Por Reginaldo C. Moraes
No final do século XIX, o conturbado namoro da ciência acadêmica com o sistema produtivo tornou-se um casamento – e um vínculo aparentemente indissolúvel. Naquele momento acontecia o que alguns historiadores chamaram de segunda revolução industrial – alimentada pela direta aplicação do conhecimento produzido pelas universidades. A química, a física, a biologia revolucionavam a indústria, a agricultura, a logística.
Nos países líderes da manufatura avançada – Alemanha e Estados Unidos – esse processo foi marcante e, de certo modo, exemplar para o restante do mundo. O modelo alemão de universidade de pesquisa atravessou o Atlântico e inspirou a criação das primeiras instituições americanas em que essa vocação era central. Chicago, Clark e Johns Hopkins abriram a temporada. Outras nasceriam com a mesma estrela – e mesmo os antigos e clássicos colleges coloniais, como Yale, Harvard e Princeton, fariam essa passagem. Nos Estados Unidos, as universidades nucleariam uma verdadeira máquina de descoberta e inovação, competindo com a matriz germânica e, em certos momentos, alimentando-se de seus quadros, como aconteceu com a migração de cientistas e engenheiros europeus no entre-guerras e no período imediato à Segunda Guerra Mundial.
Mas a presença das universidades na decolagem do desenvolvimento econômico não se deu apenas através da pesquisa – ou da sua disseminação através de atividades de extensão. Ela também se traduziu na formação de um verdadeiro exército de profissionais de alto nível, prontos a conduzir fábricas, usinas de energia, explorações geológicas, aparatos de governo e tudo aquilo que se pode imaginar em uma sociedade complexa.
Dentro desse universo, porém, é preciso introduzir alguns reparos. Na verdade, as políticas de conhecimento adotadas por esses países-líderes iam além da criação de universidades. Se a universidade não é apenas ensino superior, mas também pesquisa e extensão, por outro lado ensino superior não se faz apenas em universidades. A massificação do ensino superior exigiria a criação de outras organizações. Algo mais teve de ser inventado – instituições diversificadas como as fachhochschulen alemãs, paralelas às universidades, as sections de technicien supérieur e institutos universitários tecnológicos na França, os community colleges nos Estados Unidos.
E em todos esses casos o setor público foi simplesmente decisivo. Mesmo nos Estados Unidos, que muita gente toma como lugar por excelência da escola privada, foi o investimento governamental que alavancou as escolas. Todas elas. No século XIX, mesmo as escolas superiores privadas receberam grandes transferências de recursos federais – como a doação de terras, que iriam explorar como um rico patrimônio. E depois obtiveram constantes injeções na forma de bolsas, empréstimos, contratação de pesquisas e assim por diante. Os especialistas calculam que mesmo nessas escolas privadas um terço do orçamento anual é coberto por recursos vindos do governo federal ou dos estaduais. A peculiaridade das escolas privadas americanas – essas que viraram quase uma lenda – é que elas não têm finalidade lucrativa, são organizadas como fundações do chamado terceiro setor.
De outro lado, esse programa do governo federal americano – a doação de terras – foi o embrião da estupenda rede de universidades e faculdades (colleges) estaduais. Em seguida vieram outros programas. Alguns deles distribuíam bolsas, como a lei dos veteranos do pós-guerra e a Lei Pell, dos anos 1960. Outros, como os programas de contratação de pesquisa, geravam infraestrutura para a invenção e a inovação – e para o treinamento de milhares de engenheiros e cientistas, muitos deles depois absorvidos por empresas. Universidades estaduais como a da Califórnia, com vários campi (Berkeley, Los Angeles, San Diego etc.) transformaram-se em gigantes das novas tecnologias. E universidades do centro-oeste, como a de Wisconsin, firmaram-se como a matriz geradora de conhecimento para a agricultura e a agroindústria, outro pilar do desenvolvimento norte-americano.
Os exemplos dos Estados Unidos e da Alemanha mostraram com toda a clareza que boas escolas – e as universidades entre elas – são uma parte decisiva da infraestrutura do desenvolvimento de um país. Tanto ou mais do que as estradas, as redes de energia ou a comunicação via satélite. Mas, assim como esses outros investimentos infraestruturais, o retorno é lento e pouco focalizado em beneficiários diretos. Por isso, dizia o especialista Richard Nelson, ficaria longe do necessário se deixado a cargo exclusivamente da decisão privada.
Outro ensinamento dessa experiência histórica é a necessidade de preservar, na investigação acadêmica, um espaço diversificado de campos e áreas de interesse. Assim, a universidade precisa, de certo modo, pairar um pouco acima do interesse imediato, da aplicação prática mais evidente – outra dificuldade para o investimento privado, muito marcado (e cada vez mais) pelo “curto-prazismo”.
Vale a pena insistir nesse ponto. Para cumprir seu papel e afirmar seu traço distintivo, a educação superior – e, dentro dela, a universidade – precisa reivindicar, obter e garantir um espaço relevante para o estudo e o ensino daquilo que é não-imediato e não-local e que, eventualmente, parece abstrato, irrelevante e até esotérico. O desafio é fazer isso sem cair na caricatura da torre de marfim e do mandarinato estéril e autocomplacente – da educação rica em informação e pobre em experiência a que se referiu um estudioso norte-americano.
Nem sempre isso é fácil de entender: o relativo distanciamento entre a universidade e aquilo que se identifica, de modo imediato e direto, como “conhecimento útil”. Assim como nem sempre é fácil conciliar o campo das “ciências duras” e aquele das ciências humanas.
Daí o papel decisivo que coube à universidade pública, na maior parte dos países desenvolvidos. Ela tem sido o espaço protegido que se permite ficar atento não apenas ao conhecimento voltado para a modificação da “natureza inerte” (ou que consideramos como tal), mas também para a gestão de nossas próprias “naturezas”, do comportamento e das relações humanas. William Arthur Lewis, um grande pioneiro das teorias do desenvolvimento, sintetizou essa ideia num ensaio de 1954:
O desenvolvimento econômico depende tanto do conhecimento tecnológico sobre coisas e criaturas vivas quanto do conhecimento social sobre o homem e as suas relações com os seus semelhantes. A primeira forma de conhecimento é frequentemente acentuada, mas a segunda tem a mesma importância. O crescimento depende tanto de saber como administrar organizações em grande escala ou de criar instituições que favoreçam o esforço para economizar, como de saber selecionar novos tipos de sementes, ou construir maiores represas. [Cito pela edição brasileira: A teoria do desenvolvimento econômico, Zahar ed., Rio de Janeiro, 1960]
Talvez ainda se invente algo que cumpra esse papel, em outros contextos, outros momentos e lugares. Mas até aqui – e aparentemente por muito tempo – ele cabe primordialmente à universidade pública.
Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em ciência política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Escreveu, entre outros, O peso do estado na pátria do mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento (2014) e Educação superior nos Estados Unidos – História e estrutura (2015), ambos pela Editora da Unesp
FONTE: Carta Maior
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