos ricos e redução da taxa de juros para favorecer investimentos produtivos.

Reforma agrária e urbana, para garantir terra, moradia e transporte barato.

Combate incansável à corrupção e a todo o desvio de dinheiro que é do povo e deve ser destinado a ele.

A situação é dramática. Mas não é uma condenação eterna, não é uma sentença de morte, não é o fim do caminho.

É possível abrir um novo caminho, regar a esperança, fazer a hora.

[Texto coletivo rascunhado por Mauro Lopes, depois de uma conversa/aprendizado com Antônio Martins, Artur Araújo, Gilberto Maringoni e Igor Fuser]

Esse post foi publicado em Sociedade e marcado Capitalismo, Cena brasileira, Democracia, Governo Temer, Programa mínimo por Mauro Lopes. Guardar link permanente.




domingo, 16 de julho de 2017

Nota Pública: De volta ao integracionismo?


Inserido por: Administrador em 13/07/2017.
Fonte da notícia: Organizações Indígenas e Indigenistas Compartilhar


Foto: Tiago Miotto/Cimi

                                                     
Nos últimos anos a sociedade tem assistido a uma acelerada escalada de violência contra os povos indígenas no Brasil, diretamente relacionada a uma série de iniciativas no âmbito dos poderes legislativo, executivo e judiciário que visam à desconstrução dos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988. Trata-se, sem dúvida, do contexto mais adverso enfrentado por estes povos desde o processo de redemocratização do país e a consagração do direito originário dos povos indígenas sobre seus territórios, bem como à sua organização social, costumes, línguas e tradições – gravemente ameaçados nos dias de hoje. 

Se a incompatibilidade entre a Constituição Federal de 1988 e medidas como a PEC 215 e a Portaria 303 da Advocacia Geral da União (para citar duas dentre as dezenas de iniciativas anti-indígenas que têm se proliferado em anos recentes) já era flagrante, dois atos do Poder Executivo relacionados aos povos indígenas e quilombolas nos últimos dias parecem ter sido extraídos diretamente do Diário Oficial da União de décadas atrás, próprios do regime de exceção da ditadura militar no Brasil. 

A criação, em 6 de julho último, de um Grupo de Trabalho “com a finalidade de formular propostas, medidas e estratégias que visem à integração social das comunidades indígenas e quilombolas” guarda notável semelhança com os ideais integracionistas da doutrina de segurança nacional. A simples criação do GT nestes termos já seria assustadora, por remeter à perigosa associação com paradigmas aculturativos, há muito tempo abandonados pela antropologia e pelo indigenismo oficial, e em total desacordo com os princípios instituídos pela Constituição de 1988. .Em função de fortes críticas dos movimentos indígenas e indigenistas e de imediata manifestação do Ministério Público Federal, a referida portaria foi reeditada em 13/07/17 simplesmente substituindo o termo “integração social” por “organização social”. Ou seja, a emenda ficou ainda pior que o soneto, pois formular propostas para a organização social de povos indígenas e quilombolas continua mantendo uma clara perspectiva intervencionista e etnocêntrica do Estado sobre essas populações, que não consegue esconder as reais intenções e objetivos do GT. E todas as objeções colocadas pelo documento do MPF continuam sem resposta na “nova” portaria.

Reforça ainda mais essa iniciativa totalmente inconveniente e inconsequente o fato do GT ser composto quase exclusivamente por membros de órgãos de segurança e desprovido da presença de qualquer instituição que atua com as comunidades quilombolas, embora estas sejam também objeto do Grupo de Trabalho. O prazo exíguo para a elaboração e apresentação do plano de trabalho (15 dias) e do relatório do GT (30 dias após aprovação do plano de trabalho) também demonstra claramente que não se prevê nenhum tipo de consulta aos povos e comunidades afetados pelas “propostas, medidas e estratégias” advindas do GT, em flagrante desrespeito à Convenção 169 da OIT.

O segundo ato, publicado seis dias após a criação deste GT, foi a efetivação do general Franklinberg Ribeiro de Freitas na presidência da Fundação Nacional do Índio, cargo que vinha ocupando interinamente desde 9 de maio de 2017, apesar de inúmeros protestos por parte dos povos e organizações indígenas. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Em entrevista coletiva por ocasião de sua exoneração, o antecessor do general, Antônio Fernandes Toninho Costa, afirmou que o órgão vive “uma ditadura que não permite o presidente da Funai executar as políticas constitucionais”. Paradoxalmente, o pastor evangélico Toninho Costa havia sido indicado pelo mesmo Partido Social Cristão (PSC) do general Franklinberg. As graves denúncias feitas por ele escancaram a utilização da Funai como moeda de troca pelo governo Temer e a subordinação da política indigenista aos interesses da bancada ruralista no Congresso Nacional. O Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), criado em 2015 e instalado em abril de 2016, fez apenas duas reuniões e não houve mais nenhuma iniciativa do MJ em convocar novas reuniões do Conselho, num flagrante desrespeito às organizações indígenas. Também é digno de nota o fato do governo federal não ter feito nenhum movimento até o momento para implementar as resoluções aprovadas durante a Conferência Nacional de Política Indigenista, por ele mesmo convocada em 2015. 

O discurso da integração e da assimilação da ditadura militar serviu para legitimar, nos campos jurídico e teórico, a usurpação das terras indígenas sob o pretexto da perda da identidade desses povos. Vale ainda lembrar que foi justamente esse discurso integracionista que justificou a ideia de “emancipação”, defendida pelos militares no final dos anos 1970, o que motivou forte resistência dos povos indígenas e da sociedade civil. Preocupadas com o processo de militarização e enfraquecimento da Funai, e com os contínuos ataques aos direitos indígenas, as organizações abaixo assinadas repudiam publicamente a criação do referido GT e exigem sua imediata revogação.


Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME)
Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE)
Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL)
Conselho Terena
Comissão Guarani Yvyrupá 
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira  (COIAB)
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais - CONAQ
Grande Assembleia do Povo Guarani (ATY GUASSU)
União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (UMIAB)


Associação Brasileira de Antropologia - ABA
Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIC)
Associação Terra Indígena Xingu (ATIX)
Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins (Wyty-Catë)    
Conselho Indígena de Roraima (CIR)    
Conselho das Aldeias Wajãpi (Apina)
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn)
Hutukara Associação Yanomami (HAY)
Organização dos Professores Indígenas do Acre (Opiac)
Organização Geral Mayuruna (OGM)
Operação Amazônia Nativa (OPAN)

Associação Nacional de Ação Indigenista – ANAÍ
Centro de Trabalho Indigenista – CTI 
Comissão Pró-Índio de São Paulo – CPI-SP 
Comissão Pró-Índio do Acre - CPI/AC
Conselho Indigenista Missionário – CIMI 
Coletivo de Profissionais de Antropologia- aPROA
Instituto Catitu
Instituto Socioambiental – ISA 
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – IEPÉ
Instituto Internacional de Educação do Brasil – IEB
RCA – Rede de Cooperação Amazônica
Relatoria da Plataforma DHESCA


sábado, 8 de julho de 2017

Inclusão social ou libertação: o desafio histórico do Movimento Negro e Quilombola



Por José Levino, historiador


Foram três séculos de escravidão dos negros, trazidos à força da África. Muitos não aceitaram passivamente a escravidão. Além de ações individuais e de algumas revoltas urbanas, a grande reação dos negros foi a busca coletiva de libertação, fugindo das fazendas para embrenhar-se nas matas e formar suas comunidades independentes e autônomas, os quilombos.

O caminho da libertação

Centenas de quilombos se formaram no país inteiro e foram caçados e destruídos pelas tropas do governo e por milícias particulares dos fazendeiros, especialmente pelos bandeirantes paulistas. Entre os quilombos, o maior deles e que se tornou símbolo da luta de libertação dos escravos, foi o de Palmares (Alagoas/Pernambuco), que resistiu por mais de cem anos (1580-1695).

Em Palmares (leia A Verdade, nº 1), os negros, liderados por Ganga Zumba, sucedido pelo herói Zumbi, construíram uma comunidade com sistema econômico coletivo, com autonomia, independência política e liberdade, onde o povo podia viver sua cultura original (religião, danças, costumes, tratamento de saúde, etc.). A autoridade maior tinha a denominação de rei, mas, de fato, funcionava um regime de democracia participativa, pois nenhuma decisão, salvo as de caráter militar que exigiam segredo ou urgência, era tomada sem consulta ao conselho de representantes das várias comunidades que compunham a sociedade palmarina.

Para se defender, os palmarinos criaram um exército popular que resistiu a cerca de 40 ataques durante toda sua existência, sendo derrotados em 1695 por um exército colonial formado por mais de 10 mil soldados comandados por Domingos Jorge Velho, o famoso bandeirante paulista conhecido como bandido por caçar índios para escravizá-los, além de matar idosos, mulheres e crianças e incendiar as aldeias indígenas.

Zumbi foi assassinado no dia 20 de novembro de 1695. Por isso, essa data é o Dia da Consciência Negra. Sua cabeça ficou exposta durante anos na Praça do Carmo, no Recife.

A via insurrecional

No século 18, pequenos quilombos surgiram, mas nenhum que se aproximasse à dimensão de Palmares. No século 19, ocorreram várias lutas insurrecionais, das quais a mais importante foi a Revolta dos Malês (leia A Verdade, nº 100), que levantou os escravos de Salvador e do Recôncavo Baiano.

As insurreições acabaram derrotadas. Em Salvador, os quatro principais líderes da Revolta Malê foram condenados à morte e fuzilados no dia 14 de maio de 1835. A repressão aumentou. Os negros foram impedidos de circular à noite e de praticar sua cultura original. Foi proibida também a venda de escravos da Bahia para outras regiões do país, numa tentativa de conter a difusão da ideia de libertação.

A via da inclusão social

Contidos o crescimento, a articulação dos quilombos e as insurreições, tomou corpo a via reformista estimulada pela Inglaterra, cuja estratégia era conquistar a abolição e a inclusão dos negros no mercado capitalista, na condição de força de trabalho liberada. Em expansão, a burguesia inglesa precisava ampliar seus mercados e a permanência do trabalho escravo representava um empecilho ao avanço do capital.

Setores da burguesia industrial nascente e de “classe média” abraçaram a bandeira abolicionista. Os principais líderes foram: Luiz Gama (1830-1882), filho de mãe negra e pai branco, escravo dos 10 aos 17 anos, beneficiário da Lei do Ventre Livre (1871), tornou-se jornalista, advogado e escritor; José do Patrocínio (1853-1905), filho de um padre e de uma escrava, foi criado como liberto e se formou em Farmácia, tornando-se também jornalista e escritor; André Rebouças (1838-1898), engenheiro famoso cujo pai era filho de uma escrava alforriada com um alfaiate português; e Joaquim Nabuco (1849-1910), pernambucano, de família rica e branca, um dos mais importantes diplomatas do Império.

A ação abolicionista se dá em três níveis:

1) Mudanças legislativas, entre as quais se destacam: a) Lei Eusébio Queiroz (1850) que proibia o tráfico de escravos; b) a Lei das Terras (1850), que tornou palatável para os proprietários rurais o fim da escravidão, legislando que a propriedade da terra teria de ser adquirida por meio da compra, e para a burguesia industrial, pois permitiria a emigração do campo para os centros urbanos, criando uma grande reserva de mão de obra; c) a Lei do Ventre Livre (1871), estabelecendo que seriam libertos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data; e d) a Lei dos Sexagenários (1885), libertando os escravos a partir dos 60 (sessenta) anos de idade.

2) Compra de cartas de alforria, criando associações que faziam campanhas financeiras a fim de comprar cartas de alforria aos senhores, permitida a partir do século 18.

3) Fomento a “quilombos” de inclusão. Os abolicionistas articulavam um local determinado e uma rede de apoios de comerciantes e industriais e até compravam terras, estimulando a fuga de escravos das fazendas para esses lugares. Houve poucas experiências nesse sentido, mas uma delas ficou bem conhecida. Foi a do “quilombo” de Jabaquara, em Santos, São Paulo (1839-1898). Os abolicionistas colocaram para liderar cerca de três mil escravos Quintino de Lacerda, um liberto que continuava morando na casa do seu senhor. Foi eleito vereador, mas a Câmara, racista, negou a sua posse, que só aconteceu por ordem judicial.

A abolição, em 1888 (Lei nº 3.353, de 13/05/1888), não promoveu sequer a inclusão social, pois, como não houve reforma agrária, os ex-escravos foram expulsos das fazendas e se deslocaram para a periferia das cidades, onde tiveram de sobreviver de biscates, trabalhar em serviços auxiliares nas fábricas (limpeza) e morar nos mocambos e favelas. A mão de obra para a indústria foi trazida da Europa, bem como para a lavoura cafeeira do Sudeste.

A luta do Movimento Negro

Movimentos Negros surgem na década de 1970, sob a ditadura militar, buscando o resgate da cultura original afro e relacionando-a com as reivindicações da periferia. Em 1978, o Movimento Negro Unificado (MNU) lança manifesto no qual pronuncia “como princípio básico o trabalho de denúncia permanente de todos os atos de discriminação racial, a organização constante da comunidade para enfrentar qualquer tipo de racismo (…). Por essa razão, propomos a criação de centros de luta do movimento negro unificado contra a discriminação racial nos bairros, nas cidades, nas prisões, nos terreiros de candomblé, em nossos terreiros de umbanda, no trabalho, nas escolas de samba, nas igrejas, em todos os lugares onde as pessoas vivem: Centros de Luta que promovam o debate, a informação, a conscientização e a organização da comunidade negra (…). Convidamos os setores democráticos da sociedade que nos apoiam a criarem as condições necessárias para uma verdadeira democracia racial”.

O MNU e outros movimentos e organizações negras promoveram ampla mobilização em favor da inclusão de suas propostas antirraciais na Constituinte pós-ditadura militar, realizando uma convenção nacional em 1986, cuja resolução propõe normas a serem inseridas na nova Constituição tratando de “direitos e garantias individuais, violência policial, condições de vida e saúde, direitos da mulher e do menor, educação, cultura, trabalho, questão da terra e relações internacionais”. A articulação conseguiu, junto com outros movimentos sociais, a formação de uma Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.

Demarcação Já!

As principais conquistas inseridas na Constituição foram a definição de igualdade, a proibição de qualquer discriminação racial e o direito ao território. O conceito de remanescentes de quilombos foi introduzido na Constituição de 1988 (hoje, o Movimento Quilombola não aceita esta denominação, preferindo descendentes dos quilombos). A Constituição Federal determina o direito ao território por parte daquelas comunidades que se autorreconheçam como quilombolas e comprovem as Comunidades Quilombolas (Conaq). O Decreto 4.887/2003 regulamentou os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. Esse processo está mais atrasado que o dos indígenas e sofrerá igualmente as consequências da PEC 215, se aprovada. Atualmente, apenas 253 comunidades quilombolas contam com o título de propriedade de seu território, número que representa apenas 8% da totalidade estimada de três mil comunidades no Brasil.

O Movimento Quilombola luta pelo território e o Movimento Negro, em geral, por políticas de inclusão social, a exemplo das quotas para negros nas universidades e a implementação do Estatuto da Igualdade Racial.

Reflexão sobre inclusão social e libertação

Inclusão é uma compensação; dificulta a organização do povo, pois é processada individualmente; trata-se de estratégia das classes dominantes para servir ao capitalismo. A superação do racismo, da discriminação racial, assim como a de gênero, não se dará dentro do capitalismo. É claro que não bastam a supressão da propriedade privada e o estabelecimento de novas relações sociais de produção para automaticamente se pôr fim ao racismo. Foram três séculos de escravidão, tratando os negros, no Brasil, como seres inferiores. Portanto, a superação dessa ideia passa por um profundo desenvolvimento de uma nova consciência de que os oprimidos constituem uma classe que não é uniforme. Entretanto, a vitória e a implantação de uma sociedade sem classes, com a mais profunda unidade, somente será possível com o respeito à diversidade de pontos de vista e comportamentos que não colidam com o objetivo comum. A união entre a classe trabalhadora – unir quilombolas com índios, camponeses e operários – é estratégica, fundamental para a criação do poder popular.

O grande desafio para os movimentos sociais e organizações de esquerda que propõem mudanças estruturais visando a uma sociedade socialista é não recusar as medidas inclusivas – como quotas e distribuição de cestas básicas para comunidades quilombolas, pois o povo tem necessidade dessas medidas –, mas transformar tais benefícios em meios de fortalecer a consciência e a organização quilombola e a articulação com os demais setores sofridos do proletariado brasileiro, em vista da criação de uma Frente Popular e a conquista de um governo de baixo para cima, de forma independente e autônoma. Para esse fim, as eleições e a ocupação de espaços institucionais jamais poderão ser consideradas como um fim em si, mas como meio para o alcance do objetivo maior, que não é de inclusão social, mas de libertação.




FONTE: A Verdade

terça-feira, 4 de julho de 2017

Boaventura debate Revolução, Democracia e o Brasil



Por Taís Seibt


 
Sociólogo expõe suas reflexões perturbadoras sobre o futuro da esquerda,
um século após 1917. E diz, sobre o Brasil: não é possível construir
estratégias em torno de um líder único


Por Boaventura de Sousa Santos, em duas entrevistas: a Taís Seibt (em texto) e Antonio Martins (em vídeo)


Em sua mais recente passagem pelo Brasil, Boaventura de Sousa Santos, um dos mais reconhecidos intelectuais da democracia e da globalização, deixou um recado direto para as esquerdas brasileiras: se quiserem suplantar a onda conservadora que se alastra pelo país, inclusive entre as classes populares, terão de se unir. E disse mais: personificar a união da esquerda na figura do ex-presidente Lula é um erro.

A mensagem veio de Porto Alegre, objeto de atenção do sociólogo português desde 1989, quando o município implantou o orçamento participativo, colocando em prática o que estava apenas na mente de teóricos da democracia, como ele próprio. Foi também na capital gaúcha que ele ajudou a fundar o Fórum Social Mundial, reunião de movimentos sociais que teve grande repercussão no início dos anos 2000 e ajudou a elevar líderes populares ao poder em diversos países, inclusive no Brasil.

Mas a Porto Alegre e o Brasil de agora em muito se distanciam daquele “outro mundo possível” que Boaventura sonhara uns anos atrás. Com movimentos sociais bem menos articulados e uma esquerda “adormecida”, como ele diz, o país vive uma transição – e ainda não se sabe para qual direção. “Para a ditadura? Uma ditadura diferente, que não envolve militares?”, chegou a questionar o pesquisador em conferência na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, na qual conclamou a “democratizar a revolução e revolucionar a democracia”. Foi aplaudido longamente pelo auditório lotado de estudantes, membros de movimentos sociais e velhos conhecidos seus na política gaúcha, como Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul pelo PT.

No dia seguinte à palestra, o diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra recebeu a reportagem no hall do hotel que costuma hospedar toda sorte de celebridades que desembarca em Porto Alegre. O intelectual tampouco passou despercebido. Sua presença levou uma estudante às lágrimas. Saiu confortada pelo abraço do professor e com um livro autografado, antes que Boaventura discorresse sobre a situação política brasileira, os riscos da apatia popular para o futuro da democracia e a experiência portuguesa na rearticulação das esquerdas. Confira a seguir os principais trechos da entrevista (Taís Seibt)

Na introdução de seu livro mais recente, A difícil democracia (Boitempo, 2016), o senhor fala que a América Latina teve a chance de reposicionar o debate do pluralismo e da diversidade nos primeiros anos do século XXI, quando governos de esquerda chegaram ao poder. Diante dos acontecimentos recentes no Brasil, o senhor diria que se perdeu essa oportunidade?


Boaventura de Sousa Santos – Foi uma oportunidade histórica perdida. As razões são complexas. Hoje, no mundo muito interdependente e com uma forte globalização neoliberal, tudo tem de ser visto no contexto internacional. A possibilidade de criar democracias de maior intensidade na América Latina ocorreu na primeira década do século XXI. Era uma altura em que os Estados Unidos estavam muito concentrados no Oriente Médio e não prestavam muita atenção no que se passava na América Latina. Ao mesmo tempo em que o “Big Brother” estava distraído, a grande mobilização social que tinha sido gerada com a transição da ditadura para a democracia em diversos países, no caso brasileiro com grande força do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), mais o Fórum Social Mundial, que teve lugar em Porto Alegre em 2001, levaram ao poder governos populares cuja alternativa não era radical ao capitalismo. Pelo contrário, era ter um modelo de desenvolvimento capitalista, mas permitir que ele desse alguma redistribuição de capital. Tivemos aqui o Bolsa Família e outras políticas, mas essa oportunidade não era sustentável, o que decorre também de fatores internos e internacionais. Começou uma crise internacional, que impacta a economia brasileira, sustentada nos altos preços das commodities, que de certa maneira é uma lógica do colonialismo. Os Estados Unidos também voltaram a olhar para esse continente, onde os recursos naturais estavam de posse de governos nacionalistas ou, quando explorados internacionalmente, estavam indo para outros países, como a China. O pré-sal estava fora do mercado internacional. O governo brasileiro acabou cedendo a diversas pressões.

As pressões externas na dimensão econômica coincidiram com uma desmobilização dos movimentos sociais. Como isso se relaciona com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, ao qual o senhor se refere como “golpe jurídico-midiático-institucional”?

Os movimentos sociais passaram por uma vertigem, que foi, afinal, um erro. Vendo que tinha no poder “amigos”, eles (os movimentos) acharam que podiam descansar. Não podiam, porque os governos também estavam sujeitos a pressões, então a pressão de baixo para cima não podia diminuir. Os movimentos descansaram e quando quiseram se reanimar, em 2013, a mobilização social era muito confusa, na medida em que havia reivindicações de esquerda ao lado de reivindicações de direita. Quanto à queda de Dilma, é evidente que houve um golpe institucional, pois como se viu não houve nenhuma acusação direta contra a presidente, portanto o objetivo foi retirá-la do poder para fazer a reformulação econômica que se pretendia. Isso passava pela reforma previdenciária e ao mesmo tempo as leis trabalhistas, no sentido de empobrecer os trabalhadores, reduzir a carga salarial das empresas e garantir a sua rentabilidade, porque ela é garantida não por inovações tecnológicas, mas às custas do salário. Foi isso que se fez.

Só que agora Michel Temer, alçado ao poder em decorrência desse processo, também enfrenta dificuldades para se manter no governo. Como o senhor vê a articulação entre política, mídia e judiciário neste novo cenário?

As classes que neste momento controlam o sistema político, uma articulação entre as oligarquias e as classes dominantes no Brasil com os interesses norte-americanos, estão a ver se efetivamente Michel Temer tem ou não poder para levar a cabo essas medidas (econômicas). Se eles se convencerem que Temer não tem condições, certamente encontrarão uma solução alternativa. Talvez pensem que o melhor é esperar até 2018, que era o que deveriam ter tido e deixar a presidente Dilma terminar o seu mandato, e depois optar por um novo candidato que pudesse colocar outro projeto político em movimento. O calculo é sempre o mesmo, é saber quem leva a cabo as medidas que eles consideram adequadas para o país. Temer foi um instrumento. Por isso a grande questão que se impõe é que era uma chapa, então a chapa deveria ter sido impedida no seu conjunto e não somente a presidente Dilma. Isso não se fez exatamente porque havia uma grande pressa em conter a política anterior e se instituir uma nova política. Se eles considerarem que Temer cumpriu o que deveria fazer, que era destituir Dilma, demonizar o PT, neutralizar de alguma maneira Lula, esse trabalho está feito. Eu diria que é um trabalho sujo, mas é esse o trabalho que ele (Temer) fez na política. E uma vez feito, talvez Temer não lhes interesse mais e queiram alguém com mais prestígio neste momento, com eleições indiretas, que possa canalizar as coisas até 2018. Mas as coisas nunca são totalmente como as classes dominantes querem, porque há luta popular, o movimento popular está a acordar.

Em relação à classe popular, uma pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo mostrou que pensamentos neoliberais estão bastante presentes nas periferias de São Paulo. Isso demonstra, de certa maneira, que a classe popular acaba reproduzindo o discurso das classes dominantes. Isso não enfraquece a luta popular nos termos que o senhor coloca?

As classes populares são aquelas que mais passam tempo vendo televisão. São sempre as mesmas mensagens passadas, nas telenovelas e nos jornais, porque as mensagens são objetos do mesmo tipo de vida, da lógica do consumo, a lógica individualista, não admira que se tenha uma falsa consciência nessas classes. As coisas só mudam quando se vê mudanças concretas no cotidiano. Quando se der a privatização da política previdenciária e se houver uma crise financeira, as pensões dos mais pobres, que já são pequenas, podem desaparecer porque faliram os bancos. Estamos num período de falsa consciência.

Ao mesmo tempo, diante da exposição das relações estreitas de grandes empresas com o governo, como as delações da Odebrecht e da JBS escancararam, há uma apatia da população em relação à classe política, de ambos os lados…

É um modelo neoliberal, de promiscuidade. Os partidos do governo se deixaram cair na tentação porque ela tem muitas recompensas, sobretudo quando temos um sistema político que está indefeso, porque permite o financiamento privado de campanha, o que deveria ser proibido. Nesse sentido, os governos de esquerda não foram diferentes dos demais, entraram no mesmo modelo.

E quais as consequências dessa apatia da população para a democracia?

Vamos passar por um período muito conturbado na medida em que, não tendo havido uma reforma política, uma reforma fiscal, uma reforma tributária, uma reforma da mídia, as condições para uma política diferente são bastante escassas. Não podemos deixar de ter em mente que, no final do mandato, a presidente Dilma veio a aplicar algumas políticas que eram de recorte neoliberal e iam de encontro ao seu programa e os interesses das classes populares. Isso criou uma confusão enorme no movimento popular. Por isso, as condições para uma estabilidade democrática, num nível superior, mais inclusivo, vão demorar algum tempo. Vai haver muita turbulência, o que esperamos é que essas turbulências sejam pacíficas. Eu acho que as instituições terão de ser defendidas na rua. O povo tem que mostrar que quer uma solução verdadeiramente democrática, não o regresso a ditaduras. Espero que as classes populares e os partidos de esquerda, depois de serem refundados, reformados, possam efetivamente vir a disputar o poder, de forma totalmente diferente da anterior. Os partidos de esquerda não devem se aliar a partidos de direita. Portanto, enquanto não houver uma aliança de esquerda deve se manter a tensão.

A internet ajuda nesse processo ou também as redes sociais já estão instrumentalizadas por outros interesses?

Tem uma posição ambígua aí. É evidente que muita mobilização e lutas por democracia em outras partes do mundo tiveram uma participação importante das redes sociais para juntar as pessoas e ampliar protestos. Por outro lado, os comentários que são feitos nas redes sociais são dominados pela extrema direita. São forças conservadoras com organizações de rede social que visam fundamentalmente atingir o público menos culto, mais suscetível de ser influenciado por mensagens conservadoras. Por isso, quando há uma mensagem de esquerda, há sempre uma grande quantidade de mensagens hostis e algumas favoráveis. Isso é parte de um processo de luta da extrema direita internacional, que visa efetivamente desacreditar qualquer alternativa de esquerda.

Diante desse cenário, como o senhor acredita que outra democracia é possível?

Penso que Portugal, depois de muito sofrimento das classes populares entre 2011 e 2015, está demonstrando que há uma alternativa ao neoliberalismo, e que essa alternativa é institucional, não implica nenhuma ruptura. O que aconteceu em Portugal foi que a esquerda se uniu. Três partidos com tradições totalmente opostas dentro do movimento de esquerda, o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, se uniram para criar um governo alternativo. Esse governo contraria todas as políticas neoliberais dizendo que o que essas políticas querem não pode ser cumprido pelas reformas da previdência e trabalhistas, mas sim valorizando o trabalho, o sistema público e o estado social. Em Portugal, a economia está crescendo, o desemprego baixou e a expectativa dos portugueses nunca foi tão positiva nos últimos 20 anos. A situação portuguesa está a ser olhada com muita atenção por políticos de esquerda e até de direita de várias partes da Europa. Portanto, continuo a acreditar que há alternativas possíveis se houver partidos não corruptos, que tenham lideranças inovadoras, que saibam que uma aliança contra-natura nunca funciona, pois é sempre traída, como aconteceu de maneira brutal neste país (Brasil). Isso é uma lição que deve ficar para todos os brasileiros.

Talvez o mais difícil, no caso brasileiro, seja unir as esquerdas com força suficiente para reduzir a dependência econômica do capital estrangeiro…

Tem que haver uma reforma política. Para isso, é preciso haver o mínimo de consenso. Por isso eu digo que vai haver um período de empate durante um certo tempo no Brasil. O Brasil precisa se preparar para uma solução. Não quer dizer que seja agora, sobretudo quando se pensa que o ex-presidente Lula pode ser um candidato da esquerda, quando não se sabe qual vai ser seu futuro no plano jurídico. Fazer uma alternativa depender de uma pessoa, quando ela está nas mãos de forças hostis, mostra bem a fragilidade de qualquer opção de esquerda neste momento no Brasil.



Taís Seibt Jornalista, faz doutorado em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tendo como foco de estudos a produção jornalística em ambiente digital. Com 12 anos de experiência em jornalismo multimídia, passou por assessorias de imprensa e redações no RS, tem participado de congressos de comunicação no Brasil e no exterior, além de ministrar cursos e palestras em empresas e universidades de todo o país.



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