quarta-feira, 29 de abril de 2020

15 anos do ProUni e a balbúrdia do governo na educação



Por Luiza Dulci 



O ProUni é mais um dos alvos da desconstrução do atual governo. Os cortes no Fies, a falha no sistema de correção do Enem de 2019... O sentimento é de revolta diante de tamanha irresponsabilidade com a política educacional e a juventude brasileira

Em 13 de janeiro de 2020, o Programa Universidade para Todos, o ProUni, completou 15 anos de vida. Criado pela Lei n. 11.096/2005, o programa oferta bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de ensino superior para estudantes de baixa renda, pessoas com deficiência e professores da rede básica de ensino. As bolsas integrais se destinam a estudantes com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo; já as bolsas parciais aplicam-se aos casos de renda familiar per capita de até 3 salários mínimos. Os estudantes são selecionados com base nas notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem.

Dados do portal do Ministério da Educação informam que, de 2005 a 2018, foram concedidas mais de 2,47 milhões de bolsas de estudo, das quais 69% foram bolsas integrais; 82% das bolsas destinaram-se a cursos presenciais, enquanto 18% se apoiaram na modalidade de Ensino a Distância (EaD).

Mais do que apenas aumentar o número de estudantes nas universidades, o ProUni foi criado com a intenção de democratizar o ensino superior do país, levar para as universidades as cores da diversidade. As estatísticas mostram que isso de fato vem ocorrendo. Mais da metade do total de bolsas do ProUni foi destinada a mulheres (54%), assim como mais da metade (53,6%) foi para estudantes negros (pretos e pardos). Trata-se efetivamente de um público de estudantes trabalhadores, o que fica evidente quando vemos que a maior parte das bolsas financiou estudantes de cursos noturnos (73%) – ao passo que somente 20% apoiaram estudantes de cursos matutinos, 4% integrais e 3% vespertinos.

A distribuição por região reflete a estrutura disponível das instituições de ensino superior do país, altamente concentrada na região Sudeste: 48% das bolsas foram aplicadas no Sudeste; 19% no Sul; 17% no Nordeste; 10% no Centro-Oeste; e 6% no Norte. Considerando os três públicos prioritários do programa (estudantes de baixa renda, pessoas com deficiência e professores da rede pública de ensino), os estudantes de baixa renda foram os mais beneficiados. Das mais de 2,47 milhões de bolsas concedidas, somente 16.624 atenderam professores da rede pública e 17.706 a pessoas com deficiência.

Na esteira do ProUni vieram outras políticas públicas educacionais de destaque: o programa do governo federal de apoio a planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (Reuni), a Universidade Aberta do Brasil (UAB), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu).

Juntos, esses programas constituem o maior esforço de ampliação e democratização do ensino público na história do Brasil. Os números evidenciam: durante os governos Lula e Dilma, as matrículas no ensino superior mais do que dobraram, passando de 3,5 milhões em 2002 para 7,1 milhões em 2014.

Mas o que o futuro reserva ao ProUni e, mais importante, à juventude que almeja um diploma universitário?

Se é difícil prever o futuro, o olhar para o presente é bastante preocupante. O ProUni é mais um dos alvos da desconstrução do atual governo. Chegou a compor o rol de ações que estaria na mira da "lava jato da educação", conforme anunciado pelo presidente Bolsonaro logo no início de seu mandato.

Seu sucesso, no entanto, impede uma extinção sumária. A estratégia adotada tem sido promover ao máximo seu aspecto privatista. Isso é possível porque as bolsas do ProUni abarcam instituições privadas de ensino, que, em contrapartida, recebem isenção de tributos. Entre 2005 e 2018 as bolsas localizaram-se sobretudo em instituições com fins lucrativos (57%), seguidas das entidades beneficentes de assistência social (26%) e das instituições sem fins lucrativos não beneficentes (17%).

Esses dados reforçam um dos traços mais criticados do programa desde sua criação, o favorecimento da expansão do ensino superior privado. Não é segredo que boa parte dessas instituições privadas encontrava-se em situação financeira delicada e, argumenta-se, tenham sido salvas pelo ProUni. Decorrente dessa, outra crítica é de que ao se associar ao setor privado o programa estaria fortalecendo uma visão mercantilizada da educação, tratando-a como uma mercadoria e não como um direito.

O cenário se apresenta ainda mais grave quando consideramos o movimento global, no qual o Brasil se vê inserido, de financeirização e desnacionalização das instituições de ensino superior. Grandes corporações multinacionais lideram transações agressivas, comprando e vendendo faculdades ao redor do mundo, onde a única variável de interesse é o lucro. Os impactos não fogem aos esperados: superexploração do trabalho de professores e técnicos e queda na qualidade do ensino.

Uma das medidas concretas que liga o ProUni a essas estratégias privatistas é a ampliação da modalidade EaD. É certo que a modalidade EaD tem um potencial transformador, na medida em que apoia estudantes que vivem em locais desprovidos de universidades ou cuja jornada de trabalho dificulta ou mesmo impede o acompanhamento presencial das aulas. Tais razões, contudo, não parecem ser a principal preocupação da atual gestão do MEC. O incentivo às bolsas EaD vem como um adicional à precarização do ensino, uma vez que possibilita que mais estudantes sejam matriculados a um custo fixo (e baixo) para as instituições de ensino. Muitas delas estão demitindo os docentes e recontratando parte deles como tutores de cursos EaD, condição em que os salários são inferiores.

Outro indicativo de mudança de rumos no ProUni tem a ver com a relação entre bolsas integrais e parciais. Em 2015, 62% das bolsas eram integrais; em 2019 essas caíram para 45% do total. Das bolsas integrais, 25% foram EaD em 2015, tendo crescido para 45% em 2019 e, se consideradas apenas as bolsas concedidas no segundo semestre, o percentual sobe para 51%.

Os cortes no Fies são outra fonte de preocupação, pois aumentam a demanda de bolsas no ProUni. De acordo com a proposta orçamentária do governo federal para o ano de 2020, a redução nos recursos do Fies seria de 26%. Fato agravado pela mudança na forma do financiamento estudantil introduzida ainda pelo governo Temer, que em 2017 criou o P-Fies, ou “Novo Fies”. O Fies manteve-se similar para estudantes de famílias com renda mensal per capita de até 3 salários mínimos, com a possibilidade de financiamento integral a juro zero com a União. No entanto, para aqueles com renda entre 3 e 5 salários mínimos passou a funcionar com recursos dos fundos constitucionais e de desenvolvimento e de bancos privados associados ao programa.

A falha no sistema de correção do Enem de 2019, admitida pelo próprio MEC na semana passada, é mais um elemento de insegurança neste contexto. O sentimento é de revolta diante de tão pouco compromisso e tamanha irresponsabilidade com a política educacional e com a juventude brasileira no atual governo.


Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ) 


segunda-feira, 20 de abril de 2020

O poder e o coronavírus



Por Elaine Tavares




Os Estados Unidos é tido como um dos países mais ricos do mundo, e provavelmente é. E, agora, com a explosão do coronavírus, fica bem fácil ver o porquê. No mundo capitalista a riqueza é produzida pelos trabalhadores e se concentra na mão de um número pequeno de pessoas, que são as que detêm os meios da produção. Justamente por ser assim, aqueles que são os responsáveis pela produção da riqueza, dela não podem usufruir. A eles falta educação, saúde, moradia, segurança, lazer, arte, tudo. Sua função é unicamente rodar o moinho do capital.

Com a chegada do novo vírus mortal, a realidade aparece na sua expressão mais crua. Esses trabalhadores não têm a menor importância para o capital. Eles não têm nome, não têm sonhos, não tem sentimentos, não têm família, não têm existência real. São números. E, como tal, facilmente trocados sem que haja qualquer turbulência no andar da carruagem. 

Os Estados Unidos, sendo o país mais rico do mundo,  tem a maior taxa de pessoas infectadas – mais de 500 mil -  e o maior número de mortes, chegando hoje (dia 14 de abril) a 23 mil pessoas. Números que não são os números reais pois pode haver muito mais, uma vez que não há testagem em massa. Portanto, provavelmente há muita gente circulando pelas ruas com o vírus e transmitindo.  

O presidente Donald Trump, no começo da pandemia havia tripudiado da letalidade do vírus, dizendo que era apenas uma gripe, mas com a explosão dos casos foi obrigado a tomar algumas atitudes, afinal, é candidato à reeleição. Ainda assim, as medidas tomadas continuam não sendo as ideais e é por isso que as mortes se aceleram. Pela primeira vez na história do país o presidente foi obrigado a declarar desastre em todos os 50 estados. 

Não obstante, tal como o presidente brasileiro – que lhe segue os passos – Trump confunde os estadunidenses, hora falando bobagens, ora dizendo que agora, com essa declaração de desastre os EUA vencerão o vírus. Ele também trabalha contra os cientistas ligados à própria Casa Branca, que continuam afirmando: se as medidas de isolamento tivessem sido tomadas, a crise não seria tão violenta. Trump brinca no seu twitter, republicando opiniões de pessoas que pedem a demissão desses profissionais. As semelhanças com o Brasil não são coincidências. É o mesmo descaso com a maioria das pessoas. Trump, ignorando o avanço da doença, insiste que o país deve retomar a “normalidade” no primeiro de maio. 

Enquanto isso, a cidade de Nova Iorque, o coração pulsante da nação, é a que está mais fortemente impactada com a letalidade do vírus, com 10 mil mortos nessa terça-feira, sendo que representa a metade dos mortos no país. A comunidade médica e os trabalhadores da saúde são os que estão dando batalha, como em todo o mundo, contra todas as dificuldades. 

No país, o índice de morte entre os negros e pobres é altíssimo, desvelando também o aspecto de raça/classe, já que os negros estão, em sua maioria, na base da pirâmide social. E morrem justamente porque os pobres, nos Estados Unidos, não têm acesso à saúde. Ou a pessoa paga um seguro ou está morta. Não existe um sistema público capaz de dar suporte a toda essa gente. É por isso que muitos, mesmo doentes não procuram os hospitais. Sabem que se saem vivos, devem até a alma. E, como dever o que não têm?

Lá, como cá, também o governo busca formas de salvar os ricos, colocando a conta para os trabalhadores. É o caso do pessoal do agronegócio que deverá ser beneficiado com uma ajuda direta da Casa Branca, podendo ainda reduzir o salário de pelo menos 250 mil trabalhadores estrangeiros que tem permissão temporária para ficar no país trabalhando nos campos. São trabalhadores essenciais porque, sem eles, a cidade não come. Ainda assim, serão penalizados para que os fazendeiros não percam lucros. É o uso cirúrgico de uma gente que o país odeia (os migrantes), mas da qual necessita. Eles que sobrevivam como puderem. Caso morram, amanha terá mais gente chegando e tudo bem.  

Outro drama que não encontra visibilidade é o dos imigrantes que estão presos nos centros de detenção em todo o país. Gente que não cometeu crime algum, unicamente tentou entrar no país e está confinado em prisões insalubres e violentas. E agora enfrentam essa pandemia sem qualquer preocupação por parte do governo. Tanto que as entidades de Direitos Humanos têm se manifestado em frente aos cárceres, exigindo que o Serviço de Imigração garanta a saúde das pessoas, embora sem sucesso. Inclusive, há cárceres exclusivos de crianças, separadas dos pais e sem cuidados. 

Ou seja, a teoria que sustenta a forma de enfrentamento do coronavírus nos Estados Unidos é a mesma levada no Brasil. Que se infecte logo a maioria das pessoas, que morram os doentes, os fragilizados, os criminosos e que sobrem só os “fortes”, os que passarem pelo vírus sem sintomas ou com sintomas leves. Assim, a economia não para e os ricos continuam acumulando lucros. Num mundo de sete bilhões de almas não importa para o sistema capitalista e seus controladores que pereçam um milhão de vidas. Elas são facilmente substituídas. E segue o baile.

Essa lógica perversa encontra seguidores em todo o mundo. Alguns, por que acreditam mesmo numa “melhoria” da raça e outros porque acreditam cegamente nos seus líderes a ponto de disseminarem pelas redes sociais e nas suas relações interpessoais as mentiras que sustentam a racionalidade certeira do capital.

No Brasil, um vídeo de uma moradora do interior de São Paulo, resistindo a um pedido de policiais para que fosse para casa, respeitando o isolamento social, conseguiu, em poucos minutos, expor os argumentos que sustentam uma espécie de insanidade, que só é para as gentes, não para os governantes. Segundo ela, o vírus é uma invenção dos chineses, com o apoio do PT, para derrubar Bolsonaro. Ou seja, ela crê, sem pejo, que foi criada uma pandemia mundial unicamente para atacar o presidente do Brasil. Cenas semelhantes se multiplicam não só no Brasil, mas com versões locais em outros países que adotaram a lógica do “morram logo”, tal como os Estados Unidos. 

E assim, o planeta vai, mergulhado numa loucura sem precedentes. Uma loucura muito bem dirigida e direcionada. Nas altas camadas dos governos, das multinacionais, das entidades da classe dominante, a vida segue sem novidades, com cada um pensando em como acumular mais lucro e mais poder nessa hora de desespero entre a maioria dos trabalhadores. Para eles, é hora perfeita. 

Deveria ser um bom momento para que os trabalhadores percebessem qual é o seu papel nesse mundo capitalista. Mas, ao que parece, em vez de aflorar a consciência crítica, o que mais cresce é o misticismo e o fundamentalismo. Sem os instrumentos para compreender em profundidade a realidade, um número expressivo de pessoas se volta para o céu, para o milagre, esperando que a saída venha de algum deus poderoso e não da revolta organizada da classe trabalhadora. 

Com o isolamento social e a disseminação exponencial de mentiras a situação fica ainda mais difícil de ser enfrentada. 

Apesar disso, há que atuar e trabalhar no sentido de desvelar a realidade. A tarefa cotidiana e permanente. 


sábado, 11 de abril de 2020

Educação em tempos de pandemia


Por Carolina Figueiredo Filho






As es­colas pú­blicas, en­quanto ins­ti­tui­ções so­ciais e braços do Es­tado, de­ve­riam se voltar por com­pleto, em termos de sua es­tru­tura fí­sica e de seu corpo de ser­vi­dores, para con­tri­buir com a su­pe­ração da maior emer­gência da so­ci­e­dade atual: a crise sa­ni­tária, econô­mica e so­cial. É ex­tre­ma­mente ir­ra­ci­onal, con­tra­pro­du­cente e ine­fi­ci­ente (para usar termos tão caros à eco­nomia ca­pi­ta­lista) que o prin­cipal papel das es­colas e dos pro­fis­si­o­nais da edu­cação neste mo­mento de ca­la­mi­dade pú­blica e de cres­cente abrupta de de­sem­prego, fome, ado­e­ci­mento e mortes seja dis­se­minar con­teúdos cur­ri­cu­lares to­tal­mente alheios à con­jun­tura, como se hou­vesse uma certa nor­ma­li­dade na ordem das coisas, que já foi rom­pida.

É como se en­trassem ati­rando na es­cola e o ex­clu­sivo cui­dado da Se­cre­taria de Edu­cação fosse não in­ter­romper as aulas a des­peito dos tiros, pâ­nicos e mortes. A ‘con­tri­buição’ da es­cola pú­blica pri­mor­dial agora seria atuar fe­chando os olhos para a re­a­li­dade, como se es­ti­vesse numa bolha, e re­pro­duzir de qual­quer jeito uma série de con­teúdos pen­sados em uma si­tu­ação com­ple­ta­mente di­fe­rente da que es­tamos vi­vendo?

A pre­o­cu­pação com as de­fa­sa­gens edu­ca­ci­o­nais e com o acesso da ju­ven­tude em iso­la­mento ao con­teúdo his­to­ri­ca­mente acu­mu­lado é fun­da­mental, muito le­gí­tima, justa e ne­ces­sária. No en­tanto, as me­didas em re­lação a esta questão pre­cisam ser dis­cu­tidas a fundo, cons­truídas, pla­ne­jadas, ela­bo­radas e im­ple­men­tadas quando o grave ce­nário da pan­demia tiver ce­dido e não houver mais a re­co­men­dação do iso­la­mento so­cial. O que fazer em re­lação a esse as­pecto não será re­sol­vido com re­ceitas sim­ples, ata­lhos ou fór­mulas má­gicas e nem serão vi­a­bi­li­zadas apenas no âm­bito mu­ni­cipal ou es­ta­dual. O ce­nário de pa­ra­li­sação das es­colas é global, de pro­por­ções nunca antes vi­ven­ci­adas. Se­gundo es­ti­ma­tiva da UNESCO, quase 1 bi­lhão de cri­anças e jo­vens estão sem aulas no mundo. As res­postas para isso também pre­ci­sarão ser fruto de re­flexão e ex­pe­ri­ên­cias co­le­tivas in­ter­na­ci­o­nais, res­pal­dadas em pes­quisas, aná­lises e di­ag­nós­ticos pós-epi­demia, sempre di­a­lo­gadas com cada con­texto es­pe­cí­fico.

A pro­posta do En­sino a Dis­tância e do ho­mes­cho­o­ling como meios por ex­ce­lência de re­so­lução do pro­blema não cum­prem nada do que mi­la­gro­sa­mente vem sendo ale­gado pelas au­to­ri­dades. A im­ple­men­tação goela abaixo do EaD é um tapa-bu­raco, não tem pro­posta pe­da­gó­gica séria fun­da­men­tada, é ir­re­a­li­zável ope­ra­ci­o­nal­mente em tão pouco tempo de forma pro­fis­si­onal, qua­li­ta­tiva e mas­siva, ig­nora que, de acordo com o IBGE, quase 60% da po­pu­lação não têm com­pu­tador em casa e em torno de 25% não têm in­ternet. Au­menta, por­tanto, as de­si­gual­dades.

Além disso, o EaD exige que estas cri­anças e jo­vens sejam su­per­vi­si­o­nadas e au­xi­li­adas pelos pais ou res­pon­sá­veis. E se estes pre­cisam sair porque exe­cutam um ser­viço es­sen­cial? E se, quando há um com­pu­tador e in­ternet, os pais pre­cisam dele para re­a­lizar o home of­fice? E se há al­guém in­fec­tado com o co­ro­na­vírus em casa, pre­ci­sando de cui­dados que de­mandam uma ver­da­deira ope­ração de guerra? E se al­guém pró­ximo à fa­mília fa­leceu por conta do co­ro­na­vírus? E se as cri­anças pre­cisam cuidar do ir­mão­zinho en­quanto a mãe está do­ente ou vai tra­ba­lhar? Qual a pri­o­ri­dade nestes casos? Re­a­lizar as ati­vi­dades on­line?

Tais in­da­ga­ções podem ser feitas em re­lação ao corpo do­cente também, que pre­ci­sará do com­pu­tador, da in­ternet, da saúde fí­sica e emo­ci­onal sua e de seus fa­mi­li­ares em meio a maior epi­demia dos úl­timos 100 anos para ela­borar um tra­balho para o qual nunca foi con­tra­tado, ou seja, ela­borar vídeo-aulas e ati­vi­dades on­line. Só há uma única razão pela qual o EaD pa­rece ser efe­tivo em meio ao caos: o con­trole pelo Es­tado do tempo das pro­fes­soras e pro­fes­sores e, junto com este, o as­sédio e ame­aças de corte de sa­lá­rios e rup­tura de con­trato se estes não per­ma­ne­cerem tantas horas por dia co­nec­tados em frente ao com­pu­tador ou se não en­tre­garem uma quan­ti­dade de­ter­mi­nada de vídeo-aulas ela­bo­radas in­di­vi­du­al­mente sem qual­quer dis­cussão co­le­tiva de pro­jeto po­lí­tico-pe­da­gó­gico.

O ato edu­ca­tivo ba­seado no con­tato pre­sen­cial e nas vi­vên­cias co­ti­di­anas entre as cri­anças e jo­vens da turma e destes com a pro­fes­sora e o pro­fessor con­ti­nuam im­pres­cin­dí­veis para o efe­tivo pro­cesso de en­sino-apren­di­zagem, para a ma­tu­ração cog­ni­tiva, emo­ci­onal e psí­quica e para a for­mação pes­soal e so­cial dos es­tu­dantes. Em tempos em que as ob­vi­e­dades pre­cisam ser re­a­fir­madas - como a pre­missa de que as vidas hu­manas estão acima da sanha pelo lucro e acu­mu­lação - , vale a pena dizer mais uma vez, su­bindo nos om­bros de grandes pen­sa­dores da Pe­da­gogia, da Psi­co­logia, da So­ci­o­logia, que a edu­cação está muito para além da sim­ples trans­missão de con­teúdos e que os es­tu­dantes não são meros de­po­si­tá­rios e re­pro­du­tores de in­for­ma­ções, fór­mulas, datas, re­gras e con­ceitos.

O iso­la­mento so­cial re­forçou a im­por­tância do mo­vi­mento, da brin­ca­deira, da con­so­li­dação de uma ro­tina, da in­te­ração entre as cri­anças como parte fun­da­mental do de­sen­vol­vi­mento hu­mano e da apren­di­zagem. O es­paço da es­cola é aquele que pro­por­ciona a mi­lhões de cri­anças e jo­vens bra­si­leiros o ali­mento diário, o en­contro, o livro, a quadra, pátio ou campo para correr, jogar, se di­vertir, o con­vívio com a di­fe­rença, a so­ci­a­li­zação. Por essas e muitas ou­tras, a prá­tica edu­ca­tiva não pode ser subs­ti­tuída como um todo por me­ca­nismos tec­no­ló­gicos. Ha­verá pre­juízo para a edu­cação dos es­tu­dantes do mundo e não há má­gica que dê conta deste im­passe na atual si­tu­ação.

A es­cola pú­blica deve estar ori­en­tada neste mo­mento para pro­teger a vida, a saúde e os meios de so­bre­vi­vência de seus alunos, fa­mi­li­ares e pro­fis­si­o­nais. O di­reito à edu­cação passa pela ga­rantia de que seja pú­blica, gra­tuita, de qua­li­dade e so­ci­al­mente re­fe­ren­ciada, isto é, pre­cisa res­ponder às de­mandas so­ciais.

A edu­cação tem função so­cial, que não se en­cerra nela mesma. Faltam más­caras? Falta ál­cool gel? Faltam ali­mentos? Faltam ou­tros itens de hi­giene? Faltam dados pre­cisos do es­pa­lha­mento do vírus? Falta um ma­pe­a­mento de sua dis­se­mi­nação? Faltam in­for­ma­ções se­guras? Faltam es­paços para abrigar os sem teto? Como a es­cola e os ser­vi­dores pú­blicos podem con­tri­buir di­ante destas ur­gên­cias?

A es­cola possui co­mu­ni­cação di­reta com muitas fa­mí­lias de um bairro e está na linha de frente do con­tato pri­mário com a po­pu­lação vul­ne­rável. É im­pres­cin­dível que a ins­ti­tuição es­colar seja um ponto de apoio do poder pú­blico pe­rante estas co­mu­ni­dades. O papel das pro­fes­soras, pro­fes­sores, fun­ci­o­ná­rios e ges­tores edu­ca­ci­o­nais agora pre­cisa ser rein­ven­tado e ade­quado às exi­gên­cias his­tó­ricas, a exemplo de: pro­mover um grande le­van­ta­mento dos casos lo­cais de pes­soas com sin­tomas do vírus e mo­ni­to­ra­mento de sua evo­lução; le­van­ta­mento dos casos lo­cais de fa­mí­lias sem renda, co­mida e itens de hi­giene; or­ga­nizar dis­tri­buição destes itens de forma se­gura e hi­gi­ê­nica, seja no pró­prio es­paço fí­sico da es­cola, seja em modo de mu­tirão pelas casas, sempre con­tando com equi­pa­mento de pro­teção; trans­formar os pré­dios es­co­lares, ora oci­osos, em hos­pi­tais de cam­panha ou pontos de co­leta e dis­tri­buição de man­ti­mentos e in­for­ma­ções se­guras, ou es­paços de mo­radia e aco­lhi­mento para pes­soas em si­tu­ação de rua ou de­sa­bri­gadas.

O En­sino à Dis­tância não re­solve ne­nhum dos pro­blemas, nem os mais ur­gentes em re­lação à epi­demia, nem os de médio e longo prazo das de­fa­sa­gens edu­ca­ci­o­nais ad­vindas desta crise. De­fi­ni­ti­va­mente, a prin­cipal emer­gência das cri­anças e jo­vens aten­didos pela es­cola pú­blica agora, em abril de 2020, em meio a uma epi­demia que tende a co­lapsar os sis­temas de saúde do mundo todo e a matar par­cela ex­pres­siva da po­pu­lação mun­dial, não é a de­manda por aulas à dis­tância que re­pro­duzam in­for­ma­ções e con­teúdos cur­ri­cu­lares. É hora de a es­cola pú­blica for­ta­lecer a re­lação com a co­mu­ni­dade de que faz parte - algo tão rei­vin­di­cado pela pró­pria le­gis­lação edu­ca­ci­onal -, con­ferir ca­ráter pe­da­gó­gico ao exer­cício prá­tico da ci­da­dania e dar sen­tido vivo, di­nâ­mico e in­te­gral à sua função e com­pro­misso so­cial.


Ca­ro­lina Fi­guei­redo Filho é pro­fes­sora da rede es­ta­dual pau­lista e mi­li­tante do Co­le­tivo Quinze de Ou­tubro.


quarta-feira, 1 de abril de 2020

MEMÓRIAS DA DITADURA (31/3 – 01/04 de 1964)



Por Aluizio Moreira

Naquela manhã de quarta-feira, 1º de abril de 1964, dirigia-me à firma onde trabalhava como auxiliar de escritório, Agência Nacional de Navegação, localizada na Rua do Bom Jesus, no bairro do Recife.

Diferentemente do costumeiro trajeto, o ônibus estacionou na Praça 13 de Maio e o motorista avisou que era o fim da linha. Todos os ônibus que se destinavam ao bairro do Recife, fariam alí o seu ponto de retorno.

Desci juntamente com vários passageiros e fomos em direção Ponte Princesa Isabel até chegarmos à Praça da República, fim da qual atravessaríamos a Ponte Buarque de Macedo, e finalmente ao bairro do Recife.

Ao nos aproximarmos do Teatro Santa Isabel, já na Praça da República, avistamos o Palácio do Governo, totalmente cercado por tanques e pelotões de soldados do Exército, mantendo um cordão de isolamento em boa parte da Praça. 





Chegando na empresa onde trabalhava, colegas comentavam os últimos acontecimentos, inclusive com a informação  que o Exercito tinha prendido o Governador Miguel  Arraes.

Pouco instantes depois, um carro de som convocava todos os trabalhadores para que se dirigissem ao Sindicato dos Comerciários na Rua da Imperatriz para discutir os acontecimentos e os caminhos que os trabalhadores deveriam tomar.

Decidi unilateralmente encerrar meu expediente e caminhei até o Sindicato dos Comerciários na Rua da Imperatriz. Depois de algumas informações, fomos em direção ao Sindicato dos Bancários, na época ocupando o espaço onde hoje, se não me falha a memória, se localiza a C & A, na Av. Conde da Boa Vista. Lá se realizaria uma Assembleia para se discutir as possibilidades de resistência ao golpe. Era um prédio relativamente amplo, cuja única entrada tinha uma porta com grades, que se transformou em cárcere, aprisionando todos os que se encontravam em reunião no seu interior, afora os que eram identificados na rua como "subversivos", logo conduzidos para a prisão improvisada.

Vinha eu com um companheiro do Sindicato dos Comerciários, quando do prédio do Sindicato dos Bancários, um policial de arma em punho atravessou a avenida vindo em nossa direção, aos gritos de “pare senão eu atiro!”. O colega se distanciou de mim apelando insistentemente para que eu não o seguisse. Parei. O policial o conduziu para o prédio-prisão. Perdi um colega que sempre dava pitaco em minhas poesias. Nunca mais o vi. (Trecho de “Tempos Idos e Vividos - II”)


AMANHEÇA AMANHÃ

Por Aluizio Moreira

Amanheça amanhã
De rosa nos cabelos
E de janela aberta
De frente para o sol
Mas amanheça amanhã.

Não te pedirei nada
Nem que me compreenda
Nem que não me compreenda
Somente que escute
Uma mensagem nova
Saindo das prisões 
Como amanhece sempre

Amanheça amanhã
De rosa nos cabelos
E de janela aberta
De frente para o sol
Mas amanheça amanhã.

Não encontrarás em mim
Amor que não me sirva para a luta
Que não me seja arma
Que não me seja fôlego
Plantadas ambas num jardim imenso
Como vicejam as rosas brancas e vermelhas.

Amanheça amanhã
De rosa nos cabelos
E de janela aberta
De frente para o sol
Mas amanheça amanhã.

O que te trago apenas
As duas mãos erguidas
Sem algemas
Um pedido de silêncio
Um poema de amor mais novo
Ou talvez no bolso da camisa esfarrapada
Um pedido atrasado de habeas corpus

                                                                                       (Recife/1970)


SINAL FECHADO (1964)

Por Aluizio Moreira

- Psiu!!!
- Não fale nada!
- Não escreva nada!
- Noticias? Só doenças na família!
- Escute só cantor inofensivo!
- E livros que tratem de receitas

-Não!
-Não veja filme de Chaplin!
- Deixe Neruda!
-Esconda Galeano!
- Quanto às artes plásticas
Que importa gostar de Portinari
Se existe tanta natureza-morta?!

(Recife/1966)


TORTURA

O poema abaixo foi dedicado a Odijas Carvalho de Souza, natural de Alagoas, estudante da Universidade Rural de Pernambuco, preso e torturado por agentes da ditadura em janeiro de 1971 na Praia de Maria Farinha em Pernambuco e morto em fevereiro do mesmo ano. (Cf. Comissão Nacional da Verdade -1979)

Por Aluizio Moreira

            Dedicado a Odijas Carvalho de Souza

Depois das marcas no corpo
Depois das noites insones
Depois dos dias de fome
Depois do frio do chão
Depois dos gritos contidos
Depois do sangue nas mãos
Depois do pus nos ouvidos
Depois da brasa no rosto
Depois do uso da força
Depois das dores de Rosa
Depois dos traumas do filho
Depois da Lei indecente
Que anistia na sentença
Torturadores e agentes
Nada farei diferente
Porque este resto. . .
Ainda pensa.

(Recife/1971)


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