sábado, 30 de setembro de 2017

Cura gay: os “cristãos” contra Cristo


Por  Fran  Alavina




Ao recorrerem à Psicologia, os que querem dominar os desejos reconhecem os limites da Religião. Mas reproduzem o mesmo dispositivo que resultou na cruz


Por  Fran  Alavina


O debate sobre a decisão judicial que dá margem legal para a estapafúrdia “cura gay” além de ter recebido as reações devidas nos últimos dias – reações que devem aumentar –, também dá lugar para que se possa ter uma visão mais complexa do que se esconde sobre esta lógica do absurdo. Absurdidade que, por se manter na longa duração da história da repressão dos desejos dissidentes e da objetivação do corpo, acaba por se apresentar para muitos como normalidade na história da nossa cultura. De fato, quando comparado com a história da sexualidade no Ocidente, este absurdo é a regra e não a exceção. Regras de uma suposta “normalidade”, datada desde quando o cristianismo como forma religiosa hegemônica e como tipo de consciência política dominante estabeleceu para nós a moralidade dos afetos tristes. Tristes, pois afetos que se regem não pela liberdade do agir, mas pela conduta proibitiva; não pela completude, porém pela interdição. Trata-se de uma submissão do desejo àqueles que não gozando – no caso católico está parcela que em tese não possui o gozo sexual é o clero – podem prescrever as regras do gozo permitido.

Ora, o que é esta bizarrice da “cura gay” senão a velha proibição do prazer, a antiga interdição do gozo que o cristianismo na sua versão protestante, evangélica ou neopentecostal, herdou da versão católica? A estratégia evangélica que agora obteve uma vitória temporária, porém expressiva, não possui nada de novo. Ela imita um projeto de poder sobre o corpo por meio da submissão às superstições teológicas de um saber determinado e legitimamente constituído. Uma submissão do saber ao proselitismo da crença, em primeiro lugar, pois capaz de oferecer uma garantia segura para uma submissão dos corpos e dos desejos, já que discurso de poder mascarado de discurso de saber.

Em outras palavras, o debate sobre a “cura gay” é um dos dispositivos que nos permitem ver em sua inteireza a relação entre saber e poder, síntese de um inescrupuloso desejo de dominação, desejo que se dá a ver em um momento em que não basta apenas a servidão voluntária, ou seja, quando os mecanismos hodiernos da corrida proselitista estão esgarçados. Não é mera coincidência que agora, após os neopentecostais, evangélicos e católicos chegarem ao ápice de sua escalada midiática, recorra-se a um discurso que, por princípio, os prosélitos rechaçam: o discurso científico.

Não é pouca coisa que se tente usar de um determinado saber médico que não se dirige diretamente ao uso dos corpos, mas à subjetividade: a psicologia. Ora, é justamente sobre este âmbito, o âmbito da psique, que se dá o campo de atuação das religiões. Um grande pensador disse uma vez que o poder mais forte é aquele que reina sobre os ânimos. É aí que reina o discurso religioso, capaz de propiciar a mais forte das coações: a coação interna.

O homem religioso é, antes de tudo, um ser de paixão. Seu mundo é tecido por camadas de afetividade que se desdobram para além das razões, ou dos absurdos aparentes. O que carece de sentido aos olhos do crente terá sentido único e reconciliador no sentimento. Como descreve Pascal ao longo dos seus fragmentários Pensamentos, a razão da fé é demostrar que ela não possui razão alguma. Isso não quer dizer que o sentimento religioso se confunda com o puro irracionalismo, ou que seja uma esfera carente de sentido, mas que por sua própria constituição será sempre mais um discurso de paixão do que de razão – portanto um discurso auto-referente que fará do outro, daquilo que lhe é estranho e diferente, um elemento de incômodo que quando não pode ser apagado sem deixar resquícios, deve ser modificado para ser subsumido. Ou seja, deve deixar de ser o que é, o diferente, para se tornar o igual. Portanto, da alteridade à repetição.

Toda paixão forte, como aquela da religião, quer fazer de si a regra e a régua do mundo. É próprio da passionalidade forte acomodar-se apenas àquilo que lhe é semelhante. As divisões em inúmeras seitas e denominações que pululam na história do cristianismo é prova viva do expurgo do diferente. É próprio deste tipo de consciência religiosa, em que a paixão encontra seus níveis mais altos, expurgar o dessemelhante. O que é a história dos primeiros concílios senão a longa batalha do expurgo do diferente, que uma vez expulso completa a figura do herege, daquele que não possuindo mais nenhum vínculo com sua antiga comunidade pode ser objeto do mais poderoso dos ódios, segundo Espinosa, o ódio teológico?

Ao longo dos séculos, o outro para o cristão tornou-se em primeiro lugar aquele que não pertence mais ao grupo primitivo, mesmo que este outro ainda se diga cristão. O modo como o cristianismo – em suas mais diversas versões – lida com a homossexualidade é um espelho de como ele se fossilizou no trato com a diferença. É por isso que a homossexualidade traz à tona o ódio, quase insano, dos prosélitos, pois é a mais absoluta diferença em relação a uma moralidade dita “normal” e “natural”. É a liberdade de um corpo e a autodeterminação de um prazer constituinte que não apenas rompe com o círculo do gozo prescrito, mas reinventa os lugares e os objetos do gozo. Não por outro motivo, o prosélito sempre verá menor culpa no homem adúltero do que no homem gay. Um desobedece certo aspecto da moralidade aceita, mas não se coloca fora dela; já o outro, está completamente fora dos seus limites.

Há aqui, neste dispositivo do afeto, uma sutiliza que não deve ser desconsiderada. O gay só se faz outro porque estabelece uma relação incomum entre iguais. Nossa alteridade é a expressão dos iguais, e não uma alteridade da exclusão, ou do expurgo do diferente. Sutileza irônica esta, posto que foi justamente por também estabelecer uma relação incomum entre iguais, por se fazer um com os seus, que o galileu das periferias do império romano tornou-se o outro, o absolutamente outro, tanto que foi remetido à execração pública e à morte ignominiosa. Era tão outro que não poderia mais ser subsumido e aceito no interior de sua antiga comunidade. A transexual que corajosamente se apresentou publicamente crucificada, há alguns anos, na Parada Gay de S.Paulo, apenas nos deu simbolicamente esta semelhança entre o dispositivo afetivo de gays e lésbicas e o dispositivo afetivo do cristianismo das origens.

Uma vez que a relação incomum entre os iguais torna-se o pecado sem perdão, é preciso – já que não é mais possível realizar fogueiras públicas – retirar a homossexualidade da esfera do pecado, isto é, do simples discurso religioso e realocá-lo no discurso médico, portanto transformando em uma patologia que se submete a certa clínica. Assim, o pecado sem perdão transfigura-se em “doença curável”, enfermidade não apenas da alma, mas do desejo que pode ser passível de tratamento. Já que não se pode apagar fisicamente o diferente, se distorce àquilo que é sua maior determinação, o desejo, para apagar a diferença e subsumir o “anormal” na “normalidade”.

Por isso, o uso de um saber que, além de ser capaz de emprestar rigor de ciência às meras opiniões de uma moralidade imposta, também é um saber médico, um conhecimento clínico. Um saber capaz de se prestar ao papel, quando manejado na mão torta dos prosélitos, de realizar a medicina da culpa. Aí, se dá a passagem do pecado à enfermidade, ou seja, do discurso meramente religioso para o discurso médico.

É um instrumento de poder refinado que gente como Silas Mafalafaia declare-se psicólogo, que os proponentes da “cura gay” sejam prosélitos dos setores mais alinhados com o atraso, mas que sejam tratados, segundo a determinação judicial, como “pesquisadores”. O uso interessado de um certo saber médico para a confirmação das posições teológicas é o reconhecimento dos limites da crença, porém expõe também que o desejo de dominação de um tipo de consciência religiosa tende a não encontrar limites – é o mesmo tipo de consciência religiosa que distorce os sentidos do Estado laico, que confunde propositalmente violência simbólica com liberdade de expressão. Este desejo de dominação, para não se apresentar tão claramente – pois sabe que não pode mostrar à luz do dia suas entranhas protofascistas –, subverte saberes e agora encontra amparo no último poder que faltava à sua conquista: o Judiciário, o protagonista do momento.

É um momento difícil, no qual o dispositivo afetivo de desejo entre os iguais é confrontado violentamente por outro desejo, o desejo de dominação e submissão. Assim, para além de absurda e quão caricata possa ser a questão, está em jogo um problema político dos mais determinantes, pois como dizia certo odiado pensador, é própria do corpo político saudável o desejo de não se deixar dominar. Ora, quando um dos elementos desse corpo político deseja dominar, vê-se o quanto está doente este corpo. Portanto, vale agora, mais uma vez, o alerta de Pasolini: “Estamos Todos Em Perigo”!



Fran Alavina é  Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP. Mestre em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP.

(Imagem: A coroação de espinhos, Michelangelo Merisi da Caravaggio, circa 1604)


terça-feira, 26 de setembro de 2017

“Redução da maioridade vai gerar mais crimes e violência”



Para debater os efeitos da proposta de redução da maioridade penal, entrevistamos o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca-SP). Ele analisa a estrutura atual de atendimento a jovens infratores no Brasil e alerta: a redução vai gerar mais crimes



Por Luís Brasilino



Crédito da Imagem: Daniel Kondo





O Estado estará tirando adolescentes das unidades de internação, onde hoje eles são atendidos por educadores, psicólogos, assistentes sociais, para colocá-los em masmorras medievais, que são os presídios do país! Nessas prisões, esses jovens serão comandados por chefes de facções criminosas.” Essa é a análise do advogado Ariel de Castro Alves sobre a proposta de redução da maioridade penal, aprovada na Comissão Especial da Maioridade Penal da Câmara dos Deputados, no dia 17 de junho.

Especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública pela PUC-SP, membro da coordenação estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos (SP) e do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca-SP), cofundador da Comissão Especial da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Alves avalia na entrevista a seguir a situação de crianças e adolescentes em conflito com a lei no Brasil e discute as perspectivas de aumento das possibilidades de punição contra essa população.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Qual é sua opinião sobre o tratamento atualmente dispensado pela legislação aos jovens infratores?

ARIEL DE CASTRO ALVES – Quando se definiu no Código Penal de 1940 e nas sucessivas Constituições federais, inclusive na de 1988, a idade penal em 18 anos, não foi pela compreensão de que os adolescentes não sabem o que é certo ou errado. Eles têm discernimento! Mas foi por questão de política criminal que se entendeu que eles deveriam ser responsabilizados por meio de medidas socioeducativas, com caráter mais educacional e de inclusão social do que punitivo. Também para que eles fossem mantidos separados dos presos adultos e, em vez de serem cuidados por carcereiros, fossem tratados por educadores sociais, exatamente por estarem numa fase peculiar de desenvolvimento, na qual as formas de tratamento que recebem repercutem em seus comportamentos e ações. Sendo assim, se os adolescentes ficarem num sistema prisional em condições desumanas e degradantes, sem estudos e atendimentos médicos e psicológicos, sairão muito piores do que entraram, além de sofrerem as influências de presos mais velhos, muito mais engajados na criminalidade. O trabalho socioeducativo visa exatamente tirar os jovens do ciclo de violência e incluí-los socialmente.

Há confusão entre inimputabilidade e impunidade! Conforme o artigo 228 da Constituição brasileira de 1988, o adolescente é inimputável, mas não fica impune. Ele é submetido à responsabilização prevista em legislação especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e não às penas do Código Penal. Muitas vezes o adolescente que comete um roubo fica mais tempo internado do que um adulto que cometeu o mesmo crime, já que na justiça comum existe a progressão de pena. Num roubo, por exemplo, um jovem com menos de 21 anos, primário, com bom comportamento carcerário, depois de um ano de prisão, consegue ir cumprir pena em regime semiaberto, enquanto muitos adolescentes ficam dois anos cumprindo internação.

O adolescente, além de ser privado de liberdade, pela medida de internação, pode receber outras medidas punitivas e educativas, como reparação de danos, liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade e semiliberdade. Ademais, se o adolescente autor de ato infracional sofrer transtornos psiquiátricos e ficar demonstrada sua periculosidade por meio de laudos e relatórios após os três anos de internação, a lei que criou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, que entrou em vigor em abril de 2012, prevê a ampliação do tempo de internação por prazo indeterminado, transformando a internação socioeducativa em internação psiquiátrica e compulsória.

A partir dos 12 anos, os adolescentes são plenamente responsabilizados por seus atos no Brasil! A diferença é que na Justiça da Infância e Juventude a família responde o processo junto com o jovem, e os juízes, além de responsabilizarem os adolescentes, podem na sentença determinar que os pais matriculem seus filhos na escola; que as Secretarias de Educação atendam imediatamente esses jovens; que os Centros de Referência da Assistência Social atendam os adolescentes e suas famílias; que a rede pública de saúde garanta tratamento aos adolescentes dependentes de drogas. Então, juntamente com a responsabilização dos adolescentes, devem ser aplicadas na Justiça da Infância e Juventude as medidas de proteção e as medidas aos pais ou responsáveis, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, a lei é mal aplicada e mal interpretada, e poucos juízes acionam a rede de proteção para os adolescentes e suas famílias, inclusive para evitar que eles continuem envolvidos com crimes.

Ao mudar a maioridade penal dos 18 anos, o Brasil estaria contrariando os princípios da Convenção da ONU dos Direitos da Criança, de 1989, que prevê que as pessoas que têm menos de 18 anos de idade, quando cometem crimes, sejam tratadas de forma completamente diferente dos adultos. A pesquisa Tendências do Crime, feita em 2012, pela ONU, ao analisar as legislações penais de 57 países, concluiu que apenas 17% deles adotam a idade penal inferior a 18 anos.

Há alguns anos a Alemanha e a Espanha chegaram a reduzir a idade penal, mas, ao observarem o aumento da criminalidade juvenil em razão da reincidência dos adolescentes que foram para a cadeia, resolveram voltar atrás. Estados Unidos e Inglaterra estão atualmente rediscutindo as penas aplicadas a crianças e adolescentes. No Uruguai, recentemente, por plebiscito, a população rejeitou a redução da idade penal. O Brasil está na contramão das tendências mundiais!

Qual é seu balanço dos dispositivos utilizados para tratar os jovens infratores?

A lei tem sido mal aplicada, e muitas vezes temos distorções, como adolescentes que cometeram latrocínios (roubos seguidos de morte) ficando menos tempo cumprindo internação do que os que cometeram roubos; adolescentes primários cumprindo mais tempo de internação do que os reincidentes nos mesmos crimes. Isso porque a medida socioeducativa é reavaliada de seis em seis meses, e essa reavaliação depende dos técnicos da unidade de internação e do Judiciário, dos advogados, promotores, defensores públicos e juízes. Também se leva em conta nessas avaliações o respaldo familiar. Com isso, muitas vezes o jovem pobre acaba sendo considerado sem respaldo familiar, e os adolescentes de classes média ou alta, considerados com respaldo familiar. Os pobres são mais penalizados! Em regra, um adolescente poderia cumprir até nove anos de medida socioeducativa. Nisso também ocorre distorção! Os adolescentes que cometem atos infracionais com 12 anos podem até cumprir nove anos de medidas socioeducativas, iniciando pela internação, passando pela semiliberdade e depois indo para a liberdade assistida. Mas o jovem que comete ato infracional com 17 anos só pode cumprir medida socioeducativa até os 21 anos, porque o ECA prevê que a medida se encerra automaticamente com essa idade. Essas distorções podem ser solucionadas com uma lei de execuções de medidas socioeducativas, aprimorando o ECA, e não reduzindo a idade penal.

O que precisa ser feito para melhorar em termos de equipamentos e pessoal?

Houve melhora significativa nas unidades de internação nos últimos dez anos, principalmente após a resolução do Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente] sobre o Sinase [Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo], em 2006, com os processos de descentralização e regionalização dos atendimentos, criação de pequenas unidades, entre outras medidas. Mas a ampla maioria das unidades ainda apresenta grandes deficiências e precariedades na área educacional; falta de ensino profissionalizante; dificuldades quanto aos atendimentos de saúde, principalmente no tratamento dos adolescentes com distúrbios psiquiátricos e dependentes de drogas; falta de assistência jurídica; desestrutura das Varas da Infância e Juventude, gerando morosidade nos processos de execuções de medidas; práticas corriqueiras de maus-tratos e torturas, entre outros problemas.

As unidades de internação em muitos locais acabam sendo verdadeiros minipresídios, com falta de escolarização, de profissionalização, atendimento de saúde e drogadição, ausência de assistência jurídica, social e trabalho com as famílias, falta de atividades culturais, esportivas e de lazer. Muitas vezes os internos não são divididos conforme idade, reincidência e primariedade, compleição física e gravidade dos atos infracionais. Muitas instituições mantêm quadro de funcionários sem a capacitação adequada. São comuns as ocorrências de torturas, maus-tratos, mortes, fugas, rebeliões, abusos sexuais.

O próprio ECA e a Lei n. 12.594, de 2012, conhecida como Lei do Sinase, dispõem sobre as obrigações do poder público quanto às medidas socioeducativas, mas o cumprimento da legislação ainda é negligenciado pelos estados, e o governo federal pouco fiscaliza. Os municípios também mantêm programas de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade extremamente precários, nos quais os jovens comparecem uma vez por mês e apenas informam que estão estudando, trabalhando e fazendo cursos, quando na verdade, em muitos casos, estão inseridos na criminalidade e em situações de risco.

Você defende mudanças na legislação que trata desse tema?

Para resolver essas distorções seria necessária uma lei de execuções das medidas socioeducativas. Já ocorreram várias discussões e foram elaboradas propostas sobre o tema, porém o governo e o Congresso Nacional não se preocuparam até hoje em aprimorar o ECA para resolver essas distorções com relação à aplicação da lei. São necessários critérios mais objetivos para serem seguidos pelos operadores do direito. A legislação existente também é omissa com relação aos trabalhos com os jovens egressos de medidas socioeducativas.

Uma proposta que vem ganhando corpo este ano, no contexto da discussão da redução da maioridade, é a do aumento do tempo de internação dos jovens infratores para oito ou até dez anos. Você concorda?

Realmente algumas propostas tratam da ampliação do tempo de internação, que é uma discussão juridicamente possível de ser feita e deve contar com especialistas de várias áreas, como da psicologia, serviço social, antropologia, psiquiatria, além dos juristas. A reflexão que deve ser realizada é se os três anos hoje em dia, diferentemente de 1990, são ainda suficientes para as intervenções socioeducativas, visando à ressocialização e à educação dos adolescentes.

Sou mais favorável à regulamentação do cumprimento de até nove anos de medidas socioeducativas, num sistema de progressão, com até três anos de internação, passando pela semiliberdade também por até três anos e chegando à liberdade assistida por até três anos. Devemos ainda observar que as propostas de ampliação da internação precisam observar o princípio constitucional da brevidade das medidas socioeducativas, previsto no artigo 227 da Constituição Federal. Assim, se um adolescente de 12 anos for penalizado com oito anos de internação, o princípio da brevidade será claramente desrespeitado, já que oito anos representam dois terços da vida do jovem, tornando a proposta inconstitucional e ilegal.

Outra medida que vem sendo discutida é a redução da maioridade apenas para jovens que cometem crimes graves e/ou hediondos. É possível aplicar uma mudança nesse sentido?

Entendo que as propostas de redução da maioridade penal são inconstitucionais e só poderiam prosperar por meio de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Pareceres e manifestações de juristas e da própria Ordem dos Advogados do Brasil consideram que a inimputabilidade dos adolescentes compõe o rol de direitos e garantias fundamentais, que não podem ser abolidos por emenda constitucional, e sim apenas por meio de nova Assembleia Nacional Constituinte. Trata-se de “cláusula pétrea”, que não pode ser alterada por lei ordinária ou mesmo por projeto de emenda à Constituição. Conforme o artigo 228 da Constituição, o adolescente é inimputável, mas não fica impune, ele é submetido à responsabilização prevista na legislação especial, no ECA, e não às penas do Código Penal. O adolescente pode até mesmo ser privado de liberdade, por meio da internação.

Outra inconstitucionalidade clara é diferenciar como imputável ou inimputável conforme o crime cometido, violando o princípio constitucional de que “todos são iguais perante a lei”, do artigo 5º da Constituição Federal. Dessa forma, o adolescente cometer um furto é considerado inimputável, e ele recebe medidas socioeducativas. Mas se cometeu um roubo, com uso de arma, ele é imputável e vai para a prisão comum. A proposta não tem nenhum cabimento. É no mínimo inusitada! Além disso, se ela incluir crimes como tráfico de drogas, abrangerá os milhares de adolescentes usuários que vendem drogas para sustentar seu vício ou pagar suas dívidas com os traficantes. Na prisão, eles vão usar mais drogas ainda! Ao incluir a lesão corporal grave, qualquer jovem que brigar na escola, empurrar o colega e ele se machucar ao cair também vai para a prisão. Ao incluir o roubo, abarcará quase 50% dos adolescentes que hoje cumprem internações no Brasil. Somando os jovens que cumprem internação por tráfico e roubo, teremos ao menos 70% dos adolescentes que cometem atos infracionais entre 16 e 18 anos sendo encaminhados para o sistema prisional.

A redução da maioridade penal vai gerar mais insegurança pública, já que a reincidência no sistema prisional brasileiro, conforme dados do Ministério da Justiça, chega a 70%. No sistema de internação de adolescentes, por mais que existam problemas, porque muitos estados ainda não cumprem a lei, estima-se a reincidência em torno de 30%. A Fundação Casa de São Paulo tem apresentado índices de 14%, mas que não levam em conta os jovens que completam 18 anos e vão para a cadeia pelas práticas de novos crimes.

Nas prisões brasileiras temos mais de 700 mil presos para 300 mil vagas. Em São Paulo, são 100 mil vagas para 300 mil presos. Onde os adolescentes serão mantidos, já que não existem vagas no sistema penitenciário? A redução da maioridade penal é uma medida enganosa, que só vai gerar mais crimes e violência! Teremos criminosos juvenis sendo profissionalizados na criminalidade dentro de um sistema prisional falido.

O Estado estará tirando adolescentes das unidades de internação, onde hoje eles são atendidos por educadores, psicólogos, assistentes sociais, para colocá-los em masmorras medievais, que são os presídios do país! Nessas prisões, esses jovens serão comandados por chefes de facções criminosas. Além da superlotação e da presença de facções criminosas, esses locais convivem com a falta de atendimento de saúde, de escolarização, trabalho, assistência jurídica e tantas outras mazelas.

Além de não afastar os adolescentes do crime, a redução da maioridade penal vai representar a condenação dos adolescentes a não serem mais recuperados ou ressocializados. Eles perderão qualquer perspectiva de reeducação ao serem enviados ao sistema prisional.

Quem só conhece a violência provavelmente vai agir com violência! Quem nunca teve sua vida valorizada dificilmente vai valorizar a vida do próximo!

Qual é sua opinião sobre os rumos que a questão da maioridade vai tomar no Congresso? Por que ela foi retomada com tanta força e o que está por trás desse movimento?

Essa discussão é permanente porque a criminalidade juvenil tem aumentado. Nós também temos de reconhecer que, nestes 25 anos, o ECA gerou muitos avanços com relação ao atendimento às crianças, mas ainda, no atendimento aos adolescentes, o poder Público deixa muito a desejar, principalmente nas áreas de educação, saúde e profissionalização.

A prevenção, por meio de políticas sociais, custa muito menos que a repressão. Temos de prevenir, incluir e garantir oportunidades à juventude. Se o adolescente procura a escola, o serviço de atendimento à drogadição, trabalho e profissionalização e não encontra vaga, ele vai para o crime. O crime só inclui quando o Estado exclui! O Estado brasileiro é excludente com suas crianças e jovens.

Entre as medidas, precisamos garantir vagas para os jovens em cursos profissionalizantes, independentemente de escolaridade, e com direito a bolsas de estudo pagas pelo poder público. Também é necessário criar uma política de incentivos fiscais para as empresas que contratem estagiários e aprendizes entre os 14 e 21 anos, principalmente. As prefeituras e empresas públicas também devem contratar esses jovens.

O desenvolvimento econômico, social e as oportunidades de empregos, atualmente, não estão chegando aos que mais precisam, os jovens de 14 a 21 anos, com defasagem escolar, vulnerabilidade ou em conflito com a lei. O Sistema de Proteção e Assistência Social em vigor no Brasil também é bastante frágil e extremamente precário no atendimento dessa faixa etária.

Entre as causas da criminalidade temos o consumismo e a rápida ascensão econômica e social que resulta do tráfico e do envolvimento com crimes, ainda que momentânea e ilusória, se somando aos sistemas e programas educacionais e sociais bastante frágeis e precários, além da falta de oportunidades e a desagregação familiar. Esses são alguns dos componentes que geram aumento da criminalidade juvenil no Brasil.

Os governos deveriam cumprir o princípio constitucional da prioridade absoluta, por meio dos orçamentos e da criação dos programas e serviços especializados de atendimento de crianças e adolescentes, próprios ou em parcerias com entidades, como de atendimento de famílias; enfrentamento ao abuso e exploração sexual; erradicação do trabalho infantil; atendimento de drogadição; atendimento às vítimas de maus-tratos e violência; convivência familiar e comunitária; medidas socioeducativas e programas de oportunidades e inclusão.

Na Câmara dos Deputados, a proposta deve ser aprovada, mas no Senado Federal existem chances de reversão por meio da negociação das propostas que tratam da ampliação do tempo de internação, conforme a linha que o governo federal está adotando.

Que legitimidade a classe política brasileira tem para querer punir os adolescentes do país?

Outro dia conversava com um jovem numa unidade de internação e, ao dar conselhos para ele deixar a vida do crime e os roubos, ele me disse: “Está todo mundo roubando, principalmente em Brasília, por que eu não posso roubar também?”. Boa parte dos políticos brasileiros é mau exemplo para a juventude!

Por trás do movimento pela redução da idade penal temos muitos parlamentares ligados às empresas de segurança privada ou às indústrias de armamentos. Muitos dos que trabalham nessas empresas de segurança privada são policiais; na verdade, são agentes da segurança pública que investem na insegurança pública para vender seus serviços particulares de segurança privada. Essas empresas querem pegar o filão dos presídios a serem privatizados. Para elas, quanto mais insegurança pública e mais presos, maiores os lucros!

Também temos os programas sensacionalistas de TV dos finais de tarde, que fazem apologia e incitação da violência. Quanto mais crimes, mais audiência, mais lucros com publicidade e também salários mais milionários para os apresentadores de TV desses programas.

Por outro lado, os setores reacionários aproveitam a crise política e econômica que envolve o governo, que perdeu ainda mais a credibilidade até para debater o tema da maioridade penal porque nem sequer tem dados atualizados sobre o sistema de medidas socioeducativas para adolescentes e mesmo sobre o sistema prisional e de segurança pública do país. O governo está perdido nas discussões e, ao promover cortes nos programas sociais voltados à juventude, como o Pronatec, se desqualificou ainda mais. Vivemos uma verdadeira encruzilhada contra os direitos e garantias fundamentais! Uma verdadeira avalanche reacionária que o governo só acompanha como espectador. Os movimentos sociais ainda tentam reagir, mas também se enfraqueceram e perderam legitimidade nos últimos anos ao atuarem a reboque dos governos ditos populares e democráticos.

Reduzir a idade penal seria como reconhecer a incapacidade do Estado brasileiro em garantir oportunidades e atendimento adequado à juventude. Seria como um atestado de falência do sistema educacional e de proteção social do país!

Já que o país não consegue educar e incluir socialmente seus adolescentes, resolveu encarcerá-los! Seremos então uma pátria encarceradora, e não educadora!


[Publicado na edição 96 – Le Monde Diplomatique Brasil- Julho de 2015]

Luís Brasilino é jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Patriarcado e a cultura do estupro no Brasil


A cultura do estupro é, em termos gerais, a banalização e normalização desse crime pela sociedade que compactua e estimula essa cultura de diversas maneiras, por exemplo, quando objetifica as mulheres nos meios de comunicação.


Por  Vânia dos Santos Silva





Em 21 de maio, no Rio de Janeiro, um crime brutal, cometido a uma garota de 16 anos, chocou parte considerável da sociedade brasileira. A adolescente foi estuprada por mais de trinta homens, sendo ao menos um deles conhecido da garota, pois era o seu namorado. Outros dois estupros ocorreram na mesma semana. No dia 20, uma garota de 17 anos, de Bom Jesus (PI), foi estuprada por cinco homens – segundo a investigação, um deles seria próximo da garota. O outro se passou em uma escola em São Paulo. No dia 19, três garotos arrastaram e tracaram uma menina de 12 anos no banheiro masculino onde a estupraram.

Os crimes ocorridos, é importante que se diga, são parte da cultura do estupro. A cultura do estupro é, em termos gerais, a banalização e normalização desse crime pela sociedade que compactua e estimula essa cultura de diversas maneiras, por exemplo, quando objetifica as mulheres nos meios de comunicação, culpabiliza as vítimas, não vê problemas nos assédios que as mulheres sofrem diariamente nas ruas, incentiva os meninos desde criança a serem os “pegadores” e as meninas a aceitarem serem beijadas e tocadas à força por seus colegas, afinal isso é “bonitinho”, como dizem os pais na maioria das vezes.

A cultura do estupro, por sua vez, faz parte de um sistema maior, o patriarcado. E é esse sistema maior que reforça a cultura do estupro. O sistema patriarcal consiste na estrutura de pensamento que insiste no modelo de interação baseado na dominação dos homens sobre as mulheres. Nesse sistema de pensamento, o dominador/homem crê ser superior à dominada/mulher. A crença deriva dos discursos de validação da hierarquia histórica e culturalmente estabelecida, tal como o discurso, por exemplo, que define a mulher, dentre outros, como objeto do prazer masculino. Com esses discursos de validação da hierarquia o dominador procura justificar as atrocidades cometidas pelos homens às mulheres.

Dados oficiais mostram o quanto a cultura do estupro está fortemente presente na sociedade brasileira, não nos esqueçamos da pesquisa realizada pelo IPEA, divulgada em 2014, “Tolerância social à violência contra as mulheres”,1 na qual 58,5% dos entrevistados colocavam a culpa na vítima do estupro justificando que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros. Essa tentativa de livrar os homens da culpa é intolerável. Primeiro, a culpa nunca é da vítima; segundo, o estupro não tem e não pode ter justificativa; terceiro, casos de estupros às mulheres ocorrem nas mais diversas situações, ocorrem dentro de casa, da universidade, da escola, nas ruas, em bairro ricos, de classe média ou populares. Eles ocorrem independentemente do tipo de roupa que as mulheres estejam usando ou do comportamento delas. No ano de 2014, de acordo com o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública,2 foram registrados 47.646 casos de estupros no Brasil. Mas esse número pode ser ainda mais aterrorizador se considerarmos a nota técnica “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”,3 que sugere, a partir da pesquisa do IPEA já mencionada, que somente 10% dos casos são registrados e que haja anualmente 527 mil tentativas ou caso de estupros consumados no país, o que significa que os dados apresentados. Ainda segundo a nota técnica, 15% dos estupros são coletivos, ou seja, os casos acima estão longe de serem isolados.

Diante desse quadro de extrema violência às mulheres, temos outro que é desanimador: o quadro político conservador brasileiro. O Congresso Nacional tem se mostrado extremamente misógino e avesso às políticas para as mulheres. A conhecida bancada “bbb (bancada da bíblia, boi e bala)” tem apresentado projetos de lei que são verdadeiros retrocessos em termos de políticas públicas e de direitos humanos para as mulheres. Exemplo evidente disso é o Projeto de Lei 5.0694 apresentado pelo deputado Eduardo Cunha e aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, em outubro de 2015.5 A proposta dificulta o atendimento nos serviços públicos de saúde às mulheres que escolherem interromper uma gravidez decorrente de estupro. Isso porque os médicos serão proíbidos de fornecer atendimento e informações para as vítimas. A vítima terá que provar por meio de boletim de ocorrência ou exame de corpo de delito que houve estupro. Esse projeto de lei não só retira um direito fundamental como faz coro à cultura do estupro ao culpabilizar a vítima.

Em uma sociedade conservadora como a nossa é quase certo que a mulher que sofre estupro ou tentativa irá pensar muitas vezes se vale a pena ou não denunciar. As razões pelas quais as mulheres vítimas de estupro não denunciam são inúmeras: medo por denunciar o estuprador e ter a própria vida ou de seus familiares ameaçada; medo de ouvir que é ela, a vítima, a culpada; e a sensação de impunidade e de normalização desse crime que afasta as vítimas dos órgão oficiais. Sabemos que falta no Estado estrutura tanto física quanto de pessoas preparadas para tratar o crime de estupro e das demais violências contra as mulheres. Veja-se o caso do delagado, afastado da investigação do crime ocorrido com a adolescente no Rio de Janeiro, que declarou após ouvir e ver os vídeos não ter certeza de que havia ocorrido um estupro. É a cultura do estupro presente nas declarações dos representantes do Estado.

A cultura do estupro, como um subproduto do patriarcado, não terá fim enquanto a culpa for colocada na mulher; não houver punição para os estupradores; tivermos representantes do alto judiciário conivente com o estupro e com o estuprador – como é o caso do ministro Gilmar Mendes que em 2009 livrou da prisão o estuprador Roger Abdelmassih, condenado por estuprar 52 mulheres e abusar sexualmente de outras dezenas; tivermos um ministro da Educação (Mendonça Filho) que convida para ouvir sobre a pasta o ator Alexandre Frota que declarou em rede nacional ter estuprado uma mãe de santo; tivermos um presidente misógino, como é o caso do Michel Temer, que acabou com os ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.

Precisamos acabar com a cultura do estupro e com a cultura da violência contra as mulheres e podemos começar com a educação, um processo mais longo, sei, porém com resultados mais sólidos. Mas a educação deve ser de outro tipo. Precisamos de uma educação que ensine para os meninos, desde crianças, que o corpo da mulher não é objeto, que ele não existe para ser violado e para ser agredido. Precisamos de uma educação onde o respeito ao outro seja ensinado. Precisamos de uma educação mais amorosa.


Vânia dos Santos Silva é pesquisadora de Estudos Clássicos na Universidade de Coimbra. E-mail: vania21santos@gmail.com.


Notas:

1http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_novo.pdf
2 http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2015.retificado_.pdf
3http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf
4http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1381435&filename=Tramitacao-PL+5069%2F2013
5 http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/498538-CCJ-APROVA-MUDANCA-NO-ATENDIMENTO-A-VITIMAS-DE-VIOLENCIA-SEXUAL.html


domingo, 17 de setembro de 2017

O Executivo como servo do povo


O ataque à esquerda está acompanhado de um ataque ao próprio sistema político. Grosso modo, a política se transformou, nas redes sociais, num espetáculo macabro de futebol. O cidadão encarna o arquétipo de torcedor fanático. E as torcidas dos times que estão em campo, se digladiam sem se importar, de fato, com o resultado. Nesse processo, tanto os que se dizem de esquerda quanto os que se dizem de direita, estão sendo manipulados.


Por Raphael Silva Fagundes e Wendel Barbosa



                                       Crédito da Imagem: Lula Marques/Agência PT



No século XVIII, o iluminista Charles de Montesquieu esboçou na obra “O Espírito das Leis”(1748), a teoria dos três poderes. Para ele, tudo “estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar leis, o de executar as resoluções publicas e o de julgar os crimes ou as divergências entre os indivíduos”.3 Hoje esse modelo compõe as principais democracias do Ocidente. No entanto, atualmente, vivemos uma onda que tenta desvalidar os três poderes, ao mesmo tempo em que ganha corpo o ódio à democracia de que fala Jacques Rancière.4 Por mais que entendamos que nossa democracia – alinhada a política liberal – seja uma ferramenta do capitalismo, essa tendência é preocupante. A construção desse cenário aqui no Brasil, começa a tomar contornos mais fortes há quatro anos atrás, diante das manifestações de 2013, alavancadas pela revolta dos vinte centavos.

Primeiro, vimos o Executivo convalescer diante das denúncias de corrupção. No processo, presenciamos o impeachment da Presidente Dilma Roussef, num caso fraco de improbidade administrativa. Depois, sob a mesma justificativa o Legislativo se mancha diante da opinião pública. O caso escabroso da suposta compra de votos feito pelo, na época, líder do PSDB, Senador Aécio Neves, é um exemplo recente disso. O caso foi explorado ao máximo em tudo que foi mídia, minando ainda mais a confiança do brasileiro.

O Judiciário – até então – por conta da Lava Jato e da popularidade do Juiz Sérgio Moro, havia se desvinculado desse destino. Porém, recentemente, começou na imprensa, o ataque aos magistrados. A absolvição de Temer, que a mídia queria que abandonasse o cargo para não confundir o projeto econômico que defende com a corrupção descarada, foi o pontapé inicial para o julgamento negativo aos poderosos de toga. Em São Paulo, o juiz que abrandou a atitude de um maníaco sexual (tipo de questão que a pequena burguesia adora agir como protetora da mulher) serviu de catalizador de manifestações populares. O Presidente Temer, alegando ilegalidade na condução do caso que acarretou no pedido de seu afastamento, pede a saída do Procurador Geral da República Rodrigo Janot. E, agora, novos áudios de Joesley Batista, da JBS, trazem para novos escândalos envolvendo as próprias investigações movidas contra a corrupção, através dos acordos de delação premiada.

Atacar a esquerda e desfigurar a política

Todas as denúncias reverberaram (e ainda reverberam) nas mídias sociais. É um verdadeiro show da indústria cultural. E agora podemos ver nos cinemas. Elas passaram a moldar o pensamento político do brasileiro de um jeito intenso. Através desse instrumento, a direita, alinhada ideologicamente à grande mídia, desferiu um tiro certeiro em tudo que pudesse representar um enfrentamento de classe. A corrupção no governo passa a encontrar raízes no Partido dos Trabalhadores (PT). A culpa do envolvimento do Legislativo e Judiciário é direcionada ao Governo anterior. Pois, foi ele que alimentou esse monstro dentro da máquina pública em prol da governabilidade. Junto ao ataque, a memória das raízes do PT é reclamada. Dessa forma, o mesmo passa a ser sinônimo de esquerda. E se o partido também é sinônimo de corrupção, todo pensamento à esquerda passa a ser combatido.

Isso fica mais forte ao analisarmos o retorno que os leitores dão, nas mídias sociais, aos posicionamentos políticos de grupos ou partidos de esquerda. Na última terça-feira, um post da página do PSOL do Rio de Janeiro, nas redes sociais, chamou nossa atenção. O texto critica a pressão política para que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) chegue ao fim, dentro do pacto (macabro) estabelecido entre a União e o governo do estado. A página também expôs novas políticas governamentais de Estado mínimo. Novas privatizações estão chegando, meus amigos! O comentário de um leitor causou-nos espanto. Pois, ele questionava o texto, não por discordar das ideias em si, mas, apenas, para diminuir o impacto das mesmas.

Em alguns casos, a impressão que temos é que algumas pessoas avaliam as decisões políticas pelo que a esquerda ou a direita defendem. Explicamos: as ideias do deputado Marcelo Freixo, por exemplo, podem ser acertadas. Mas, pelo simples fato de ser de “esquerda”, suas posições são atacadas. Sejam elas boas ou não para a sociedade. Muitos foram contaminados por uma doença cujo sintoma é não se importar se há no discurso algo que possa, concretamente, representar algo digno para a sociedade. Para o cidadão comum, há mais uma preocupação com o ethos do orador, a imagem que as pessoas têm de forma pré-concebida do que é esquerda e direita, do que com o conteúdo da fala. E isso serve para qualquer político.

O ataque à esquerda está acompanhado de um ataque ao próprio sistema político. Grosso modo, a política se transformou, nas redes sociais, num espetáculo macabro de futebol. O cidadão encarna o arquétipo de torcedor fanático. E as torcidas dos times que estão em campo, se digladiam sem se importar, de fato, com o resultado. Nesse processo, tanto os que se dizem de esquerda quanto os que se dizem de direita, estão sendo manipulados. Com o esvaziamento paulatino dos poderes, financiado pelas elites nacionais e estrangeiras, o caminho que o país está traçando se torna cada vez mais nebuloso.

Pensar para além do ethos pré-concebido

Precisamos pensar para além da disposição que a imagem que temos do orador forja em nós, forçando-nos a acreditar ou a refutar o que ele tem a dizer.5 Precisamos refletir o conteúdo argumentativo, lógico e conclusivo das palavras que profere. Libertarmos das aparências é uma necessidade, assim como das emoções (principalmente no que tange o politicamente correto e incorreto) que formatam a nossa interpretação de um discurso político.

Por trás da névoa espetacular do discurso fabricado e alimentado nas mídias e nas redes sociais é possível identificar, no mínimo, quatro soluções apresentadas para a crise das instituições democráticas. Uma é a que a grande mídia apresenta alinhada aos setores liberais da direita. Privatizações e o fortalecimento do mercado é a proposta que mais seduz esse grupo. A mídia fala por aqueles que a financia, assim como os políticos.

Outra opção é o autoritarismo, a concentração dos poderes e o desejo de se entregar a alguém que apresenta firmeza e jura segurança. O maior representante seria o deputado federal Jair Bolsonaro, defensor de uma política que exalta as forças armadas clamando aos seus seguidores a não pensarem em uma política que desenvolva empregos ou melhores condições de trabalho. A fórmula mágica para acabar com a crise seria matar “vagabundos”.

Já as esquerdas apresentam duas soluções. A primeira, com o seu representante mais carismático, Luís Inácio Lula da Silva, que hoje adota um discurso mais à esquerda, bem diferente de quando estava no poder. Este grupo propõe a valorização do mercado, principalmente pela questão do consumo, mas inclui as classes populares nesse processo, fazendo com que estas não se sintam excluídas, dando a ela acesso a uma fatia ínfima do bolo, vide a parcela mínima do PIB dedicado aos projetos educacionais e de combate à fome.

Uma solução popular

Outra proposta da esquerda seria uma maior participação popular. A saída da crise não seria nem pelo Judiciário (que a mídia endeusa com o Moro), nem pelo Executivo (cultuado pelo desejo de um governo autoritário, mas que abre as pernas para o mercado), mas pelo Legislativo.

Consultar o povo quando abordar questões importantes para o progresso do país como a reformulação das Leis Trabalhistas, privatização de setores estratégicos, reforma política e tributária seria o básico dessa proposta. Uma democracia direta em que os representantes no Congresso só possam agir após a consulta popular. Não confundir o que dizemos aqui com “justiça popular”, embora sejamos contra o uso da justiça penal pela burguesia como um instrumento tático que visa criar uma divisão entre o proletário e o não proletário, como demonstra Foucault.6 Também é necessário o fim do partido togado que liderou o golpe de 2016.7 No entanto, o nosso foco aqui é a defesa de um Executivo servo do povo e não o oposto. A “desmercantilização” da política para que haja democracia, como nos lembrou Ellen Wood.8

Para a economia se propõe o investimento no pequeno empreendedor e na agricultura familiar. Setores que mais geram empregos. Esses elementos podem ser encontrados na cartilha do PSOL, no entanto, o partido tem se dedicado muito mais a defender a moral politicamente correta que, por sua vez, também é um ingrediente do seu programa.

A bipolaridade entre o politicamente incorreto e o correto, além de empobrecer o debate político, gera uma desproporção na luta de classes. As esquerdas travaram-se nessa luta modista que contribui para enriquecer suas fileiras, no entanto, as direitas, por seu turno, ou não tocam nesses temas, ou se posicionam do lado do politicamente incorreto. Mas estas últimas não deixam de defender o mercado, de defender projetos que precarizam a mão de obra em prol do lucro. Aí está o problema. As esquerdas devem se voltar de forma mais clara e definitiva aos interesses das classes trabalhadoras. Esta deve ser sua pauta principal, embora não precise abandonar a luta pelo aprimoramento das liberdades individuais. Talvez não estejamos prontos para o socialismo, mas precisamos voltar a falar dos trabalhadores enquanto a classe fundamental no processo de construção de uma sociedade mais igualitária.



*Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí; E Wendel Barbosa é pós-graduado em História social e cultural do Brasil pela FEUC e professor da rede estadual e particular de ensino.



3 – MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 168
4 – RANCIERE, Jacques. O ódio à democracia. Trad: Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014
5 – DASCAL, Marcelo. O ethos na argumentação: uma abordagem pragma-retórica. AMOSSY, Ruth. (org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad: Dilson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2005.
6 – FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23 ed. Trad: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 56.
7 – SECCO, Lincoln. Golpe de toga. Le monde diplomatique. São Paulo, ano 11, n. 121, agosto, pp. 10-11, 2017.
8 – WOOD, Ellen Meiksins. Estado, democracia e globalização. BORON, Atilio.; AMADEO, Javier. e GONZÁLEZ, Sabrina. (orgs.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Trad: Simone R. da Silva e Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 382.




quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Universidades públicas: da crise ao possível colapso



Universidade de Brasilia (UnB): déficit de R$ 100 milhões, devido ao corte de verbas,
e demissão de metade dos funcionários terceirizados

Nas federais, déficits e demissões. Nas estaduais, semestres cancelados e salários atrasados. Não há garantia para bolsistas do CNPq. O desmonte dos serviços públicos atinge em cheio o ensino superior



Por Gabriel de Arruda Castro, no IHU


A luz amarela está acesa nas universidades públicas federais brasileiras. Não há recursos assegurados para cobrir todas as despesas até o fim do ano. As bolsas para pesquisadores podem não durar até o mês que vem. Em algumas instituições estaduais, a situação é ainda pior: simplesmente não há de onde trazer dinheiro.

O orçamento do Ministério da Educação para 2017 era de R$ 35,7 bilhões. Mas, em março, o governo congelou R$ 4,3 bilhões (12% do total). O objetivo era reduzir o déficit nas contas públicas. A matemática é simples: o Executivo tem gastado mais do que arrecada e, para tentar equilibrar as contas, contingenciou recursos de todas as áreas. A educação não foi poupada.

O corte reduziu principalmente as despesas de custeio, que perderam 15% do orçamento inicial, e de capital (como a aquisição de equipamentos), com uma redução de 40%. Como consequência, muitas universidades federais têm sofrido para pagar despesas como água, luz, segurança e limpeza.

A situação na UFS (Universidade Federal de Sergipe) é tão séria que a reitoria teve de emitir uma nota negando que a instituição vá suspender as atividades por falta de dinheiro. Mas, no comunicado, o comando da universidade diz que só poderá encerrar o ano com as contas em dia se contingenciamento acabar.

“Caso não haja liberação integral de 100% do limite orçamentário relativo a custeio, haverá, inevitavelmente, sérios problemas de execução de despesas de energia, bolsas, pessoal terceirizado (limpeza, segurança, apoio operacional etc)”, diz o texto.

A Universidade de Brasília (UnB) já está no vermelho: tem um déficit acumulado de mais de R$ 100 milhões de reais no ano.

Cerca de 250 funcionários terceirizados já estão de aviso prévio e devem ser desligados. Segundo o sindicato da categoria, a força de trabalho terceirizada caiu quase que pela metade desde 2015.

A crise também atinge a UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), que demitiu cerca de 70 vigilantes no início do ano e suspendeu obras em andamento.

Com o congelamento de parte dos recursos, o cenário de incerteza se repete em outras universidades federais. A regra vale para a UFPR, apesar de a instituição paranaense ter menos sinais visíveis da falta de recursos.

Estaduais: Mesmo com o corte orçamentário, as universidades federais continuam com salários de professores e servidores em dia, já que o pagamento é feito diretamente pelo Executivo federal. Em algumas instituições estaduais, entretanto, nem isso acontece.

O caso mais grave é o da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Uma combinação de má gestão, corrupção e redução orçamentária (em parte por causa da nova divisão dos royalties do petróleo) empurrou o governo estadual para a penúria e levou junto a universidade estadual.

O primeiro semestre de 2017 simplesmente não existiu. O reinício das aulas, marcado para o começo de agosto, foi adiado novamente por absoluta falta de condições. Os serviços terceirizados estão suspensos por falta de pagamento, o restaurante universitário não abre há meses e os docentes e funcionários ainda não sabem quando vão receber o salário de maio.

No Paraná, um bloqueio orçamentário afetou as universidade estaduais de Londrina, Maringá e do Oeste Paranaense.  O governo quer que as instituições passem a integrar o sistema de gestão de pessoas do Executivo estadual, o que em tese melhoraria o controle sobre as despesas. As universidades alegam que isso fere a autonomia de que deveriam desfrutar.

CNPq: Paralelamente à crise das universidades, os 100 mil bolsistas do CNPq têm outra razão para se preocupar. Se não entrarem mais recursos, eles podem ficar sem receber já em setembro.

Na semana passada, o presidente da entidade, Mario Neto Borges se reuniu com o ministro de Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab, para tratar do assunto. Ouviu apenas que há um “diálogo permanente” com a área econômica do governo sobre o tema.

A UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) emitiu recentemente um alerta a seus bolsistas de iniciação científica. Se nada mudar, diz o texto, o pagamento de agosto será o último.

Já há sinais de que os recursos estão perto do fim: bolsas que deveriam ter sido pagas nesta segunda-feira atrasaram, e a promessa é que depósito seja feito até o fim da semana. O problema afeta bolsistas de Produtividade em Pesquisa (PQ) e Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora (DT).

Crise: A crise financeira na educação pública está profundamente ligada à crise econômica que o país atravessa. A expansão acelerada das instituições federais durante o governo do PT deixou uma conta alta quando a maré da economia baixou. Já em 2015, o governo de Dilma Rousseff promoveu um forte contingenciamento de recursos. E, com o governo federal em dificuldades, os estados ficam sem ter a quem recorrer.

“Era uma tragédia anunciada”, diz José Matias-Pereira, professor de finanças públicas na Universidade de Brasília. Ele diz que, além do corte repentino de recursos, as universidades sofrem com a falta de gestores preparados. Em vez de eleições diretas, sugere, talvez seja a hora de os reitores serem escolhidos levando em conta sua capacidade de gestão.

Na avaliação de Matias-Pereira, mais cedo ou mais tarde as universidades públicas terão de fechar alguns cursos. “Diante da crise que nos estamos vivendo,  um número significativo delas vai entrar em colapso”, afirma ele.

Nota: O Ministério da Educação alega que, mesmo com o contingenciamento, trabalha para liberar 100% dos recursos previstos para as universidades. “Para 2017, o limite de empenho previsto inicialmente para as universidades é de 85% do valor previsto para despesas de custeio e de 60% para despesas de capital. No entanto, o MEC está trabalhando para aumentar esse limite, assim como fez no ano passado, onde, mesmo após o contingenciamento feito pelo governo anterior, conseguiu liberar 100% de custeio para as universidades”.

O MEC afirma também que, apesar do corte, “o valor disponível para estas instituições será 5,3% maior do que o disponível à época do contingenciamento em 2016 – o que corresponde a um aumento de R$ 385,7 milhões”.


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...