Por Francisco Fernandes Ladeira
Em seus manuais de redação, a grande mídia brasileira constantemente procura aparentar imparcialidade. No entanto, o repertório lexical por ela utilizada, a concessão de mais espaço a uma notícia em detrimento de outras, a maneira como é desenvolvida a cobertura de um acontecimento, a escolha do título de uma matéria e os critérios para a localização de uma foto são exemplos de posturas que deixam transparecer posicionamentos ideológicos e eliminam qualquer ideia de uma possível neutralidade da informação. Os grandes grupos de comunicação geralmente servem aos interesses de governos ou das empresas que os financiam. Ao contrário do preconizado pela “Teoria do Espelho”, as coberturas jornalísticas não são reflexos fidedignos da realidade, capturados objetivamente, sem nenhum tipo de interferência do olhar do observador. Os noticiários são construções sociais sobre a realidade que ganham materialidade através de determinadas práticas discursivas. Valores subjetivos e a maneira de conceber o mundo do produtor de uma notícia certamente vão influenciar, de alguma maneira, a construção de seu texto.
No caso dos noticiários internacionais, a imprensa hegemônica se aproveita da pouca familiaridade e do distanciamento espacial do público em relação aos principais acontecimentos para tentar impor uma determinada ideologia. De maneira geral, enquanto as grandes potências globais, sobretudo os Estados Unidos, são representadas positivamente nos principais jornais, revistas e emissoras de televisão; por outro lado, mandatários, nações, civilizações, organizações ou povos considerados como “inimigos” do Ocidente — como o mundo muçulmano, a Rússia e a Coreia do Norte — são apresentados de maneira negativa. Isso significa que determinadas intervenções militares, ações estatais, mobilizações populares ou violações aos direitos humanos podem ser interpretadas de maneiras diferentes, dependendo de quem as pratica. Uma breve análise sobre o léxico dos noticiários internacionais já é o suficiente para entendermos essa questão. Em outras palavras, não é preciso um extenso e fastidioso exercício hermenêutico para verificar a tendência pró-imperialista da mídia brasileira.
Para facilitar a compreensão do público (em geral não familiarizado com as temáticas geopolíticas, conforme apontado anteriormente) e tornar inteligível a complexa configuração das relações internacionais, a mídia fornece “atalhos cognitivos”, a partir de estereótipos, tipificações, maniqueísmos, chavões, personalizações, lugares-comuns, generalizações, “opiniões prontas” e concepções de mundo já formadas. Sendo assim, a geopolítica mundial passa a ser entendida a partir de ideias simplistas como o “muçulmano terrorista e fanático religioso”, o “ditador sírio”, o “czar russo” e o “caudilho sul-americano”.
O emprego do termo “ditadura” na grande mídia brasileira, por exemplo, é bastante seletivo. Nações consideradas como “inimigas” do Ocidente (como Síria, Venezuela, Coreia do Norte, Irã e Cuba) são qualificadas como “ditaduras” e seus respectivos governantes, consequentemente, adjetivados como “ditadores”. Todavia, o mesmo rótulo não é aplicado aos aliados das grandes potências mundiais. A título de comparação, em maio do ano passado, quando o governo venezuelano convocou eleições para uma Assembleia Nacional Constituinte, utilizando mecanismos que estavam presentes na constituição do país, o presidente Nicolás Maduro foi chamado de “ditador” pela imprensa brasileira. Já no último mês de setembro, quando a Guarda Civil da Espanha tentou impedir a realização de um referendo sobre a independência da Catalunha em relação ao Estado-Nacional espanhol, os principais jornais, revistas e emissoras do Brasil não qualificaram o governo de Madri como autoritário ou se referiram ao primeiro-ministro Mariano Rajoy como “ditador”.
A utilização do termo “democracia” na grande mídia também é seletiva. Varia de acordo com a posição ocupada por um Estado-Nacional no xadrez geopolítico global. O fato de um determinado país ser aliado ou não das grandes potências mundiais, sobretudo dos Estados Unidos, define, em última instância, sua representação midiática como nação democrática. Apesar de suas ações autoritárias contra o povo palestino, Israel é considerada “a única democracia do Oriente Médio”. Os noticiários sobre a geopolítica sul-americana também exemplificam a flexibilidade assumida pelo conceito de democracia. Governos politicamente à esquerda, inclusive os que chegaram ao poder através de eleições diretas, são considerados antidemocráticos. Em contrapartida, governos instituídos após golpes de Estado, mas alinhados aos interesses estadunidenses, são qualificados como democráticos.
Na cobertura da Rede Globo sobre as invasões dos Estados Unidos a países do Oriente Médio, termos como “guerra” e “ataque” foram substituídos por palavras e expressões eufêmicas como “ocupações”, “ações” e “intervenção cirúrgica”. Já o uso de metáforas — isto é, transferências de palavras entre domínios cognitivos diferentes, alterando assim os sentidos originais aos quais foram destinadas — é um recurso bastante utilizado para desumanizar determinados povos. Nos noticiários internacionais da imprensa brasileira frequentemente ocorrem migrações de termos dos campos da Antropologia e da Biologia — como “selvagens”, “bárbaros”, “líderes tribais”, “clãs” e “bandos” — para o campo da geopolítica, como referências aos seguidores do islã. Tais práticas linguísticas, além de promoverem uma conotação animalesca aos muçulmanos, levam implicitamente à concepção de que a civilização islâmica estaria em um estágio pré-civilizacional.
Do mesmo modo, as escolhas de um determinado verbo ou de uma conjunção não são feitas por simples questões gramaticais, mas ideológicas. Adjetivos como “terrorista”, “caudilho”, ou “extremista” são capciosamente utilizadas, não para descrever a “realidade”, mas como “estratégias discursivas” para induzir o público a compactuar com uma determinada agenda geopolítica. Já a expressão “comunidade internacional”, constantemente utilizada nos noticiários, não está relacionada a um possível consenso entre as diferentes nações do planeta sobre uma determinada questão geopolítica. Ela geralmente reflete tacitamente os posicionamentos dos Estados Unidos e seus aliados. Trata-se, portanto, de um recurso metonímico que difunde os interesses estadunidenses como se fossem os interesses de todo o planeta.
Diante dessa realidade, é preciso saber ler a mídia, desvendar seus possíveis mecanismos manipuladores e os jogos de interesses econômicos que estão por trás do seu funcionamento, pois notícias são mercadorias como quaisquer outros bens de consumo. Palavras podem ser poderosos instrumentos de sensibilização e persuasão. Sendo assim, o sujeito que possui o mínimo conhecimento sobre o maquinário midiático, seleção de pautas (agenda-setting) e o contexto de construção da notícia (newsmaking) dificilmente será um alvo vulnerável para o pensamento dominante, pois conhecer os códigos linguísticos utilizados pelo emissor amplia as possibilidades de leitura do codificador. Em outros termos, dominar os mecanismos que regem a linguagem dos meios de comunicação de massa significa não incorrer no risco de ser por eles dominados.
Francisco Fernandes Ladeira é Mestre em Geografia pela UFSJ e pesquisador sobre as relações entre mídia e ensino de Geografia na educação básica.
FONTE: Observatório da Imprensa
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